[CamaraDas] Falando no Egito...

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Tue, 15 Feb 2011 16:47:16 -0200

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JOÃO PEREIRA COUTINHO - Liberdade e revolução

O fato de derrubarmos um governo opressivo não significa
necessariamente que o próximo será melhor
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NADA COMO uma boa revolução para deslumbrar os deslumbrados. Sempre foi assim.
Em 1789, a França abria um novo capítulo na história do mundo e um
jovem parlamentar francês, Charles-Jean-François Depont (1767-1796),
escrevia ao seu amigo Edmund Burke (1729-1797), o parlamentar irlandês
que fora decisivo na causa independentista dos colonos americanos.
Na sua missiva, Depont fazia uma pergunta retórica: Burke aprovava a
queda da Bastilha e a nova era de liberdade que prometia banhar a
França e a Europa? A pergunta era retórica porque Depont estava
convencido de que sim: quem, em juízo perfeito, se opõe à "liberdade"?
A resposta de Burke está contida em "Reflexões sobre a Revolução em
França" (1790), obra singular na história do pensamento político. E
pode ser resumida numa única palavra: depende.
A "liberdade", em abstrato, é um valor inestimável, responde Burke.
Mas, na prática, será que somos capazes de festejar a "liberdade" de
um louco que abandona a cela pronto para aterrorizar a vizinhança?
A metáfora de Burke é demolidora precisamente porque dinamita a
"política de abstração" dos revolucionários franceses. Contra esses
valores, Burke faz uma apologia do ceticismo e da prudência: o fato de
derrubarmos um governo opressivo não significa necessariamente que o
próximo será melhor.
Os jornalistas ocidentais que viajaram para o Cairo nunca leram Burke.
E pouco sabem sobre a história das revoluções na era moderna: na
França, Rússia e, claro, no Irã.
O caso iraniano é particularmente importante porque existem
semelhanças de comportamento nos observadores ocidentais: em 1979, o
Irã enterrava uma monarquia opressiva e corrupta e a "intelligentsia",
com igual idealismo, olhava para o exilado Khomeini como "o Gandhi da
Pérsia".
Escusado será dizer que Khomeini não foi o Gandhi da Pérsia, antes, o
patrono de uma teocracia violenta que hoje treina e financia grupos
terroristas como o Hamas, em Gaza, e o Hizbollah, no sul do Líbano.
Isso significa que o caminho do Egito será o do Irã três décadas atrás?
Ninguém sabe. Ou, como diria Burke, depende. E esse desconhecimento
deveria refrear o entusiasmo infantil que a imprensa e a televisão
despejam sobre nós.
Para começar, o Egito não parece ter condições materiais, culturais ou
institucionais para garantir uma democracia liberal, respeitadora dos
direitos individuais e, fato crucial, em que a religião não domine a
vida política e imponha as suas regras.
Pelo contrário: o único partido da oposição a Mubarak organizado e
disciplinado -a Irmandade Muçulmana- não garante esse quadro
"democrático" e "liberal". Basta olhar para o Hamas em Gaza.
Por último, é importante recordar o básico: não existem democracias
sem democratas. Anne Applebaum, uma especialista na história do
comunismo, escrevia recentemente na "Spectator" que os povos que
desejavam a libertação do regime comunista na Europa do Leste
identificavam-se com o modelo democrático ocidental.
Ler os textos políticos de Václav Havel ou Lech Walesa é encontrar
apologias expressas a uma liberdade tutelada pela lei em que a
dignidade da pessoa humana e a iniciativa individual são respeitadas.
Não existe nenhum Václav Havel ou Lech Walesa no Egito de hoje. E é,
no mínimo, aberrante que os jornalistas e comentadores ocidentais
confundam os milhares de manifestantes da praça Tahir -muitos deles
genuínos democratas- com os 80 milhões de egípcios que estão longe,
muito longe, desse tipo de cosmopolitismo.
Segundo as pesquisas conhecidas, realizadas pelo conhecido Pew
Research Center, em 2010, a maioria dos egípcios deseja uma maior
participação do Islã na vida política, não olha para a democracia com
grande entusiasmo e até apoia esmagadoramente os preceitos penais mais
bárbaros da sharia.
O Egito livrou-se de um ditador. Mas é possível e provável que o
futuro seja pior -para o Egito, o Oriente Médio e para nós,
ocidentais.
É por isso que, nos delírios românticos dos últimos dias, a única
coisa sensata foi dita pelo vice-presidente Omar Suleiman na sua
comunicação ao país. Disse ele: "Espero que Deus nos ajude".
Nem mais. Só Deus, agora, pode ajudar o Egito.

jpcoutinho@xxxxxxxxxxxx


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Niquele
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