[CamaraDas] Re: [CamaraDas] Artigo antigo: Antônio Prata (recordar é viver)

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  • Date: Mon, 6 Aug 2018 23:28:55 -0300

Antigo e atual.

Enviado do meu iPad

Em 6 de ago de 2018, às 12:48, Niquele <niquele@xxxxxxxxx> escreveu:


Bar ruim é lindo, bicho!

Estadão
26 Dezembro 2008 | 23h57
Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso freqüento bares meio 
ruins. Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, 
nos julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e cinqüenta anos. 
(Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de cento e 
cinqüenta anos, mas tudo bem).

No bar ruim que ando freqüentando ultimamente o proletariado atende por Betão 
– é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas, acreditando resolver 
aí quinhentos anos de história.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar “amigos” do garçom, 
com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para 
falarmos de literatura.

– Ô Betão, traz mais uma pra a gente – eu digo, com os cotovelos apoiados na 
mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa coisa 
linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara do 
Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à 
passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os pratos tradicionais da 
nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, quando 
convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit 
gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal, 
mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito bem 
diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim. Tem 
que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, 
se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima imediatamente desponta em nossos 
olhos, meio de canto, meio escondida. Quando um de nós, meio intelectual, 
meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum outro meio 
intelectuais, meio de esquerda, freqüenta, não nos contemos: ligamos pra 
turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele 
lá é o nosso novo bar ruim.

O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo 
freqüentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias 
mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto 
freqüentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo dia, a gente 
chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem meio 
de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e, 
principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente diz: eu 
gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais, 
meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos 
bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, 
adoramos dizer que freqüentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a 
tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda antes de tocar na 
MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes, uns pobres que sabem 
subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a gente acha lindo, mas a 
gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevette e chinelo Rider. Esse 
pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a gente 
abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.

Os donos dos bares ruins que a gente freqüenta se dividem em dois tipos: os 
que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem qual é a 
nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para 
tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no 
cardápio e aumentam cinqüenta por cento o preço de tudo. (Eles sacam que nós, 
meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a 
pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos que não entendem qual 
é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas de fórmica 
imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando reggae. Aí 
eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como já disse 
algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.

Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso país. A 
cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, 
os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta 
para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit 
gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio intelectuais, 
meio de esquerda que, como eu, por questões ideológicas, preferem frango à 
passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que é a mesma coisa que mandioca, 
mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio intelectuais, meio de esquerda, 
achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o Sudeste e preferimos esse 
termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara Cascudo, saca?).

– Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?-- 

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Niquele

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