[CamaraDas] Artigo: Alex Antunes

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Wed, 30 Jul 2014 16:25:47 -0300

Suassuna, velho burroMe perguntei algumas vezes se deveria escrever este
texto. Porque o principal que tenho a dizer sobre Ariano Suassuna é que ele
era um velho burro e chato. E o homem, como se sabe, acabou de morrer - o
que o eleva automaticamente aos píncaros da genialidade e da infalibilidade
nos textos que se espalham pela imprensa.

Mau momento para lembrar o seu principal defeito: a profunda e total
incompreensão da natureza da cultura pop. Eu tinha desistido de escrever.
Mas eis que a televisão de domingo o mostra numa entrevista, atacando, com
volúpia e deboche, Michael Jackson e Madonna, além da réplica da estátua da
Liberdade na Barra da Tijuca.

Ora, é fácil concordar com ele que a réplica da estátua é um monumento à
imbecilidade playba. E que Michael Jackson (esse trecho não passou no
domingo) é digno de pena, pela forma como foi explorado e depois massacrado
pela mesma indústria cultural.

Mas Suassuna os atacava pelas razões erradas. Não há "superioridade" da
cultura brasileira, e em particular da nordestina, sobre a cultura pop
internacional. Por uma razão muito simples: o sistema arquetípico sobre o
qual elas se constroem é exatamente o mesmo.

A mesma graça que há nos modos e sotaques regionais pode ser vista em
expressões culturais globais. A cultura pop é simplesmente o "folclore
sintético". O que está por trás do Batman, do Super Homem, dos filmes
policiais negros da blaxploitation ou da Madonna são os mesmíssimos
arquétipos que animam os mitos gregos do Monte Olimpo, as lendas dos orixás
das religiões africanas ou os arcanos do Tarô.

Não é à toa que Suassuna implicou tanto com os tropicalistas (de maioria
baiana) quanto com o manguebeat que surgiu no seu estado de adoção,
Pernambuco. Dizia que falaria com Chico se ele tirasse o Science do nome, e
que a música da Nação Zumbi era "de quarta categoria".

Suassuna se irritava porque esses nordestinos decifraram as matrizes em
comum que existem na cultura popular brasileira e em qualquer expressão
cultural. Ao mesmo tempo em que escapavam do purismo elitista e castrador,
propunham uma forma nacional, desinibida e não-colonizada de cultura pop.

Diz uma letra do Mundo Livre SA, "O Ariano e o Africano", de 1998:

























*"Há quatro séculos a alma africana tem sido um motorDa inquietação, da
resistência, da transgressãoO negro sempre quis sair do gueto Fugir da
opressão fazendo históriaGanhando o mundo com estiloE é assim que a alma
africana sobrevive com brilho e vigorEm todo o novo continente o africano
foi levado para sofrer no norte e gerou,entre outras coisas, o jazz, o
blues, gospel, soul, r&b, funk, rock'n'rollNo centro, o suor africano
fomentou o mambo, o ska,o calipso, a rumba, o reggae, dub, ragga,o merengue
e a lambada, dancehall e muito maisMas é o ariano que ignora o africano ou
é o africano que ignora o ariano?E ao sul a inquietude negra fez
nascer,entre outros beats, o bumba, o maracatu, o afoxé,o xote, o choro, o
samba, o baião, o coco, a emboladaEntre outros, os Jacksons e os Ferreiras,
os Pixinguinhas e os Gonzagas,as Lias, os Silvas e os MoreirasA alma
africana sempre esteve no olho do furacãoDendê no bacalhau, legítima e
generosa transgressãoÉ Dr. Dre e é maracatuÉ hip hop e é Mestre Salu Mas é
o ariano que ignora o africano ou é oafricano que ignora o ariano?"*

 [image: Ariano Suassuana (Foto: Estadão Conteúdo)]

É um flagra perfeito da condição elitista de Suassuna, branco cristão e
filho do governador assassinado da Paraíba em 1930, que abraçou concepções
culturais marxistas, não para libertar a cultura popular mas, pelo
contrário, para mantê-la sob controle.

Suassuna era um artista inspirado. Surpreendentemente pop, a se julgar, por
exemplo, pelo filme e microssérie da Globo "O Auto da Compadecida". E o seu
Movimento Armorial teve grande impacto na cultura pernambucana. Mas fazia
sempre a trajetória inversa do tropicalismo, do manguebeat e do modernismo
antropofágico - as mais generosas e brasileiras das expressões, exatamente
pelo não-purismo.

Suassuna não aceitava os aspectos bastardos da cultura popular; pelo
contrário, queria adensá-la e refiná-la numa expressão erudita. Ou seja,
como pensador cultural, era um conservador odioso. Declarava-se "inimigo da
colonização e do poder do dinheiro", mas ele mesmo um colonizador de
consciências e um guardião do status quo.

Não é de se estranhar que Ariano tenha sido membro-fundador, um dos
"cardeais" do Conselho Nacional de Cultura. Uma estranha convergência entre
intelectuais (inclusive de esquerda) e a ditadura militar entre 1967 e o
anos 70, baseada na busca de uma identidade de Brasil com um sentido
cívico, tradicionalista e otimista. Foi a experiência no Conselho que
impulsionou Suassuna na organização do movimento Armorial em Recife.

Acontece que o negro, ou qualquer oprimido que busca sua libertação na lida
cultural, como bem explica a letra do Mundo Livre, é amigo da eletricidade,
da cultura em movimento e reinvenção, da provocação bastarda e
dessacralizada, da incorporação e inversão de termos pejorativos (funk,
punk, junky, nigga etc) - e não do reconhecimento institucional.

O momento mais memético de Suassuna na internet é um fruto, bastante
humorístico, de seus equívocos. Em suas aulas-espetáculo gostava de contar
o causo de um músico punk ou funk que cantou-lhe uma letra. Ela falava de
modelos atômicos, dos físicos Rutherford e Bohr, de um cavalo morto e que
"fora do buraco tudo é beira". Naturalmente sua "interpretação" jocosa da
tal letra virou um vídeo viral, o "Funk do Suassuna".

Reza a lenda que Suassuna se divertiu com a adaptação (parece que com o
trocadilho no nome do bloco carnavalesco Arriano Sua Sunga ele já não lidou
tão bem). E, mesmo brigado com o manguebeat, chorou copiosamente no velório
de Chico Science. Seria essa sua dimensão humana e generosa.

Mas sua teoria cultural elitista e (anti) popular continua inaceitável. O
pior de dois mundos, a convergência da culpa cristã com a marxista. Se
Michael Jackson e Madonna são meramente "lixo cultural", como gostava de
dizer de boca cheia, Ariano Suassuna era um velho burro, burro e burro.
*:::*
*Niquele*

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