[CamaraDas] Não viu quem não quis...

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  • Date: Sat, 13 May 2006 12:28:46 -0300

Íntegra da entrevista com César Benjamin 

ELIANE BRUM (Revista Época)

     
           
       Dados pessoais
      Nasceu no Rio, filho de um coronel do Exército e de uma química, tem 51 
anos, solteiro, três filhos


       Carreira
      Cinco anos como preso político, exilado na Suécia, fundador e 
ex-dirigente do PT

       Atividades atuais
      Editor da Contraponto e coordenador do movimento Consulta Popular

      Fotos: Marcelo Corrêa/ÉPOCA
     





      ÉPOCA – Você foi fundador do PT e um dos quadros mais importantes até 
1995, quando deixou o partido por discordar do financiamento da campanha de 
1994. Como foi isso?
      César Benjamin - Em 1994 eu ingenuamente propus que abríssemos nossas 
contas e pedíssemos aos demais candidatos que fizessem o mesmo por uma questão 
de transparência diante da opinião pública. Sempre caía no vazio. Até que uma 
vez o próprio Lula disse que nós não faríamos isso, como quem diz: 'Muda de 
assunto'. Depois da campanha, vieram à luz financiamentos de bancos e 
empreiteiras que nunca haviam sido discutidos na direção nem do partido nem da 
campanha. Eu era da direção de ambos e não sabia. Isso me alertou sobre o que 
estava acontecendo. Eu achava que um partido como o PT não podia tolerar uma 
prática deste tipo.

      ÉPOCA – Para você, naquele momento já havia evidências de corrupção?
      Benjamin - Havia uma claríssima evidência de prática sistemática de caixa 
dois. Eu tentei discutir isso na direção. Estavam amedrontados porque era o 
grupo do Lula e do Zé Dirceu, duas figuras da maior presença. Eu achei a 
questão tão grave que resolvi levar ao encontro nacional do partido, no 
Espírito Santo, onde havia de 600 a 800 delegados. Fiz um pronunciamento da 
tribuna, alertando o partido sobre a gravidade do que estava acontecendo. A 
plenária era um retângulo, a mesa na frente. Comecei a falar, usei a expressão 
de que estávamos diante do ovo da serpente e que o partido claramente tinha de 
ter consciência do perigo representado pelo que estava ocorrendo. Eu estava 
falando e vi o Zé Dirceu levantar-se e ficar de frente para o plenário e de 
lado para mim. Eu continuei falando e o vi fazendo movimentos diante do 
plenário. Em seguida houve uma troca de gestos entre ele e alguns delegados do 
ABC (paulista). Este grupo se levantou e partiu para cima de mim para 
interromper pela força o meu pronunciamento.

      ÉPOCA – Na porrada? Quem eram?
      Benjamin – Eram umas 20, 30 pessoas. Vieram para me dar porrada. Meus 
amigos levantaram, foi uma confusão. A convenção foi interrompida. Lembro que 
se juntou a este grupo o (Antônio) Pitanga, do Rio, marido da Benedita (da 
Silva, ex-ministra), mas era um grupo de Santo André. Olha Santo André 
aparecendo aí.

      ÉPOCA – Emblemático, né?
      Benjamin – É. Na seqüência eu fiz minha carta de desfiliação porque 
estava sendo eleita a nova direção nacional e o Zé Dirceu era candidato a 
presidente, trazendo consigo as figuras lombrosianas que vinham do FAT (Fundo 
de Amparo ao Trabalhador)… essas figuras que estão hoje nos jornais. Até onde 
eu sei este tipo de prática começa no início dos anos 90 na gestão do FAT, 
quando o Delúbio Soares era o representante da CUT no FAT. Começa então um 
zum-zum sobre desvio de recursos do FAT, mas ainda meio longínquo, que não 
estava claramente dentro do PT. Mas já tinha uma relação com a Articulação, que 
é o grupo do Lula dentro do PT. Era contra isso que eu estava protestando. 
Delúbio, Silvinho (Pereira). Me desfilio no momento que esse grupo entra na 
direção nacional. Um grupo sem nenhuma luz própria. Nenhum deles diz 'a' com 
'b'. São trazidos pelo Lula e pelo Zé Dirceu, ocupam a direção, e para mim fica 
claro que há uma transformação qualitativa no PT.

      ÉPOCA – Enquanto você levava porrada, o Lula fazia o quê?
      Benjamin - Ele estava lá, mas não participou evidentemente desta tropa de 
choque. Também não impediu. Eu me desliguei do partido porque ficou claro que 
havia um aval do Lula e do Zé Dirceu para que esta prática se difundisse dentro 
do PT. O Lula vem sustentando a tese de que foi traído, que não sabia de nada. 
Isso poderia ser verossímil se nós estivéssemos diante de um caso isolado. 
Eventualmente um chefe de governo pode ser surpreendido por uma decisão 
intempestiva, errada, de um subordinado. O que está aparecendo agora não é 
isso. Meu testemunho é muito claro sobre isso. O que aconteceu foi a aplicação 
no âmbito do governo federal de práticas que existem há 15 anos dentro do PT e 
da CUT - sempre dentro do círculo mais íntimo do Lula.

      ÉPOCA - Por isso você é um dos poucos brasileiros que não está perplexo…
      Benjamin - Não estou perplexo porque foi por isso que saí do PT há 10 
anos. Quando ganharam o governo federal transportaram o mesmo esquema e o mesmo 
grupo. Só que numa escala muito maior, esquecendo que o governo federal é uma 
instância diferente de uma direção partidária. Direção partidária é muito mais 
protegida, é quase uma entidade privada. O governo federal é o centro das 
atenções da nação. Aumentaram muito a escala, estavam operando com muita gula, 
havia gente incomodada. Estenderam as linhas mais do que seria sustentável. O 
que eu estou insistindo é que isso é uma prática sistêmica. E longa.

      ÉPOCA – Neste sentido, o que é essa dobradinha Lula-Zé Dirceu que o 
governo tenta separar a todo custo agora?
      Benjamin - Um precisou do outro. O Zé Dirceu tem formação como quadro de 
esquerda e precisou do Lula para o projeto de chegar ao governo federal. E o 
Lula precisava do Zé Dirceu como um organizador. Se estabeleceu uma relação de 
simbiose. Qualquer um que conhece os dois sabe do seguinte: Delúbio Soares não 
fez nada que não seja autorizado pelo Zé Dirceu. E o Zé Dirceu não autorizou 
nada que o Lula não tivesse conhecimento. Qualquer um que tenha convivido com 
eles sabe qual é a cadeia de comando.

      ÉPOCA - O Lula manda..
      Benjamin - O Lula manda. Quando o Lula diz agora que não sabia de nada eu 
poderia acreditar se tivesse sido um episódio infeliz. Mas passar 10, 15 anos 
no mesmo grupo e dizer que não sabe de nada é um pouco demais para a minha 
parca inteligência.

      ÉPOCA – Você fala que o PT se pretendia o partido original e, agora, na 
refundação, fala em voltar ao partido original. O Lula seria o homem original? 
Foi este o fascínio?
      Benjamin - A sociedade brasileira chegou a um momento de sua história em 
que o povo tem de ser protagonista. Se a gente olhar pra trás, a formação do 
povo brasileiro é muito recente. Talvez a primeira luta verdadeiramente 
nacional tenha sido a abolição da escravatura, 120 anos atrás. O povo começa a 
aparecer na história do Brasil no século XX. O Brasil não foi organizado para o 
seu próprio povo, mas para ser uma empresa exportadora de mercadorias. Para ser 
mão de obra, não povo. No entanto, o Brasil contemporâneo é um país urbanizado, 
a população cresceu, tem acesso à informação. Tudo isso faz com que o povo 
brasileiro ganhe um novo estatuto e force a sua entrada na História. O povo 
apareceu em alguns momentos no século XX. No suicídio de Getúlio Vargas ele 
barra o golpe, em 1961 ele barra outro golpe, nas Diretas vai para a rua. A 
sociedade brasileira passa a ter uma enorme necessidade do aparecimento de uma 
liderança que represente a entrada do povo na História. E no fim dos anos 70, 
com a ditadura fraca, aparece o Lula, que tem todo physique du rôle desta 
tarefa. Migrante nordestino, pobre, operário metalúrgico, sindicalista, de 
grandes empresas, em São Paulo. Apareceu o Messias. Tem toda essa força 
simbólica que de certa maneira se mantém até hoje. Ocorre que o Lula é um erro 
de pessoa. Tem todas as características do líder, mas não é esse líder. Na 
Idade Média também houve muitos Cristos falsos que se anunciavam como Messias.
     






      ÉPOCA – Quando o Lula dá sinais de que não era este líder?
      Benjamin - Em 1989 o Lula não ganhou a eleição porque não quis ganhar a 
eleição contra as elites. A campanha estava tão quente que os institutos faziam 
pesquisas diárias e nós tínhamos acesso. O Lula tinha ultrapassado o (Fernando) 
Collor com uma curva ascendente, e o Collor estava com uma curva descendente e 
já em segundo lugar. O debate estava marcado para sexta-feira à noite. A Rede 
Globo pediu para antecipar para quinta-feira. Quando o Lula entra no debate com 
o Collor e se entrega, ele estava dizendo: nestas condições eu não quero. O que 
eu percebi convivendo com ele naquele momento é que ele percebeu que tinha a 
eleição na mão, mas também que o nome dele estava vetado para a elite, que 
seria uma posse presidencial numa situação de crise. Ele não agüentou isso. Ele 
claramente não teve estatura para ganhar uma eleição contra a elite brasileira.

      ÉPOCA – Mas houve o caso da Luriam, a filha com Miriam Cordeiro. Não 
teria sido por isso que ele estava abatido no debate?
      Benjamin - Eu acho que não. Ali ele fez uma opção de não ganhar a 
presidência contra a elite brasileira. E a partir dali ele começa a construir 
as pontes com a elite. Ele quer ser presidente, mas com a elite. Não contra 
ela. Mas este processo demora alguns anos. Ele tem de dar sucessivas 
demonstrações, tem de mudar o PT, que precisa ficar menos militante, e aí 
começa o processo dos anos 90, que é o amolecimento do PT. O marco deste 
amolecimento é a convenção de 1995, quando Lula e Zé Dirceu trazem os chamados 
operadores para a direção partidária. A partir daí se introduz no PT o circuito 
do dinheiro, que vai aumentando enquanto a militância vai diminuindo. As 
campanhas se tornam cada vez mais caras e se faltam militantes, compra-se 
gente. O PT foi se acostumando a essas benesses e foi precisando de cada vez 
mais dinheiro. Neste momento o partido já está destruído. Tem de fazer grandes 
campanhas sem militância. O militante é barato, mão de obra gratuita bota 
gasolina no carro, faz rifa para rodar panfleto. Se desarma isso o partido 
entra no mundo do dinheiro e se torna muito caro. Se estabelece um círculo 
vicioso. Onde tem muito dinheiro? Entre os ricos. Com quem você tem de 
conversar, a quem tem de agradar? A quem tem muito dinheiro. Foi um processo de 
adaptação do PT ao figurino que o Lula precisava para chegar ao poder apoiado 
pelas elites. Hoje o PT não tem condição de se auto-reformar porque ao longo 
destes anos a rede de cumplicidade tornou-se grande demais.

      ÉPOCA – Por mais ingênua que a pergunta pareça, por que fizeram isso?
      Benjamin - Porque é mais fácil. Você passa 10 anos fazendo política na 
pobreza, se reunindo com a militância, que te cobra, tem idéias, tem posições. 
Na hora que precisa rodar um panfleto, faz uma rifa. Cansei de rifar pernil 
para arrumar dinheiro. Aí, de repente, você chega nos anos 90 e descobre que já 
é uma figura tão importante na política brasileira que janta com cinco 
empresários e sai com R$ 300 mil. Não é muito mais fácil? Porque eu vou rifar 
pernil, aturar militante, fazer reunião?

      ÉPOCA – É mais fácil, mas o projeto vai pelo ralo…
      Benjamin - Há um processo de atrofia do ideal e há um processo de gostar 
das facilidades da grande política institucional. Aumenta o peso das bancadas, 
das administrações, milhares de quadros se profissionalizam e com isso o PT 
rompe sua ligação com a sociedade. Em uma das últimas convenções fizeram um 
levantamento e mais de 90% dos delegados eram funcionários do próprio partido. 
Passou a ser um partido de si mesmo. E seus encontros nacionais passaram a ser 
um momento em que as diversas correntes internas ajustavam as suas relações de 
poder. Isso foi vivido como ascensão social para um grande número de quadros, 
de lideranças do PT, que mudaram individualmente de classe social. Passaram a 
ter um nível de vida que não tinham e viveram isso muito alegremente.

      ÉPOCA – Você acha que este processo gerou o cadáver do Celso Daniel 
(prefeito de Santo André assassinado em 2002)?
      Benjamin - Eu não acho, tenho certeza. E houve muitos cadáveres morais. 
Este foi o físico.

      ÉPOCA – Voltando ao papel de líder, por que você acha necessário o homem 
certo? Isso não é uma via messiânica, de salvador da Pátria?
      Benjamin - Salvador não, mas existe o papel da liderança. A minha maior 
crítica ao Lula até pouco tempo não era na esfera propriamente da Política. Mas 
a sinalização de valores negativos. Toda liderança tem um papel multiplicador. 
Se você tem um presidente da República correto, honesto, honrado, o sujeito que 
está na máquina pública e quer roubar fica mais cuidadoso e mais constrangido. 
Mas se ele olha para cima e vê que é bandalha, ele se libera. Nestes anos todos 
o Lula foi um líder que sinalizou valores negativos. Como se orgulhar de não 
estudar, ter uma vida muito folgada em termos de recursos, com muita mordomia. 
Com isso há um processo de seleção negativa. As melhores pessoas vão se 
afastando ou vão ficando na obscuridade e as piores pessoas vão crescendo, vão 
subindo.
     





      ÉPOCA – O que você acha que os 52 milhões de eleitores do Lula viram nele 
para não ver o que estava ali, já que na campanha de 2002 ele e o PT já não 
escondiam que tinham mudado?
      Benjamin - O povo manteve aquela imagem do Lula que poderia encarnar o 
papel de representá-lo no poder. Mas por outro lado houve uma rede de 
cumplicidade num anel mais fechado. Nenhum esquema fisiológico ou corrupto atua 
por 10, 15 anos sem deixar vestígios. As histórias começam a circular, não há 
prova material porque só quem é da máfia é que sabe o horário e o destino da 
mala. Mas as histórias existem. O PT manteve o discurso da ética para consumo 
externo enquanto dentro do PT estas histórias correm há 10 anos. e isso gera 
hipocrisia, que é muito corrosiva. Neste ponto acho que a liderança do Lula vai 
deixar uma herança terrivelmente negativa. Nestes 10 anos foi formada uma 
geração de militantes, cuja característica essencial é o individualismo, o 
pragmatismo, a idéia da carreira. Neste ponto é uma situação inédita na 
esquerda brasileira, que cometeu muitos erros ao longo da sua história. Mas 
nunca teve uma liderança que fosse corrompida. (Luiz Carlos) Prestes morreu 
pobre, equivocado, mas tem um legado moral do Prestes, um legado moral do João 
Amazonas, um legado moral do (Leonel) Brizola. Podemos falar aqui de dezenas de 
militantes e de lideranças que possam ter se equivocado na sua trajetória, como 
qualquer um se equivoca, mas não disseminaram os anti-valores. Minha crítica ao 
Lula não é que ele se equivocou, isso é perfeitamente razoável. As pessoas se 
equivocam. Minha crítica é que ele disseminou dentro da esquerda anti-valores 
que a esquerda não tinha. E estes anti-valores se impregnaram profundamente 
dentro do PT, do movimento sindical. Estão disseminados e vão continuar a 
existir longamente na história da esquerda brasileira. Neste aspecto a 
liderança do lula é um ponto de inflexão na história esquerda brasileira. O 
Lula entrega uma esquerda pior do que a que ele recebeu quando se tornou seu 
líder.

      ÉPOCA - Lembrando da campanha de 2002 com o que se sabe hoje sobre o PT, 
de certo modo ela não foi hipócrita, com exceção da corrupção. Lula fez 
alianças inimagináveis para o PT dos velhos tempos, escreveu a Carta ao Povo 
Brasileiro, desfilou pelos salões dos quatrocentões paulistanos, usou terno de 
grife, adotou o Duda Mendonça. Você acha que o que o eleitor de esquerda pensou 
é que ele estava mentindo para a direita?
      Benjamin - Acho que se estabeleceu uma relação muito perversa entre o 
Lula e a esquerda. A partir de um certo ponto o Lula percebeu que ele teria o 
apoio da esquerda em qualquer circunstância. Ele foi cada vez respeitando menos 
a esquerda. E a esquerda foi aceitando esta liderança que a humilhava. Os 
grupos de esquerda dentro do PT não conseguem romper com isso porque a 
expectativa de chegar ao governo se dá através do Lula. E isso justifica tudo. 
E chegar ao governo significava que a partir daí se mudaria tudo. E aí chegou 
ao governo de uma maneira que não podia mudar mais nada. Aí ocorre uma 
metástase. Aqueles tumores que já existiam no PT há 10 ou 15 anos fazem 
metástase. Imagina o deslumbramento de um Delúbio Soares podendo ligar para o 
presidente de uma estatal e falar em nome do presidente da República. Imagina o 
deslumbramento de um Delúbio Soares podendo convidar empresários para jogar 
futebol no sábado com o presidente na Granja do Torto. Isso é o paraíso do 
tesoureiro. Imagina o deslumbramento do Delúbio Soares sendo colocado na lista 
oficial de uma delegação brasileira, sentando na mesa com o presidente da 
República e com os ministros do Estado e negociando com um governo estrangeiro. 
E a foto dele saindo na imprensa junto com da delegação brasileira, como 
apareceu tempos atrás. O que o presidente está dizendo? Este é o homem. Façam 
negócios com ele porque ele é o meu homem. A rede de corrupção que estava sendo 
montada possivelmente era a maior da História do Brasil.

      ÉPOCA – Mas você acha que alguém como o Lula também queria dinheiro?
      Benjamin - Eu não sei, não diria isso. Mas nesta metástase houve também 
enriquecimento pessoal.

      ÉPOCA – Você se refere ao filho do Lula e o negócio com a Telemar?
      Benjamin - Vamos ser muito benevolentes. Vamos imaginar que tudo foi 
feito como eles disseram. O filho do presidente recebeu R$ 5 milhões de uma 
concessionária de serviços públicos sem que houvesse nenhuma troca de favores. 
Vamos aceitar isso. Mesmo assim não pode. Imaginando o melhor cenário não pode. 
Porque se pode isso, começa a poder muita coisa. O Lula não tem demonstrado à 
nação que tem consciência da responsabilidade do seu cargo. Se não sabia antes, 
tinha de ter desfeito o negócio. Ele deu sucessivas provas da sua leniência.

      ÉPOCA - Você diz que o governo Lula recicla a aliança dos ricos com os 
pobres. Como é isso?
      Benjamin - O sistema de poder no Brasil está organizado de maneira muito 
equivocada, isso desde antes do governo Lula. Você tem as forças de natureza 
supranacional, representantes dos credores brasileiros, que ocupam o Banco 
Central e o Ministério da Fazenda. Esse é lugar cativo. A partir desta posição 
controlam a política monetária, cambial e fiscal e a execução do orçamento. O 
Ministério da Fazenda apequena e subordina os demais ministérios e com isso as 
forças supranacionais controlam o estado brasileiro. As demandas de natureza 
subnacional, algumas legítimas, dos estados, outras de lobbies, se expressam no 
Legislativo. Este Executivo que é controlado pelos credores estabelece 
negociações nas margens com as forças subnacionais. Para o povo pobre se faz 
algumas políticas sociais. No caso do Lula, basicamente o Bolsa-Família. Repare 
que neste arranjo ninguém cuida da nação. Os interesses supranacionais estão 
muito bem defendidos, os subnacionais em alguma medida são atendidos, algum 
nível de política social se faz. E a nação? E o Brasil? E os interesses 
estratégicos do País? Quem os defende? O Lula assume e encontra este sistema de 
poder já pronto. Não é ele que inaugura. Mas era o dever político e moral dele 
alterar este sistema. Foi eleito para isso. O que ele fez foi radicalizar este 
sistema de poder: o seu presidente do Banco Central é mais vinculado ao sistema 
financeiro internacional que os anteriores, as negociações no Congresso foram 
mais fisiológicas que as anteriores e a política social é a área que ele cuide 
mais para que ande, o Bolsa Família. Assumiu dentro do seu governo uma forma de 
organização do poder que é essencialmente conservadora. E isso reproduz uma 
coisa muito perversa na política brasileira que vem desde o Collor. A aliança 
dos mais ricos com os mais pobres. Os mais ricos são atendidos pelo Banco 
Central e o Ministério da Fazenda. E os mais pobres pelo Bolsa Família. A 
aliança dos mais pobres com os mais ricos é casamento de girava com elefante. 
Com o tempo, se desfaz. Foi assim com Collor, com FHC, com Lula. A elite 
precisa reinventar esta aliança a cada quatro anos. A partir da Constituição de 
1988, que dá direito a voto aos analfabetos, são os mais pobres que decidem a 
eleição. Esta é a tragédia do brasil contemporâneo: a capacidade que os mais 
ricos tem de reciclar a aliança com os mais pobres a cada quatro anos. 

     





      ÉPOCA – Qual é a alternativa?
      Benjamin - Qual era a grande mensagem da campanha do PT em 89? A aliança 
do Trabalho e da Cultura com os pobres. Intelectualidade, classe operária, as 
estatais, os pobres. O Collor representava a aliança espúria dos mais ricos com 
os mais pobres, que ele chamava descamisados. Ele ganha e estabelece esta 
aliança no plano simbólico, que rapidamente se desfaz. Em 1994 o Plano Real 
permitiu a reciclagem desta aliança. De um lado um plano de grande interesse do 
Capital, mas que propiciou um ganho real de renda para os mais pobres ao 
controlar a inflação. Há uma convergência de interesses no governo FHC, mas não 
só no plano simbólico, também no plano material. E o Lula é o terceiro 
presidente eleito depois do regime militar. E a tragédia é que ele abandona o 
projeto original do PT, que era a aliança do mundo do trabalho e da cultura com 
os pobres, e recicla esta aliança dos mais ricos com mais pobres. Com isso se 
perde a dimensão da nação. O Brasil continua à deriva. Atende-se os interesses 
dos credores. Atende-se os interesses dos grupos subnacionais, alguns 
legítimos, outros não, dá-se algum tipo de esmola para os pobres que vão 
continuar na pobreza e não se constrói uma nação. As grandes questões nacionais 
não são sequer percebidas dentro desse esquema de poder, as grandes questões 
que vão definir o que o Brasil será no século XXI passam ao largo.

      ÉPOCA – Com a falência do grande projeto político da esquerda dos últimos 
25 anos, dá para fazer o que, já que muita gente não vai ter nem tempo de vida 
para construir outro?
      Benjamin - Eu não sou tão pessimista. Eu acho que estamos vivendo uma 
fase histórica em que o povo vai ter de influir decisivamente no destino da 
nação. Essa necessidade continua. Se o Lula foi um instrumento disso num certo 
momento, outros instrumentos terão de aparecer. Por outro lado a operação 
política mais perigosa que estava em curso era ter uma polarização entre o PT e 
PSDB. Se isso acontecesse ou se isso vier a acontecer estaremos diante de uma 
situação grave, porque a democracia brasileira vai passar a se resumir ao 
confronto entre a Pepsi-Cola e a Coca-Cola, dois projetos essencialmente 
iguais. Se você controla só o governo e não controla a oposição ao governo, a 
sua hegemonia está sempre sob risco. Algum dia a oposição pode chegar lá. Mas 
você consolida sua hegemonia quando controla simultaneamente a oposição e o 
governo. Por que a hegemonia é tão sólida nos Estados Unidos? Porque dois 
partidos se alternam no governo. E nenhum dos dois coloca em xeque o 
establishment americano. E no entanto existe um ritual democrático e existe 
sempre uma alternativa ao povo americano, para lá ou para cá. Esta era a 
operação de maior risco à política contemporânea brasileira: uma polarização PT 
versus PSDB. E com isso o mesmo projeto controlando a situação e a oposição. A 
crise do governo Lula para mim abre uma oportunidade para que possamos 
reconstruir um projeto alternativo, cujo contorno político ainda não está claro.

      ÉPOCA - Por que os intelectuais petistas se calaram?
      Benjamin - Houve uma rede de cumplicidade. Houve uma clara perda de rigor 
analítico e ético ao longo destes anos. O PT foi dando sinais evidentes de que 
estava numa processo de degeneração e a maioria foi tolerante com este processo 
em nome do Lula-lá e agora esta maioria tem de fazer uma autocrítica dura. E 
autocrítica é sempre difícil de ser feita. A Academia brasileira em geral está 
muito pobre. Não é um pólo de reflexão, instigante, tenso sobre a realidade 
brasileira. Embora o Brasil fosse um país muito mais fraco do que é hoje nos 
anos 50, já teve uma territorialidade muito mais significativa em termos da 
busca do caminho do povo brasileiro. A Academia hoje é mais erudita que a dos 
tempos passados. Mas erudição não quer dizer potencial vital. Erudição muitas 
vezes serve para esconder a inação. O Nietzsche dizia que toda ação pressupõe 
uma simplificação. Se você for levar em conta todas as vezes algumas variáveis, 
você não sai do lugar. Se você age é porque simplificou. E esse excesso de 
erudição da Academia brasileira é um biombo para a inação. Para não agir nem 
como intelectuais. Nos últimos anos temos uma política pragmática e uma 
academia erudita, sem espaço de reflexão estratégica. A ação vai para o 
pragmatismo e a discussão vai para a abstração. É um grande problema do Brasil 
contemporâneo.

      ÉPOCA – Você diz, ao contrário da maioria, que o governo Lula é mais 
conservador na política que na economia. Por quê?
      Benjamin - Todo mundo critica a política econômica, mas o governo Lula é 
um governo desmobilizador, baseado no marketing, que diz ao povo o tempo todo 
para não fazer nada. Depois de dois anos e meio de governo de esquerda o povo 
não está mais consciente, mais mobilizado. Por isso eu critico muito as pessoas 
que só criticam a política econômica. É uma maneira implícita de absolver o 
governo Lula. Como se a política econômica fosse um enclave, um acidente, um 
erro, que está ali mas não devia estar. Não. A política econômica está ali 
porque devia estar ali. Esse é um governo conservador. É um governo da direita 
brasileira. E isso se expressa muito mais na relação com o povo brasileiro. 
Porque um governo transformador pode cometer muitos erros, pode fazer muitas 
concessões na economia, mas ele não pode desinformar o povo, não pode mentir, 
não pode desmobilizar. O lula cumpre uma função que nenhum quadro de direita 
poderia cumprir. Ele paralisa os movimentos populares. O Lúcio Flávio, um 
bandido famoso no Rio, disse uma frase antológica ao ser preso depois de 
delatado por um comparsa: 'Tenho saudade do tempo em que polícia era polícia e 
bandido era bandido'. Porque ele pagava a polícia para não ser preso e o colega 
dele o entregou. Então agora está tudo misturado. Eu também tenho saudade do 
tempo em que forças populares eram forças populares e direita era direita. 
Porque mesmo nos derrotando, a luta prosseguia, havia uma sintaxe. Havia uma 
compreensão do processo político. O governo Lula destruiu essa sintaxe, 
confundiu tudo, e quando você está confuso, paralisa. Se um quadro da direita 
fizesse esta política que ele está fazendo, os movimento populares estariam 
muito mais ativos que hoje em dia.
     





      ÉPOCA - Como o Lula vai para a História?
      Benjamin - Vai para História no grupo de brasileiros que é felizmente 
pequeno e que tem como patrono Silvério dos Reis (traidor que delatou a 
Inconfidência Mineira no século XVIII). 

      ÉPOCA – Quando ele discursa hoje, o que tem sido chamado de autismo 
político, o que lhe parece?
      Benjamin – São discursos cínicos. O Lula tem feito uma coisa terrível 
agora que é difundir números falsos. Ele diz, por exemplo: 'Durante o meu 
governo, na média, criamos 160 mil empregos de carteira assinada por mês, no 
governo FHC, na média, foram 4 mil'. Eu não conheço este número, mas afirmo que 
é falso. Porque se ele fosse verdadeiro apareceria nas estatísticas de 
desemprego do IBGE. E as estatísticas de desemprego tem sido estacionárias. O 
Lula aprendeu isso com o Collor, que foi o primeiro político brasileiro a 
descobrir que vale a pena mentir nos números. Você fala uma mentira na TV e 100 
milhões de pessoas te assistem. Depois, três artigos te desmentem e cinco mil 
pessoas lêem. Numa sociedade de espetáculo, de massa, com a população que não 
tem hábito de leitura, faz acompanhamento fragmentário da vida política e 
social, vale a pena mentir. O Collor aprendeu isso e o Lula adotou a política 
da mentira. O Lula vive a egotrip dele, que encontra respaldo em claques e 
encontra respaldo ainda na emoção do povo pobre que é sensível a este tipo de 
discurso. Mas a aliança que o Lula quer fazer com o povo é uma aliança 
pré-política. 'Fiquem comigo porque eu já fui pobre um dia', quando isso na 
verdade não tem nenhuma relevância. É uma aliança que despolitiza o povo 
brasileiro. Faz ele caminhar para trás e não para frente. Qual é o grau de 
audiência que isso vai ter eu não sei, mas que é muito perverso, é. Não tem 
nada a ver com transformar o Brasil.

      ÉPOCA - O que vai acontecer com Lula e o PT?
      Benjamin - Acho que o PT vai ter muita dificuldade para se reciclar 
porque está sem discurso. Ele não pode mais fazer o discurso contra a política 
econômica neoliberal porque ele foi governo e adotou esta política. Ele não 
pode mais fazer o discurso da ética da política por motivos óbvios. Então o PT 
se tornou um partido que não tem o que dizer à sociedade brasileira.

      ÉPOCA – Sobrevive?
      Benjamin - Talvez como uma legenda, mas não como depositário de uma 
expectativa de transformação. Nenhum roteirista de cinema criaria o roteiro que 
o PT criou. Nos últimos tempos nós tivemos dólar na cueca, festas com 
cafetinas, conta nas Bahamas, carros importados. Nenhum roteirista de ficção 
criaria este filme porque é inverossímil. É caricato. E no entanto a realidade 
a que o PT foi levado é caricata. Parece que o campo majoritário do PT estava 
vivendo uma fase de sexo, drogas e rock’n’roll. Liberou geral.

      ÉPOCA – Você saiu do PT e em 1997 ajuda a fundar a Consulta Popular, com 
milhares de militantes oriundos dos movimentos sociais e com formação de 
quadros políticos para construir uma alternativa de Esquerda. Esta organização 
apostou que o Lula chegaria ao poder e fracassaria. Assim, para você, o que 
está acontecendo é bom, não é? Enquanto para muitos o pesadelo começou, para 
você ele acaba de terminar?
      Benjamin - Não é que seja bom, mas abre possibilidades. Eu reconheço que 
no curto prazo a Direita se fortalece, mas eu acho que a sociedade brasileira 
não aceitará passivamente o retorno da Direita ao poder. É possível construir 
um projeto político alternativo. Nossa avaliação é de que havia um ciclo na 
esquerda brasileira, o ciclo PT. Para se concluir era preciso que o Lula 
chegasse a presidência. E nós já estamos trabalhando há vários anos para depois 
deste ciclo. Estou convencido de que quem verbalizar isso, quem apresentar um 
discurso de reconstrução do Brasil, de refundação do Brasil em cima da justiça 
social, do desenvolvimento, da ruptura com a hegemonia do capital financeiro, 
quem fizer isso terá uma enorme audiência no Brasil. Por isso não sou tão 
pessimista de achar que como o PT se enfraqueceu, o PSDB se fortalecerá. A 
sociedade brasileira é muito mais ampla e diversificada que Lula e PSDB. Só não 
encontrou caminho de expressão política. Esta crise contém uma possibilidade de 
superação e muita gente não está vendo isso. Só consegue enxergar a crise.
     





      ÉPOCA – E qual é a alternativa que vocês tem para apresentar? O que vai 
ser o 'depois' que você fala?
      Benjamin - Nós temos uma visão consistente da crise brasileira, um 
trabalho teórico e político sistemático e sério. E nós temos uma militância de 
boa qualidade. Desde o início da crise nós analisávamos que a crise da esquerda 
tinha três trilhos: de valores, que hoje eu não preciso mais explicar; de 
prática, porque tinha se afastado do povo; e a crise de pensamento, já que 
estava voltada para uma eleição a cada dois anos, um congresso a cada ano e 
tinha perdido a capacidade de pensar a crise histórica do Brasil e propor uma 
alternativa a ela. Nós começamos a trabalhar nestas três vertentes, formando 
quadros, estimulando os movimentos sociais e formulando teoria e política. Eu 
continuo pensando o depois - e agora com maior possibilidade política. A 
avaliação que fazíamos era meramente intelectual e política. Hoje é um fato 
social. O fim do ciclo PT está colocado, a crise do governo Lula está colocada, 
a hora de apresentar alternativas está chegando e nós estamos nos preparando há 
muito para isso.

      ÉPOCA – Mas qual é a alternativa? O que vocês propõem?
      Benjamin - Desde março deixamos de sermos um fórum para virar organização 
política. Não vamos buscar registro no TSE como partido. Vamos nos manter como 
força inserida na sociedade. Força política, mas não institucional. Estamos 
tendo discussões muito intensas. Ainda há muita hesitação. Não temos tanta 
clareza do caminho. Formulamos uma teoria do Brasil contemporâneo, mas 
transformar isso num luta política é mais demorado e não depende só de nós. Se 
trata agora de criar condições para um novo ciclo da esquerda. Trabalhamos 
nesses últimos sete anos em três vertentes principais: a formação de pessoas, a 
formulação teórica e política de uma alternativa para o Brasil, e o estímulo às 
organizações de base. É um tipo de trabalho que não aparece, não produz uma 
atuação política destacada, mas planta sementes. Há uma nova geração de 
militantes sendo formada. Continuaremos nisso. Trabalhamos muito e aparecemos 
pouco.

      ÉPOCA – Pela via democrática?
      Benjamin – Pela via democrática. Até que se esgotem os limites.

      ÉPOCA – Você vislumbra uma saída pela revolução?
      Benjamin - Se o povo brasileiro tomar esta decisão, estarei ao lado dele. 
Mas não como um projeto artificial. A vida é que conduz a sociedade. Eu não 
trabalho para isso, mas não sou hipócrita.

      ÉPOCA- Você fez um projeto para o PMDB e anda sendo muito elogiado pelo 
(Anthony) Garotinho. Por acaso é por aí que você vê uma saída?
      Benjamin - Eu sou muito amigo do (Carlos) Lessa. Ele recebeu da direção 
nacional do PMDB a incumbência de apresentar um programa ao partido. Me chamou 
para ajudar. É um programa antineoliberal. Mas como todo mundo sabe o PMDB é um 
partido com muitas dificuldades internas. Quanto ao Garotinho, várias pessoas 
me disseram que ele me tem em alta conta, mas minha relação no PMDB é com o 
Lessa. Somos muito amigos. Mas não compartilho da histeria anti-Garotinho e 
acho que ele já é atacado demais na imprensa, muitas vezes injustamente. Não 
quero me somar a esses ataques. Nas poucas vezes que nos vimos ele sempre foi 
muito correto. Nesta crise tudo o que pudermos somar, devemos somar. Se o P-Sol 
me chamar para ajudar no programa, também ajudo com prazer. Temos de formar uma 
frente anti-neoliberal no Brasil para 2006.

      ÉPOCA – Em quem você votou em 2002?
      Benjamin - Meu filho Téo, de 14 anos, insistiu muito para que eu votasse 
no Lula, estava muito envolvido com o PT e com o Lula. Eu disse que não 
votaria. Aí ele disse que ia comigo para vigiar meu voto. Ele entrou comigo na 
cabine e votou no Lula no meu lugar. Meu voto foi para o Lula, mas eu não votei 
no lula. Achei que era uma coisa bonita a vontade de participação dele, não 
quis desfazer o sonho dele.

      ÉPOCA – E agora, o que o Téo está achando?
      Benjamin - Ele está absolutamente decepcionado, dizendo que eu não devia 
ter deixado ele votar no Lula. Está completamente arrependido de seu primeiro 
voto.
     





      ÉPOCA – Você tinha a mesma idade quando foi para a clandestinidade. Como 
foi isso?
      Benjamin - Participei do movimento estudantil de 68 como secundarista. Em 
setembro de 1969 tive de ir para a clandestinidade, diante da iminência de 
prisão. A polícia foi à minha casa, mas eu não estava. Eu havia saído de casa 
de bermudas e sandálias, sem um tostão, para dar uma aula de matemática para um 
primo que morava perto. Tinha 14 para 15 anos. Minha avó, que morava conosco, 
me avisou por telefone para não retornar. Ela era cega, e a polícia, que estava 
me esperando, afrouxou a vigilância sobre ela, que sempre ficava sentada ao 
lado do telefone. Procurei ajuda de amigos e depois me liguei à resistência ao 
regime militar, no antigo MR8. Só voltei à casa de meus pais mais de dez anos 
depois. Não tivemos tempo de nos despedir. Mudei meu nome e fiquei morando em 
subúrbios do Rio até fins de 1970, quando fui morar numa área rural no interior 
da Bahia. Fui preso na Bahia em 31 de agosto de 1971, mais ou menos dois anos 
depois. Tinha 17 anos. Já não participava de ações armadas há alguns meses. 
Estava vivendo entre camponeses muito pobres, numa área de remanescentes de 
quilombos, chamada Cangula, no município de Alagoinhas. Havia construído uma 
casinha de sapé, muito simples, no meio do cerrado. Comia mandioca que eu mesmo 
plantava e muito açaí, que dava no mato. Dava aulas de alfabetização. Usava um 
nome falso: Laerte de Abreu.

      ÉPOCA – Você foi o mais jovem preso político do país. Ficou três anos e 
meio numa solitária. Era um adolescente. Como agüentou?
      Benjamin – Como eu era muito jovem, não tinha noção de que as conjunturas 
políticas mudam. Achava que a ditadura ficaria vinte ou trinta anos no poder, e 
me preparei para ficar preso durante esse tempo. Estava isolado, sem julgamento 
e sem pena definida a cumprir. Minha cela era bem pequena, semi-subterrânea, 
com um respiradouro em cima, ao qual eu não tinha acesso. A porta era de ferro 
maciço, com uma fenda para passar a bandeja de comida, e dava para um corredor. 
Tinha meia hora de banho de sol por semana. Depois de um tempo, minha família 
conseguiu me enviar um tabuleiro de xadrez. Joguei milhares de partidas contra 
mim mesmo. Depois entrou um livro de yoga, do Professor Hermógenes, e me 
dediquei muito a ele. Mais tarde tive autorização para receber um livro por 
semana. O primeiro foi Grande Sertão Veredas, do Guimarães Rosa. Chorei da 
primeira a última página. Eu não tinha controle sobre a luz da cela, que ficava 
acesa 24 horas.

      ÉPOCA – Pensou em suicídio?
      Benjamin - Só pensei em suicídio antes, na fase de interrogatórios. Nessa 
fase, eu permanecia todo o tempo algemado e sempre sob vigilância de um 
soldado. Numa noite o soldado dormiu e eu percebi que era uma chance única. 
Consegui subir num muro interno da cela e ficar em pé nele, com a cabeça quase 
no teto. Minha possibilidade era me jogar de lá de ponta-cabeça. Fiquei em pé 
durante algum tempo, mas decidi que o ônus da minha morte teria de ser da 
repressão, e não meu. Consegui descer. Me senti fortalecido.

      ÉPOCA – Foi torturado?
      Benjamin - Na Bahia sofri a tortura tradicional. Choque, pau de arara. No 
DOI-Codi não me encostaram a mão, mas me deixaram sem comer, sem beber e sem 
dormir. Me deixavam em pé, sendo interrogado continuamente. Às vezes me davam 
uma pílula vermelha que eu nunca soube o que era e um pó branco que eu também 
nunca soube o que era. Era minha única chance de tomar água. Engraçado, que 
nunca senti fome. Mas a sede é torturante.

      ÉPOCA – É verdade que o Sylvio Frota (general da linha dura e ministro do 
Exército exonerado por Ernesto Geisel em 1977 por tentativa de golpe à direita) 
gostou de você e foi quem acabou garantindo a sua vida?
      Benjamin - Minha prisão demorou a ser reconhecida. Depois de uns três 
meses, colocaram-me numa pequena sala, na Polícia do Exército da rua Barão de 
Mesquita, no Rio. Entrou um oficial mais velho e claramente muito importante. 
Era chamado de Vossa Excelência pelos demais. Ele ficou sozinho comigo, muito 
branco, fumando uma piteira. Eu não sabia quem era. Conversou longa e 
calmamente comigo, dizendo que nunca nenhum outro preso o havia visto. Primeiro 
me elogiou muito e demonstrou uma admiração que me pareceu sincera. Depois me 
disse: 'Vim te trazer uma boa notícia. Nós não vamos te matar. Foi uma decisão 
difícil...' Em seguida, me deu três razões: 'Você é muito jovem, e nós não 
somos os monstros que vocês imaginam. Além disso, você é filho de um colega 
nosso, e seu pai sempre foi um bom oficial; os militares são muito leais. Mas o 
mais importante é que você não nos odeia. Nós te observamos muito, e nunca 
vimos ódio em teu olhar.' Ele tinha razão. Eu não soube quem ele era. Muito 
tempo depois, reconheci pelos jornais que era o general Sylvio Frota. A frase 
dele, de que 'foi uma decisão difícil', explica, para mim, o longo período de 
solitária. Decidiram não me matar, contra a opinião de alguns, mas acertaram 
entre si a solução do isolamento. Começou assim o período de três anos e meio 
de solitária. No total, fiquei um pouco mais de cinco anos preso. Quem sabe não 
foi aí que eu aprendi a esperar? Da cela fui direto para um avião que me levou 
para o exílio na Suécia, onde trabalhei como faxineiro em uma escola primária e 
estudei na Universidade Estocolmo.

      ÉPOCA – A construção do seu discurso é marxista. Você fala em ciclos da 
história, da esquerda, como se o futuro fosse possível de prever. A vida não é 
incerteza?
      Benjamin - Tenho uma formação muito vasta e eclética. Não me sinto 
amarrado por nenhuma teoria. Tentei, nesses anos todos, aprender a pensar, que 
é algo muito mais difícil do que se imagina. Marx cita uma frase, se não me 
engano de Cícero: nada do que é humano me é estranho. É isso. Não acho que o 
futuro seja previsível. É uma criação humana, e nós somos seres vocacionados 
para a liberdade.
     


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