[CamaraDas] Artigo: Por que rever a Lei da Anistia é um erro

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  • Date: Mon, 7 Apr 2014 14:49:13 -0300

Tiro no pé

*ALFREDO SIRKIS*

Foi francamente irônico o resultado da recente pesquisa do Datafolha sobre
a Lei da Anistia. Há uma maioria favorável a revê-la para poder julgar os
torturadores e uma maioria, maior ainda, para rejulgar a nós,
ex-guerrilheiros pelas ações que cometemos.

Por um instante me vi, com meus 63 anos, no tribunal, respondendo pelos
dois sequestros de embaixadores dos quais participei, aos 19, e que
propiciaram a libertação de 110 presos políticos, alguns eventualmente
destinados à Casa da Morte. Na época fui condenado duas vezes à prisão
perpétua (com mais 30 anos de lambuja para a encarnação subsequente) pelas
auditorias militares.

Costumo dizer que, daquilo tudo, não me orgulho nem me envergonho. Mas já
tive pesadelos horrendos: a organização me ordena a executar o embaixador
suíço, Giovanni Enrico Bucher -um sujeito boa-praça que não gostava da
ditadura- porque tinham se recusado a libertar todos nossos presos. Tenho
uma pistola na mão, mas não quero me tornar um assassino. Acordo coberto de
suor frio.

Graças a Deus, aquilo terminou bem, e nossos 70 companheiros foram mandados
a Santiago do Chile porque consegui convencer nosso comandante, Carlos
Lamarca, a aceitar a recusa de alguns dos presos "estratégicos" e negociar
a sua substituição por outros que a ditadura Médici aceitava soltar. Hoje
vejo num sequestro desse tipo, de um diplomata inocente, ameaçado de
execução, mesmo sob uma ditadura, um ato no limite do terrorismo, no que
pese o nosso desespero de então. Em alguns casos, esse limite foi
ultrapassado. Penso no marinheiro inglês metralhado na praça Mauá, na bomba
de Guararapes ou na execução daquele militante que queria deixar uma
organização.

*BALANÇA*

É possível equiparar esse punhado de atos criminosos à tortura
generalizada, institucionalizada, sancionada desde o nível presidencial que
se abateu não apenas sobre nós, resistentes armados, como sobre opositores
sem violência, como no caso do PCB, e milhares de "simpatizantes" e outros,
presos por equívoco?

Claro que não; mas essa anistia "recíproca" foi resultado de uma correlação
de forças dos idos de 1979, um acordo político que permitiu a libertação
dos presos e nossa volta do exílio.

O primeiro problema de rever essa lei para poder julgá-los, 40 e tantos
anos depois dos fatos, é a repercussão sobre outros complicados processos
de redemocratização pelo mundo afora. Frequentemente, para remover um
regime de força, é preciso pactuar com os que ainda ocupam o poder e ainda
têm enorme capacidade de fazer dano.

As torturas e execuções na África do Sul e na Espanha não foram menores do
que no Brasil -é o mínimo que se pode dizer- mas lá a opção foi não colocar
os antigos repressores nos bancos de réus.

Na África do Sul, a lógica da Comissão da Verdade foi reconstituir os fatos
e obter dos responsáveis pelo odioso apartheid a confissão, não com vistas
à condenação penal, mas à expiação moral e a superação conjunta de tudo
aquilo. Também foram colocados na mesa para uma catarse de superação
coletiva certos episódios sangrentos dentro da maioria negra.

Confesso que senti satisfação ao ver o general Jorge Rafael Videla terminar
a vida numa prisão argentina. Penso, no entanto, que a razão decisiva para
julgar (uma parte) dos comandantes daquele regime assassino foi o
prosseguimento das conspirações militares já no período democrático, com
quarteladas durante os governos de Raul Alfonsín e Carlos Menem.

No Chile, alguns poucos foram julgados, mas o general Augusto Pinochet
Ugarte continuou comandando o Exército por um bom tempo na transição e só
sofreu embaraço jurídico no Reino Unido, jamais no Chile.

Não há uma formula única, "correta". No que pese o sentimento de busca de
justiça das vítimas e seus familiares -que respeito profundamente, à
diferença daqueles que querem apenas surfar politicamente na causa-
trata-se de uma decisão jurídica, por um lado, e de uma questão política,
por outro. Juridicamente, o STF já se pronunciou a esse respeito.
Politicamente, vejo a revisão como contraproducente e concordo plenamente
com a presidente Dilma Rousseff quando se manifesta contrária à anulação da
anistia.

*NARRATIVAS*

Desde os anos 80, vem prevalecendo, grosso modo, a narrativa da esquerda
sobre os "anos de chumbo". Os verdugos dos porões do DOI-Codi viveram vidas
existencialmente miseráveis. Uma parte, desproporcional, já morreu de morte
morrida; outros tornaram-se criminosos comuns, bicheiros, contrabandistas.

No estamento militar há um sentimento geral de condenação àquela máquina de
torturas e execuções -que acabaram inclusive atentando fortemente contra a
hierarquia militar e sujando a imagem das Forças Armadas-, embora sem
nenhuma propensão a aceitar a narrativa da esquerda. Não iremos convencer
os militares a adotar, agora, um maniqueísmo reverso ao deles, na época.

Por todo ordenamento jurídico brasileiro, hoje seria totalmente impossível
-a não ser que se viesse a adotar toda uma nova legislação de exceção-
condenar esses militares de pijama, na maioria septuagenários ou
octogenários, a servir penas na prisão.

Num país onde assassinos abjetos como os que torturaram e mataram o
jornalista Tim Lopes saem da prisão por "progressão de pena" em quatro ou
cinco anos, fazer um ex-general ou coronel do DOI-Codi ir para a cadeia por
crimes cometidos há mais de 40 anos é improvável e incongruente.
Qual o risco político de coloca-los agora no banco do réus?

Tendo prevalecido a nossa narrativa, desde os anos 1980, seria da lógica
jornalística agora ouvir a deles, desde o palco e holofotes que agora lhes
estão sendo propiciados. Alguns se arrependem. Qual a sinceridade disso? Há
os que assumem friamente seus crimes, e aí temos a novidade, o gancho para
difundir sua contranarrativa: "Isso mesmo, torturei, cortei dedos, matei,
joguei no rio, no mar e daí? Guerra é guerra".

Se há uma maioria de brasileiros que fica compreensivelmente horrorizada,
há uma minoria que se identifica e se sente reconfortada em ver, afinal,
sua "verdade" difundida agora com todas as letras. "Levanta-se a bola" para
figuras como Ustra ou Malhães, propicia-se farta cobertura de mídia para
que eles se comuniquem com uma extrema-direita desorganizada, difusa, mas
real. Ganham espaço para bulir com aquele sentimento que leva o público do
primeiro "Tropa de Elite" -quando José Padilha ainda não pagara tributo ao
politicamente correto- a aplaudir as torturas infligidas ao traficante com
um saco plástico.

A prioridade no Brasil, em relação à tortura, não é tentar, inutilmente,
mediante a revisão da anistia, colocar na cadeia um ou outro torturador do
DOI-Codi dos anos 1970, mas fazer cessar aquela tortura que continua
ocorrendo hoje, agora, a todo momento, em dezenas de delegacias de roubos e
furtos ou destacamentos de policiamento ostensivo, contra marginais pobres
e negros.

Aquela velha tortura de sempre, de antes e de depois do Estado Novo e do
regime militar, quando ela foi, excepcionalmente, infligida também à classe
média intelectualizada e politizada.

Nesse sentido, apesar de todos os bons e altivos argumentos e da
justificada indignação de quem sofreu e gostaria de ver punidos aqueles
criminosos, a revisão da "anistia recíproca" de 1979 é um erro político
cujo maior problema é, na prática, dar uma segunda chance e propiciar um
público renovado para uma narrativa que já enterramos nos anos 1980. É, no
fundo, um tiro no pé.

*ALFREDO SIRKIS*, 63, é autor de "Os Carbonários" (Record) e deputado
federal pelo PSB-RJ.

*:::*
*Niquele*

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