:::Nefelibatas::: Recordar é viver... (agosto de 2003)

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  • To: "CamaraDas" <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Tue, 19 Jul 2005 11:43:02 -0300

      O triunfo da razão cínica
      
      por César Benjamin  
      A crise do PT é a mais profunda crise da esquerda brasileira. para o bem 
e para o mal, foi o PT a vanguarda política da nossa esquerda nos últimos vinte 
anos.



      O Partido dos Trabalhadores está morrendo. Nele não resta mais nenhum 
espírito transformador, nenhuma autenticidade, nenhum impulso vital. Não tem 
princípios a defender. Não tem mais referências sobre coisa alguma, pois suas 
posições históricas – sobre a previdência, os transgênicos, a política 
econômica, o FMI ou qualquer outro assunto – estão sempre prontas a ser 
sacrificadas no balcão em que se fazem as negociações do momento.

      O PT não tem, nem pretende mais ter, projeto de sociedade. Tem apenas 
projeto de poder. Essa volúpia desenfreada, sem ideal, cria o ambiente propício 
ao cinismo e à corrupção crescentes, a que estamos assistindo, pois a melhor 
maneira de se manter em cima é copiar os poderosos e se aliar a eles. Hoje, o 
militante de que o PT precisa, o que é valorizado pela direção, é o carreirista 
obcecado pelo sucesso rápido e a trajetória meteórica, disposto a dizer amém, 
pronto a desmentir amanhã, por qualquer pretexto, aquilo que defendia até hoje.

      Os que construíram o partido e não se corromperam nele não têm mais 
lugar. Tornaram-se um estorvo. São enxovalhados. Estão sendo substituídos por 
filiados pela Internet e por gente arrebanhada pelos esquemas políticos 
tradicionais. Esquemas caros, como se sabe, pois esvaziados da militância 
voluntária que impulsionou o partido quando ele era jovem. Para financiar essa 
operação e esse novo modo de ser, é cada vez mais tênue, no andar de cima, a 
separação entre política e negócios. Candidatos a deputado, até ontem meros 
assalariados, falam abertamente em levantar 10 ou 20 milhões de reais para suas 
campanhas, sabe-se lá de que forma. Candidatos a cargos mais altos aventuram-se 
em todos os tabuleiros. São as regras do jogo. Não há mais pudor. Todos 
caminham nus pelos salões.


      Valores esquecidos
      O PT tornou-se uma via de ascensão individual para a afluência material e 
o poder. Multiplicam-se as pessoas que se tornam subitamente importantes e que 
se sentem, assim, sem ter história nem biografia, sem ter passado nem futuro. 
Pobres de espírito, sempre ocupados nas articulações do momento – para a 
próxima convenção, a próxima nomeação ou a próxima eleição –, não lêem um 
livro, não se dedicam a conhecer bem assunto nenhum, não são solidários às 
dificuldades do povo brasileiro, não pretendem ser fiéis a uma idéia de nação. 
Suas lealdades se esgotam nos limites do grupo de interesse a que estão 
vinculados. Valores como humildade, perseverança e ideal estão definitivamente 
fora de moda. Tudo agora é cálculo. Liberado para florescer, o oportunismo tem 
pressa. Tempo é poder. Tempo é dinheiro.
      A crise do PT é a mais profunda crise da esquerda brasileira. Para o bem 
e para o mal, foi o PT a vanguarda política da nossa esquerda nos últimos vinte 
anos, e dentro dele foi vanguarda a Articulação. Além de perseguir com 
coerência uma estratégia política e controlar com competência os principais 
aparatos de poder, ela propunha a toda a esquerda uma forma de luta 
estratégica, que, uma vez vitoriosa, seria capaz de abrir um período novo de 
ação política em nosso país: a eleição de Lula à presidência. Participávamos de 
múltiplas iniciativas militantes no cotidiano, e a cada quatro anos renovávamos 
nossa esperança em uma possibilidade especial, a de colocar Lula lá.

      Durou menos de um ano a transição de um auge a uma crise. Hoje, a 
Articulação tem um poder que a esquerda nunca teve, mas não é vanguarda de mais 
nada, nem para o bem nem para o mal. É, simplesmente, outra coisa: um grupo que 
ocupa posições de mando em um Estado corrompido e conservador, forte para 
premiar e punir, fraco para transformar. Adaptado a ele, usa essas posições 
para negociar tudo com todos. Falar de um “governo em disputa” era um erro há 
nove meses. Hoje é apenas cumplicidade com o charlatanismo.

      A cooptação do PT pelo sistema de poder é a mais vergonhosa de todas, 
pois vem desassociada de qualquer ganho real para a base social que ele deveria 
representar. Ao contrário, ele aceitou ser o algoz dessa base: a contar do 
início do governo Lula, teremos 1 milhão de novos desempregados em fevereiro de 
2004, e os rendimentos do trabalho estão em queda livre. A previdência pública 
foi desmontada, e anuncia-se para breve o acerto de contas com a legislação 
trabalhista. Comparativamente a isso, a socialdemocracia européia teve uma 
trajetória brilhante.

      Nenhum de nós pede que Lula faça uma revolução. Nenhum desconhece o 
cenário, nacional e internacional, que nos cerca. Pedimos apenas decência, 
espírito republicano e compromisso com um capitalismo regulado. Basta isso para 
que sejamos chamados de radicais, num país em que política e indecência sempre 
foram mais ou menos a mesma coisa, em que o Estado sempre foi um espaço de 
negociatas e em que, em vez de capitalismo, prevalece a bandalha. Insistimos 
nessas três coisas, porque por menos do que elas a própria atividade política 
já não vale a pena. Por menos, é melhor ir para casa.

      O que nos afasta do PT não são posições adotadas nessa ou naquela 
questão. São valores e princípios. É esse ilimitado pragmatismo de quem, uma 
vez no poder, não pode correr risco nenhum, nem mesmo o risco de dizer a 
verdade. No lugar da verdade, marketing, dissimulação e engodo, uma enorme 
operação de deseducação política do povo brasileiro. No lugar de uma ação 
coletiva, de baixo para cima, um líder que desmobiliza e que, como todo 
medíocre, começa a se considerar semideus. No lugar de um projeto, espertezas, 
um discurso para cada interlocutor. No lugar de diálogo, ameaças, chantagens, 
nomeações, demissões. No lugar da luta de idéias, movimentos sempre nas 
sombras. É o triunfo da razão cínica.


      Herança duradoura
      O chefe disso chama-se Luís Inácio Lula da Silva. Sua principal herança, 
para a esquerda brasileira, não será formada a partir de acertos e erros aqui e 
acolá, naturais na trajetória de qualquer pessoa. Sua herança mais duradoura 
será construída pela sistemática sinalização de valores negativos, que ele 
ajudou a difundir amplamente nos últimos anos. Isso é que é imperdoável. 
Arrogante com os “de baixo” e subserviente aos “de cima”, desqualifica-se, pois 
o que se espera de um líder popular é exatamente o contrário: que seja humilde 
com os de baixo e firme com os de cima. Aos pobres, “seus filhos”, pede 
infinita paciência, enquanto atende com presteza aos reclamos dos ricos, os 
financiadores de campanhas. Desemprega 1 milhão de brasileiros e anuncia-se 
como aquele que resgata a auto-estima do Brasil. Considera-se corajoso porque 
tira direitos de enfermeiras, professores e barnabés, conduz serviços 
essenciais ao colapso, enquanto se dispõe a pagar pontualmente mais de 150 
bilhões de reais em juros aos rentistas só neste ano. É o novo líder dos 
trezentos picaretas que denunciava. Logo lhes entregará mais ministérios.

      Seu governo passará, mas sua liderança deixará na esquerda um extenso e 
duradouro legado: milhares de pessoas despreparadas e sem valores, que 
aprenderam no PT que fazer política é gerenciar interesses. Esses ficarão ainda 
por muito tempo, na forma de uma geração de gente perdida, que nunca lutou e 
foi derrotada. É isso que dói.
     

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