:::Nefelibatas::: Ibsen Pinheiro

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  • Date: Mon, 3 Oct 2005 14:28:54 -0300

 
Um quadro político

Ibsen Pinheiro 


Estou convencido de que o deputado José Dirceu dificilmente terá no plenário da 
Câmara um julgamento  justo, mesmo que seja absolvido, como não terá um 
julgamento imparcial se for condenado, por uma única razão: não se trata de 
estabelecer uma relação simplista entre culpa e punição, melhor traduzida pela 
noção judaico-cristã de responsabilidade moral. Pecado com expiação é como se 
exerce a justiça divina, sem necessidade de qualquer processo legal, devido ou 
não.


Já no caso do ex-ministro Chefe da Casa Civil, estamos tratando é da  justiça 
dos homens, onde a verdade presumida se alcança por meio de uma sentença - 
judicicial ou não -  correspondente a uma convenção pragmática destinada a 
estabelecer a segurança jurídica nas relações sociais, para o que está 
autorizada a acertar ou  errar com o consentimento da consciência coletiva, 
pagando, porém, um pedágio: o devido processo legal. Nele, o rigorismo dos 
procedimentos é tão importante quanto as conclusões, com base num princípio 
imutável - a  presunção de inocência e seu principal corolário, o de que a 
condenação de um inocente não vale a absolvição de cem culpados.

 

Tenho ouvido e lido, no bojo desta crise, que esse princípio, embora universal, 
não vale para os processos políticos, como se, por serem políticos, não fossem 
processos e se regulassem por uma jurisprudência brasileira associada à pizza, 
segundo a qual se inverte o ônus da prova e é o acusado que deve provar-se 
inocente. Curiosamente, por essa interpretação  a presunção de inocência só se 
aplica aos que dela não necessitam, por não serem suspeitados, denegridos ou 
mesmo acusados. Não se pense que disso é  culpada a Câmara dos Deputados, pois 
numa crise dessa extensão, profundidade e ampla repercussão, ela é tão vítima 
quanto as suas vítimas


 

Age-se como se os processos políticos (tanto como os judiciais, os 
administrativos ou mesmo os esportivos) não estivessem subordinados aos 
parâmetros  do artigo 5º da Constituição Federal relativos ao contraditório e à 
ampla defesa. A recente e necessária intervenção do Supremo Tribunal Federal, 
em correta  e corajosa decisão de seu presidente, Ministro Nelson Jobim, sustou 
a violação praticada pela Mesa da Câmara dos Deputados,  que havia suprimido 
uma instância de defesa. Nas críticas que se seguiram à ordem judicial, 
desprezou-se o postulado, também do artigo 5º, segundo o qual nenhuma lei  
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

 

Já o princípio anti-pizza, seja qual for sua extensão, no caso presente tem um 
nome a uma vítima: José Dirceu. Com ele cassado, já que Luiz Gushiken não tem 
mandato, estarão satisfeitos todos os apetites, o dos inocentes úteis e também 
o dos culpados de clero baixo, esquecidos ou voluntariamente marginalizados, 
alguns por sua própria desimportância  e todos à espera de uma cabeça coroada 
no cesto da gilhotina. Conscientemente ou não , torcem  pela degola ilustre,  
com fundada  esperança na sabedoria sertaneja  que vê passar uma boiada 
enquanto as piranhas estão ocupadas. A turba que livrou Barrabás nada sabia de 
pizzas e piranhas, mas acertou em cheio.


 

Não tenho como avaliar  se José Dirceu sabia ou não  do mensalão. A acusação, 
por enquanto, sente-se dispensada da prova e inverteu a presunção - "se não 
sabia, devia  saber" - estranha  premissa  investigatória que remete os 
acusados à incerteza clássica de todos os réus políticos: denunciar o processo 
ou ajustar-se à sua lógica. Quase todos, com a ilustre  exceção de Dmítrov,  
sucumbiram à esperança, espécie de síndrome de Estocolmo que afeta todas as 
vítimas, de Sócrates a Prestes, passando por Giordano Bruno ou Dreyfus,  sem 
esquecer o mais ilustre de todos, condenado pelo Sinédrio de Jerusalém.


 

Já se percebe, no entanto, que José Dirceu,  praticou dois gestos insólitos no 
amesquinhamento geral dos comportamentos:  assumiu  suas responsabilidades 
políticas e negou-se a renunciar, muito mais do que fizeram outros, acima ou 
abaixo de sua hierarquia e comprovando o que já se sabia, que ele é agora, no 
sofrimento, o que foi nos momentos de glória: um quadro político.
Só por isso já merece respeito.


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