[CamaraDas] DEBATES: Fluidez desculturada

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  • Date: Tue, 27 Feb 2007 17:24:07 -0300

CULTURA
O homem neoliberal: da redução das cabeças à mudança dos corpos A suspensão
atual das proibições esconde um verdadeiro projeto pós-nazista sustentado
pelo capitalismo. Ao mesmo tempo em que quebra as regulamentações
simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha até quebrar a
humanidade

Dany-Robert Dufour <http://diplo.uol.com.br/_Dany-Robert-Dufour_>
Dado que só há mais um conjunto de produtos que são trocados por seu estrito
valor comercial, os homens devem livrar-se de todas as sobrecargas culturais
e simbólicas

Em *L'art de réduire les têtes**1*, eu havia tentado evidenciar a profunda
reconfiguração das mentes realizada pelo mercado. A demonstração era
relativamente simples: o mercado recusa qualquer consideração (moral,
tradicional, transcendente, transcendental, cultural, ambiental…) que possa
impedir a livre circulação da mercadoria no mundo. É por isso que o novo
capitalismo tenta desmantelar qualquer valor simbólico unicamente em
benefício do valor monetário *neutro* da mercadoria. Dado que não há mais
nada senão um conjunto de produtos que são trocados por seu estrito valor
comercial, os homens devem livrar-se de todas as sobrecargas culturais e
simbólicas que, até há pouco tempo, garantiam suas trocas.

Tem-se um bom exemplo dessa dessimbolização produzida pela expansão do reino
da mercadoria quando se examina o papel-moeda emitido em euro. Observa-se
que estas notas perderam as efígies das grandes figuras da cultura que, de
Pasteur a Pascal e de Descartes a Delacroix, indexavam, ainda ontem, as
trocas monetárias sobre os valores culturais patrimoniais dos Estados-nação.
Hoje, não há nada impresso nos euros além de pontes e portas ou janelas,
exaltando uma fluidez desculturada. Pede-se aos homens que se curvem ao jogo
da circulação infinita da mercadoria. Pode-se dizer, portanto, que a lei do
mercado é destruir todas as formas de lei que representem uma pressão sobre
a mercadoria.

Ao abolir qualquer valor comum, o mercado está em via de fabricar um outro
"homem novo", privado de sua faculdade de julgar (sem outro princípio que o
do lucro máximo), levado a usufruir sem desejar (a única salvação possível
encontra-se na mercadoria), formado em todas as flutuações identitárias (não
há mais sujeito; existem apenas subjetivações temporárias, precárias) e
aberto a quaisquer conexões comerciais. Estamos, aqui, diante de um aspecto
muito particular da desregulamentação neoliberal que, infelizmente, ainda
não é bem compreendida, mas que já produz efeitos consideráveis em todos os
domínios, particularmente sobre o psiquismo humano. Um certo número de
psiquiatras e de psicanalistas está fazendo o inventário dos novos sintomas
decorrentes desta desregulamentação, como a depressão, as diversas
dependências, as perturbações narcisistas, a extensão da perversão etc.
Desregulamentação simbólica Está se fazendo o inventário dos novos sintomas
decorrentes desta desregulamentação, como a depressão, as diversas
dependências, as perturbações narcisistas, perversões

Esta desregulamentação de tipo novo provoca grandes confusões nos debates
atuais. Ela é acompanhada de um cheiro libertário, baseado na proclamação da
autonomia de cada um e numa extensão da tolerância em todos os campos
sociais (dentre os quais o dos costumes), que tende a fazer acreditar que
estamos em vias de viver um intenso período de libertação. Dado que o antigo
patriarcado opressivo está em desvantagem, acredita-se que uma revolução sem
precedentes estaria a caminho... esquecendo-se de que foi o próprio
capitalismo que comandou esta "revolução" visando a facilitar a penetração
da mercadoria nos domínios onde ela ainda não reinava – o dos costumes e o
da cultura.

Karl Marx não se enganava quanto a essa face "revolucionária" do
capitalismo: "A burguesia", escrevia ele, "não pode existir sem provocar,
constantemente, grandes mudanças nos instrumentos de produção, portanto nas
relações de produção e, portanto, no conjunto das condições sociais. De modo
contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais
anteriores era manter inalterado o antigo modo de produção. O que distingue
a época burguesa de todas as precedentes é a incessante introdução de
mudanças na produção, a desestabilização contínua de todas as instituições
sociais, em resumo, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as
relações sociais enferrujadas, com seu cortejo de idéias e de opiniões
admitidas e veneradas, dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes
mesmo de se esclerosarem. Tudo o que era sólido, bem definido, se desmancha
no ar, tudo o que era sagrado se encontra profanado e, afinal, os homens são
forçados a considerar com um olhar desiludido o lugar que ocupam na vida e
suas relações recíprocas*2*." Esta capacidade de transformar as relações
sociais atingiu o ponto máximo através desse novo estado do capitalismo que
é chamado às vezes, e com razão, de "anarco-capitalismo".

Essa transformação funcionou tão bem que houve quem tentasse reter apenas o
lado "libertário", "jovem" e "conectado" da nova forma, empolgando-se, sem
grandes dificuldades, com a revolução dos costumes que ela introduzia. A
confusão é tal que quem não faz outra coisa senão seguir essa
desregulamentação cultural e simbólica acredita-se muitíssimo revolucionário
– penso na parte da esquerda conectada que se entusiasma com todas as
"causas tendência". Ora, é exatamente o que quer dizer o anarco-capitalismo
que gosta, se não da "revolução", pelo menos de todas as formas de
desregulamentação culturais e simbólicas. Todos os *spots* publicitários
mostram isto.
Perigos potenciais Esta desregulamentação simbólica provoca grandes
confusões nos debates atuais, pois é acompanhada de um cheiro libertário

Parece que as populações pressentem os consideráveis perigos potenciais que
a civilização corre diante de tal desregulamentação simbólica. Mas o Mercado
pode recuperar tudo em seu proveito: muitos grupos já estão agindo,
vangloriando-se e vendendo morais de péssima qualidade. Ora, seria um erro
crucial deixar o debate sobre os valores para os conservadores, sejam eles
antigos ou "neo". De fato, se se abandonar esse terreno, ele será, como nos
Estados Unidos, ocupado por George W. Bush, pelos tele-evangelistas e seus
supostos puritanos, ou, como na Europa, pelos populismos fascistizantes.
Portanto, é urgente construir uma nova reflexão sobre os valores, sobre o
sentido da vida em sociedade e sobre o bem comum destinado às populações
confusamente alarmadas pelos estragos morais devidos à extensão infinita do
reino da mercadoria. É claro que, se esse terreno não for cercado, essas
populações serão tentadas a pender para o lado dos que o ocupam de forma tão
barulhenta quanto indevida.

Entretanto, restringir o debate a esses aspectos culturais seria cometer um
grande engano. Porque parece que essa reconfiguração das mentes não é senão
a primeira fase de um mecanismo mais amplo. Para dizê-lo em poucas palavras,
a "redução de cabeças" e a dessimbolização são apenas o prelúdio de uma
outra redefinição em profundidade do homem, a qual, então, atingiria não só
sua mente, mas também seu corpo.
Momento decisivo É urgente construir uma nova reflexão sobre os valores,
sobre o sentido da vida em sociedade e sobre o bem comum para populações
alarmadas pelos estragos morais

Essa dessimbolização do mundo ocorre num momento decisivo da aventura
humana: é a primeira vez na história do ser vivo que uma criatura chega a
ler a escrita da qual ela é a expressão. Com tal seqüência, tornou-se
possível um acontecimento incrível: o instante em que a criatura vai poder
voltar à criação para se refazer. O instante em que a criatura vai
interferir em sua criação e pôr-se como seu próprio criador. Chega, pois, o
momento inconcebível em que uma espécie vai poder intervir em seu próprio
devir substituindo as leis naturais da evolução.

Tudo acontece como se a recomendação humanista lançada no Renascimento por
um de seus grandes pensadores, Pic de la Mirandole, tivesse sido ouvida além
de todos os limites. Pic queria introduzir, de encontro às antigas formas de
dominação absoluta pelo divino, um pouco de livre arbítrio humano. Deste
modo, convocava o homem a "esculpir sua própria estátua*3* ". O apelo foi
ouvido por toda a filosofia posterior, pois esta pode ser considerada como
um desenvolvimento muito longo do tema do livre arbítrio humano, da
construção do cogito cartesiano ao tema da morte de Deus em Nietzsche,
passando pelo ideal crítico do Iluminismo.

Ora, o homem atual está em via de ultrapassar esse ideal dado que, se
estiver efetivamente em via de "esculpir sua própria estátua", esta bem
poderia ser uma estátua viva, chamada a substituir a do próprio homem.
Observemos, de passagem, que isso não seria nada menos que o fim da
filosofia, que seria abrangida numa tal intenção de redefinição das bases
materiais da humanidade. Sua realização suporia, de fato, a transformação
irremediável de um empreendimento, incessantemente relançado desde a
Antiguidade, de reforma do espírito (pela ascese, pela busca da autonomia,
pela refundação do entendimento) num objetivo puramente tecnicista de
modificação do corpo. Mas de que serviria ganhar um corpo novo se isto
significasse perder o espírito?
Fukuyama e a "pós-humanidade" Essa dessimbolização do mundo ocorre num
momento decisivo da aventura humana: em que a criatura vai interferir em sua
criação e pôr-se como seu próprio criador.

É mais importante ainda colocar a questão à medida que existe um programa
difuso de fabricação de uma "pós-humanidade". Tal programa é dissimulado,
quase não se lhe dá publicidade. Não se deve assustar os homens;
principalmente, eles não podem compreender que os fazem trabalhar na
abolição da humanidade – isto é, em seu próprio desaparecimento. O mundo do
ser vivo foi de tal forma cercado pelo capitalismo, a fim de nele
desenvolver novos espaços para a mercadoria, que algumas de suas
conseqüências possíveis sobre a própria humanidade acabaram atravessando o
muro do silêncio. É assim que Francis Fukuyama – o arauto do neoliberalismo,
que havia proclamado, depois da queda do muro de Berlin, o início do "fim da
história" com o advento generalizado das democracias neoliberais – teve que
se retrair e admitir que o triunfo do mercado não era o último episódio da
história humana. Um outro se seguiria: a transformação biológica da
humanidade*4* . Mas este abrir de olhos não lhe foi senão a oportunidade de
cair num novo erro de avaliação.

Francis Fukuyama quer acreditar que o neoliberalismo poderá preservar-nos
dessa engrenagem fatal… quando é ele que nos leva diretamente a ela! Para
ele, na verdade, a democracia de mercado seria um estado perfeito se não
estivesse ameaçado pelo desenvolvimento de algumas técnicas: "Uma técnica
suficientemente poderosa para remodelar o que somos pode bem ter
conseqüências potencialmente ruins para a democracia liberal*5* ."
Evidentemente, é necessário convir quanto a isto: se não há mais homens, a
democracia corre o risco de se esvaziar. Para evitar semelhante perigo,
bastaria, segundo Fukuyama, que "os países regulassem politicamente o
desenvolvimento e a utilização da técnica". Piedosa intenção que não come
pão e que lhe permite manter-se em silêncio a respeito do essencial: é o
mercado que mantém o desenvolvimento infindável das tecno-ciências, as
quais, não reguladas, conduzem diretamente para uma saída fora da
humanidade.
Da pós modernidade à pós história O empreendimento, relançado desde a
Antiguidade, de reforma do espírito se transforma num objetivo puramente
tecnicista de modificação do corpo

Este elo, no entanto, é claro: dado que o mercado implica o fim de qualquer
forma de inibição simbólica (isto é, o fim da referência a qualquer valor
transcendental ou moral em proveito unicamente do valor comercial), nada,
caso se permaneça nesta lógica, poderá impedir que o homem se liberte de
qualquer idéia que pretenda mantê-lo em seu lugar e que saia de sua condição
ancestral tão logo tenha os meios para tal. Portanto, não é a ciência
sozinha, como se diz com freqüência, e sim a ciência mais o efeito deletério
do mercado sobre os valores transcendentais que estariam em condições de
permitir a realização desse programa. É preciso, pois, se colocar a questão:
existirá, em nossas democracias pós-modernas onde se pode dizer tudo, uma
instância política para decidir se nós queremos ou não essa mutação? Nada é
menos certo.

Ora, a ausência desse lugar tem um peso importante. Vê-se onde o programa de
fabricação de uma pós-humanidade poderia levar: diretamente à entrada numa
era de produção de indivíduos ditos superiores tendo escapado à geração. E
indivíduos inferiores para as tarefas subalternas. A existência, banalizada,
de organismos geneticamente modificados deveria pôr a pulga atrás da orelha:
poder-se-ia, a curto prazo, empreender fabricar, por clonagem e modificação
genética, novas variantes humanas. É até verossímil que experimentações
estejam em curso ou possam não demorar a estar.

Quando esse dia chegar, teremos passado da pós-modernidade, período
perturbado pelo desmoronamento dos ídolos, à *pós-história*. Se ninguém pode
prever o que será isto, pode-se, entretanto, dizer o que não será mais.
Porque significa o desenlace de cinco grandes *topoï* da humanidade: o fim
da humanidade comum, o fim da fatalidade costumeira da morte, o fim da
individualização, o fim do ordenamento (problemático) entre os sexos e a
desorganização da sucessão de gerações.
Perigo para o animal inacabado O perigo que ameaça a espécie humana não é só
o eugênico. A curto prazo, é também e simplesmente a conservação e a
perpetuação da própria espécie

O perigo que ameaça a espécie humana não é só o perigo eugênico. O que está
em perigo, a curto prazo, é também e simplesmente a conservação e a
perpetuação da própria espécie. Esta conservação não procede de si mesma;
ela passa por um contexto simbólico e cultural. Isto se explica pelo fato,
reconhecido por uma parte da pesquisa paleoantropológica, de que o homem é
concebível como um ser de nascimento prematuro, incapaz de atingir seu
desenvolvimento germinal completo e, entretanto, capaz de se reproduzir e de
transmitir suas características de juvenilidade, normalmente transitórias
entre os outros animais. Fala-se a esse respeito da *neotenia* do homem*6* .
Ela implica que este animal, não acabado, diferentemente dos outros animais,
deve acabar-se em outro lugar que não na *primeira natureza*, isto é,
numa *segunda
natureza*, geralmente chamada *cultura*.

Encontram-se muitas coisas nessa segunda natureza: deuses, relatos,
gramáticas referindo-se a qualquer objeto do mundo (as estrelas, os seixos,
os micróbios, a música, a narrativa, o cálculo, a subjetividade, a
sociabilidade...), uma intensa atividade protética (todos os objetos que
permitem a esse animal não acabado habitar o mundo), leis, princípios,
valores... Ora, se esse quadro for deteriorado, se as leis e os princípios
que o regem se tornarem fluidos, pode-se esperar não só efeitos individuais
e sociais deletérios, mas também ameaças sobre a espécie, pois nada mais
será suficientemente legítimo para se opor a manipulações visando a
transformá-la assim que possível.
A domesticação do Ser A deliberação moral é tão pouco levada em consideração
que, nesse discurso "desinibido", só a técnica é que pode determinar uma
ética

Algumas vozes já se fazem ouvir na *intelligentsia* para acolher a suposta
boa nova e próxima mutação do homem. De modo muito especial, o filósofo
alemão Peter Sloterdijk, que já se tornara famoso por haver feito no final
de 1999, no além-Reno, uma conferência intitulada *Règles pour le parc
humain* [Regras para o parque humano] *7* , por ocasião de um seminário
dedicado a Heidegger. Esta conferência suscitou uma grande controvérsia,
particularmente com Jürgen Habermas. Os propósitos desse "nietzschiano de
esquerda" parecem muito significativos do modo como a desregulamentação
simbólica atual pode confundir as mentes.

Numa outra conferência realizada no Centro Georges Pompidou, em março de
2000*8* , Sloterdijk retomou uma tese de Heidegger, mas para invertê-la. Não
se tratava mais de dizer que a técnica era "esquecimento do Ser", mas de
proclamar que ela contribui para a "domesticação do Ser", sendo esse o
atributo maior do homem neotênico, levado a se produzir a si mesmo. Como se
a técnica fosse a única conquista do homem neotênico e o contexto simbólico
que faz prescrições e proibições nunca tivesse existido! Com tais premissas,
todas as conseqüências possíveis da técnica são justificadas
antecipadamente. Por outro lado, a deliberação moral é tão pouco levada em
consideração que, nesse discurso "desinibido", só a técnica é que pode
determinar uma ética – não uma ética qualquer, mas, sim, uma "ética do homem
maior" e, enquanto tal, aberta às "automanipulações biotecnológicas".
A substituição do "homem primeiro" O homem, puxado para fora de si mesmo
pelo Ser, estaria encarregado de mudar sua condição biológica para se abrir
à multiplicidade biológica

Nesse discurso, a ética consiste, pois, em afastar qualquer forma de exame
moral. É assim que o homem, puxado para fora de si mesmo pelo Ser, estaria
encarregado de mudar sua condição biológica para se abrir à multiplicidade
biológica*9* . O homem, nascido insuficiente e sendo produto da técnica, não
teria outra coisa a fazer senão levar a técnica a suas últimas
conseqüências. Deste modo, o velho homem deveria ser rebatizado de "homem
primeiro" – em que se pode ouvir um claro eufemismo de "primitivo" (como em
"museu das Artes Primeiras") –, porque este homem já é somente um primitivo
diante dos homens superiores que devem vir. Não se devia provocar a
alucinação da volta do Ser na sinistra farsa histórica do nazismo – não
havia ali senão um lamentável equívoco de meu caro mestre, parece dizer
Sloterdijk. Não, é hoje que se dá o verdadeiro êxtase: o homem superior, o
verdadeiro, chega e seus aduladores já o louvam e funcionam como polícia
para lhe abrir caminho.

Ora, esse caminho está cheio de "homens primeiros" – eis o problema. Para
nosso profeta, o velho homem primitivo é manhoso, é constitutivamente surdo
– e eu cito – com "generoso potencial" de transformação "polivalente". Pior
ainda, por seu "antigo egoísmo", ele só prestaria para "exercer o poder
sobre as matérias-primas" para "delas dispor" a fim de livrá-las das
mudanças prometidas – onde se compreende que tais "matérias-primas" poderiam
até ser o próprio corpo humano. Evidentemente, esse velho homem não seria
senão "o homem do ressentimento", prestes a fazer "reuniões" para
arregimentar "populações desinformadas" e levá-las a "falsos debates sobre
ameaças não compreendidas, sob a autoridade severa de editorialistas
lascivos"... Abaixo, pois, os velhos "humanólatras" que pretendem, movidos
por "uma histeria antitecnológica", opor-se ao salto para o qual o Ser nos
chama porque, é evidente, não há "nada de perverso" em querer "se
transformar através da autotécnica"...
Projeto pós-nazista O verdadeiro problema do capitalismo é que ele funciona
tão bem que um dia acabará consumindo tudo: os recursos, a natureza, – até
os indivíduos que o servem

Esses propósitos de Sloterdijk – por seu próprio exagero – são muito úteis:
permitem compreender que a atual desinibição simbólica não é somente uma
questão de libertação dos costumes e de saída mais ou menos dolorosa do
patriarcado. De fato, a suspensão atual das proibições revela que perdura um
verdadeiro projeto pós-nazista de sacrifício do humano. Ele é sustentado
pelo anarco-capitalismo que, ao mesmo tempo em que quebra todas as
regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha até
quebrar a humanidade.

"O discurso capitalista", já dizia o doutor Lacan, "é algo de loucamente
astucioso [...], funciona perfeitamente, não pode funcionar melhor. Mas
justamente funciona depressa demais, se consome. Consome-se tão bem que se
esgota*10* ." Em suma, o verdadeiro problema do capitalismo é que ele
funciona bem demais. Tão bem que um dia acabaria consumindo tudo: os
recursos, a natureza, tudo – até e inclusive os indivíduos que o servem. Na
lógica capitalista, esclarecia Lacan, "o antigo escravo foi substituído" por
homens reduzidos à condição de "produtos": "produtos [...] consumíveis tanto
quanto os outros*11* ." Esta observação permite compreender que é exatamente
nesse sentido muito ameaçador que devem ser entendidas as expressões
levianamente eufóricas que se encontram em toda a literatura neoliberal: "o
material humano", o "capital humano", a gestão esclarecida dos "recursos
humanos" e a "boa governança ligada ao desenvolvimento humano".

O anarco-capitalismo acreditou na idéia de que o dar-se leis é cruel e só
confina a uma espécie de masoquismo insuportável. E remete cinicamente os
que teriam necessidade de um suplemento de alma ao puritanismo
obscurantista. É preciso, portanto, lembrar que os filósofos do Iluminismo,
como Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Kant, diziam que a liberdade consiste
apenas em obedecer às leis que o homem se deu. De fato, temos necessidade de
verdadeiras leis jurídicas e morais – e não desses sucedâneos moralizantes –
para, enfim, fazer justiça, para salvaguardar o mundo antes que seja tarde
demais, para preservar a espécie humana ameaçada por uma lógica cega. Ora,
estamos em via de ab-rogar todas as leis – exceto as do mais forte – e, se
continuarmos nessa funesta direção, entraremos numa crueldade bem mais
intensa que a de ter que se submeter a leis. Entraremos numa crueldade
desconhecida que consiste em querer modificar esse corpo humano velho de 100
mil anos. Para, a partir dele, tentar improvisar outros.

(Trad: *Iraci D. Poleti*)

1 - Ver, de Dany-Robert Dufour, *L'art de réduire les têtes ? sur la
nouvelle servitude de l'homme libéré à l'ère du capitalisme total*, Denoël,
Paris, 2003.
2 - Karl Marx, *Manifeste communiste*, trad. Lafargue, Ed. sociales, Paris,
1976, p. 35
3 - Pic de la Mirandole [1463-94], *Discours sur la dignité de l'homme*,
citado por Jean Carpentier, Histoire de l'Europe, Points, Seuil, Paris,
1990, p 224-225
4 - Em "La fin de l'Histoire dix ans après", Fukuyama repete seu credo: "A
democracia liberal e a economia de mercado são as únicas possibilidades
viáveis para nossas sociedades modernas". Mas ele reconhece uma
insuficiência quanto à sua concepção do fim da história: "A História não
pode se acabar enquanto as ciências da natureza não chegarem a seu termo. E
estamos à véspera de novas descobertas científicas que, por sua própria
essência, suprimirão a humanidade enquanto tal.". *Le Monde*, 17 de junho de
1999.
5 - *Cf.* Francis Fukuyama, *La Fin de l'homme: Les Conséquences de la
révolution biotechnique*, La Table Ronde, Paris, 2002.
6 - Ver os trabalhos do grande antropólogo norte-americano Stephen Jay
Gould: *Darwin et les grandes énigmes de la vie*, [1977], Pygmalion, Paris,
1979, e *Le pouce du Panda* [1980], Grasset, Paris, 1982.
7 - Ver, de Peter Sloterdijk, *Règles pour le parc humain*, Mille et une
nuits, Paris, 2000.
8 - Conferência retomada numa coletânea intitulada *La Domestication de
l'Etre*, Mille et une nuits, Paris, 2000. Todas as citações que seguem foram
extraídas desta obra.
9 - De fato, essa diversificação já está em curso: o semanário
norte-americano *Science*, de 27 de julho de 2001, relatava que uma equipe
norte-americana conseguiu implantar células-ovo cerebrais humanas no
interior de cérebros de fetos de macaco *Macaca radiata* por volta da décima
segunda semana de gestação, tal implantação podendo levar à criação de
macacos cujos cérebros teriam sido, deste modo, mecanicamente "humanizados".

10 - Jacques Lacan, "Conférence à l'université de Milan", 12 de maio de
1972, texto inédito.
11 - Jacques Lacan, *L'Envers de la Psychanalyse*, Seuil, Paris, 1991,
sessão de 17 de dezembro de 1969, p. 35.


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Niquele
niquele@xxxxxxxxx

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