[CamaraDas] FERNANDO GABEIRA _ Vale a pena ler!

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  • To: <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Thu, 25 May 2006 14:10:40 -0300

Boa leitura, moçada!
Saint James 



        Os bandidos na mesa do café
       FERNANDO GABEIRA


       Depois de uma hora de braçadas tranqüilas, saio da piscina e 
subo numa arquibancada de madeira para tirar a toalha da mochila. Olho 
para uma edificação baixa de tijolos vermelhos, com uma placa: alameda 
Paissandu.
Diante dela, mesas brancas, cadeiras. Numa delas dorme o gato Amaral. O 
sacana do Amaral, como o chamamos: gordo, castrado, sonolento, ainda 
assim faz das suas, encostando-se nas gatas, irritando a torcida do 
Flamengo, "precisamos acabar com esses gatos no clube".
       Nesses momentos de contemplação, nuvens desenhando anéis em 
torno da estátua do Cristo, sinto uma dor por ter dedicado tantos anos 
à política, com tão escassos resultados. Invade-me uma vontade de mudar 
de vida, fazer como o narrador do romance "O Enigma da Chegada" (de 
V.S. Naipaul), que se retira para o interior e passa apenas a observar 
e escrever o que está na sua frente.
       Segunda-feira, auge da crise de violência em São Paulo, parti 
para Brasília para fazer um discurso de solidariedade e propostas, 
pensado durante o fim de semana sangrento. Não pude realizá-lo até o 
fim, embora o plenário estivesse vazio. Minha palavra foi cortada por 
um presidente ocasional. Ele vem do Norte toda segunda-feira e assume a 
presidência porque não há ninguém para abrir as sessões. Dá a impressão 
aos seus eleitores de que é importante, embora já tenha sua prisão 
preventiva decretada e inúmeras processos. Limitei-me a dizer: "Vossa 
Excelência é um bandidaço", embora soubesse que até os insultos seriam 
usados por ele junto aos eleitores como sinal de importância. A um 
jornal de Brasília, declarou que aqueles que assistem à TV no seu 
Estado pensam que é o presidente da Câmara.
       Ele é desse numeroso e sórdido grupo com que, depois de tantos 
anos de lutas e sonhos, tenho de conviver no café da Câmara: contas 
fantasmas, entidades fantasmas, ambulâncias superfaturadas, desvios de 
verbas no hospital do câncer. A própria luz do Planalto atravessando as 
vidraças e banhando os flocos de poeira que flutuam nos torna também 
fantasmas, e você olha a mancha de iogurte na mesa do café, duvida se 
aquilo não é um ectoplasma desses putos que pintam o cabelo e beliscam 
a bunda das secretárias.
       Marcola, o líder do PCC, já leu mais livros do que todos eles 
juntos; os da minha geração, que tiveram uma base político-militar -não 
no sentido de terem feito ações armadas, mas por terem curiosidade em 
relação às leis da guerra-, esses praticamente saíram de cena.
       Fiquei surpreso ao perguntar por um grande nome do Partido Verde 
alemão, que surgiu nos anos 60, e soube que, ao deixar o governo, está 
quase aposentado. Lembrei de tantos outros que se voltaram para suas 
especialidades acadêmicas, dos que morreram, dos que simplesmente deram 
uma banana para a idéia de transformar o mundo.
       De uma certa maneira, foram poupados dessa humilhação que sinto 
todos os dias ao ver que os bandidos estão triunfando na vida pública, 
que não só tomaram conta de tudo mas também tomam café ao seu lado, 
riem para você, falam sobre o tempo e reclamam da dureza da vida política.
       É uma ilusão pensar que o mundo do crime ignora essas variáveis. 
Marcola já esteve aqui depondo e, nos poucos minutos que passei pela 
sala, olhou-me com muita freqüência, como se quisesse dizer: com esse 
tipo de gente me interrogando jamais sairá outra coisa, além do desprezo 
recíproco.
       O mundo que está ruindo aos meus pés é muito desconcertante, 
pois leva consigo toda uma forma de pensar a política que nos reduz ao 
ridículo de tentar trazer a guerra urbana de São Paulo para o 
parlamento e ser interrompido por um idiota que está posando de 
presidente para seus eleitores do Norte.
       O mundo que está ruindo nos impõe a humilhação de chamar de 
Congresso brasileiro um lugar onde os dirigentes da mesa estão 
mergulhados num escândalo e nem sequer pedem licença para serem 
investigados, um lugar onde o corregedor, num ano eleitoral, foi o 
primeiro a ser multado pela Justiça por fazer propaganda fora de tempo.
       Numa semana tão importante, talvez não devesse enfatizar minhas 
frustrações. Acontece que não estou sendo humilhado sozinho, nem o está 
a pequena parcela de deputados honestos.
       Enquanto não se desvendar o elo entre as quadrilhas que queimam 
ônibus, metralham policiais, fuzilam inocentes e os bandidos que nos 
cercam, poucos vão sentir a humilhação que sinto. E quando falo de 
vínculo não me refiro a advogados, emissários ou mesmo um ou outro 
deputado que possa estar ligado ao crime organizado. Refiro-me ao plano 
simbólico tão bem expresso na célebre frase carioca: está tudo dominado.
       O tudo dominado revela-se não apenas em números mas também em 
encenações falsas, pequenas omissões, um rígido controle da agenda para 
que venha à tona o debate dos verdadeiros problemas do país.
       Aqui as matracas, os "treisoitões", as bananas de dinamite 
transfiguram-se em questões de ordem, permita-me um aparte, regimentos 
internos. Aqui e ali, no Planalto, onde instalamos um governo destinado 
precisamente a mudar tudo isso e que, no fim das contas, apenas 
exacerbou o processo, degradando-se e nos degradando.
       Só penso em aposentadoria quando vejo o Amaral, gordo, castrado 
e
sacana: divagações à beira da piscina. Não rolei tanto barranco para 
entregar o ouro aos bandidos. Se há uma boa maneira de viver os últimos 
dias, essa maneira ainda é o combate.

       contato@xxxxxxxxxxxxxx


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