[CamaraDas] Armas e Revolução Passiva

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  • Date: Tue, 25 Oct 2005 13:55:51 -0200

Armas e Revolução Passiva

Folha de São Paulo, 17 de Junho de 1999* 

Por Olavo de Carvalho, filósofo e escritor brasileiro, autor de "O Jardim das 
Aflições", "O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras" e "A Longa 
Marcha da Vaca para o Brejo: O Imbecil Coletivo II", entre outros livros e 
textos. Sua home page é http://www.olavodecarvalho.org 
<http://www.olavodecarvalho.org> . 

Se os meios de produção constituem o critério econômico da divisão de classes, 
o fator que assegura a uma classe o seu papel dominante na sociedade não é a 
posse deles, e sim a dos meios de destruição. Eis por que, as revoluções que 
têm por meta nominal a mudança da estrutura econômica não tomam nunca por alvo 
prioritário a conquista das fábricas e dos bancos, mas sim a das instalações 
militares. Não a da riqueza, mas a das armas que a garantem. Nenhum 
materialista histórico esteve jamais embriagado de economicismo a ponto de 
negar essa obviedade. 

Se nos períodos de paz e normalidade a riqueza financeira é um meio importante 
de conquistar e conservar o poder, nos de desordem e violência só um tipo de 
riqueza importa: a posse das armas. Nessas horas, mais pode o pobre armado do 
que o rico desarmado. 

A lei que confere o monopólio da posse de armas a certas categorias de cidadãos 
representa, portanto, nada menos que uma revolução, o estabelecimento de um 
novo critério de estratificação social, de uma nova divisão de classes. 
Doravante, o povo brasileiro estará dividido em duas castas -os armados e os 
desarmados. Ao mais mínimo abalo da ordem cotidiana, essa distinção se mostrará 
mais decisiva, na prática, do que aquela que separa os pobres e os ricos, os 
letrados e os iletrados, os famosos e os anônimos. 

Eis por que nenhuma inteligência sã pode aceitar discutir, a sério, se a lei de 
proibição da venda de armas ajudará ou não a reduzir a criminalidade. Ela não 
tem rigorosamente nada a ver com a diminuição da criminalidade, e é impossível 
que seus autores, todos versados em Marx, Gramsci e até Weber, não saibam 
disso. O combate à criminalidade é apenas o pretexto publicitário para fazer o 
povo aceitar, com plena inconsciência de seus efeitos, a mutação mais profunda 
e mais violenta que a sociedade brasileira já sofreu ao longo de toda a sua 
história. Que transformação tão drástica possa ser impingida pacificamente ao 
país enquanto os olhos da opinião pública estão desviados para discussões 
laterais - eis a manifestação vivente da "revolução passiva" preconizada por 
Gramsci, entre cujos seguidores se encontram o governador Anthony Garotinho, o 
dr. Carlos Minc, os próceres todos da campanha "Rio Desarme-se" e, "last but 
not least", o sr. presidente da República. 

E, se coisa de tal monta não foi assinalada por nenhum observador num país que 
detém talvez o recorde mundial de cientistas sociais "per capita", é porque 
estes se dividem em duas categorias: os que não são capazes de percebê-la e os 
que, por desejá-la ardentemente, torcem para que ninguém mais a perceba. A 
revolução passiva é dita passiva precisamente porque não dói nem chama a 
atenção, mas vai penetrando insensivelmente, centímetro a centímetro, como a 
lâmina num tecido previamente anestesiado. A divisão do país entre os armados e 
os desarmados pressupõe uma outra, anterior, que a condiciona: a divisão dos 
brasileiros entre os gramscianos e os otários. 

Entre os primeiros, o mais "soft" e portanto, o menos desonesto é o sr. 
presidente da República, o qual, numa mensagem para os raros bons entendedores, 
reconheceu que, como instrumento para o combate ao banditismo, a nova lei é 
apenas "simbólica". Evidentemente, não ocorreu a nenhum dos demais 
perguntar-lhe por que uma lei simbólica tinha sido encaminhada ao Congresso em 
regime de urgência nem se, considerada como instrumento para alguma finalidade 
totalmente diversa, a nova lei não teria algum efeito menos simbólico e mais 
direto. 

Que essa finalidade nada tem a ver com o controle do banditismo é a coisa mais 
óbvia do mundo. Cassar uma autorização só afeta quem precisa dela, e nenhum 
quadrilheiro esperou jamais autorização do Estado para usar armas. Ademais, 
todas as armas em posse do crime organizado já são ilegais, sendo inócuo 
colocar fora da lei o que nunca esteve dentro dela. Mas o efeito nulo que a 
proibição terá sobre todos os grupos que, por sua natureza, já atuam 
voluntariamente fora da lei (inclusive os bandos de guerrilheiros rurais) 
contrasta dramaticamente com a profundidade e a amplitude da mudança que ela 
desencadeará sobre a vida de todos os demais brasileiros, de todos os 
brasileiros que querem viver dentro da lei. 

Essa mudança pode-se enunciar da maneira mais simples: aprovada a nova lei, 
haverá uma nova sociedade no Brasil, com novos dominadores e novos dominados. O 
mais rico dos brasileiros poderá contratar um segurança, mas não se defender 
dele se ele decidir, de repente, passar para o lado dos sequestradores. O 
dinheiro será impotente, o prestígio será indefeso, a autoridade moral se 
tornará o discurso risivelmente inofensivo dos profetas desarmados: o único 
meio de acesso ao poder será ingressar na polícia, nas Forças Armadas ou numa 
quadrilha de traficantes. 

E a nova dasse dominante não terá somente o monopólio dos meios de matar, mas 
também o da seleção de seus próprios membros: quem aceita ou rejeita um 
candidato a policial é a polícia; um candidato a quadrilheiro, a quadrilha. Por 
sua constituição mesma como monopolista (e monopolista da única força 
decisiva), a classe dos novos senhores será mais fechada, mais exclusivista e 
mais corporativista do que todas as suas antecessoras. E, o que é infinitamente 
mais grave, não haverá entre quem tem e quem não tem poder os graus 
intermediários que hoje matizam as diferenças hierárquicas: ao contrário do que 
acontece com o dinheiro, o poder político e a fama, que podem vir em 
quantidades maiores ou menores, entre o armado e o desarmado nenhum meio-termo 
é concebível. 

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