[CamaraDas] O mar de olimp

  • From: João Marcos <jmcantarino@xxxxxxxxx>
  • To: Analistas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Tue, 10 Nov 2009 10:49:15 -0200

 Aos companheiros neo-stalinistas.
Na Folha de hoje.

*O Mar de Olimp*

TINHA TREZE anos quando o Muro de Berlim caiu. Mas já não era um rapazinho
virgem (politicamente falando, é claro). Leituras romanescas tinham
desmontado o comunismo, pedra por pedra, até só restar a evidência do
horror. Koestler ou Soljenítsin tinham sido os artífices dessa preciosa
desconstrução. Mas faltava ainda a experiência pessoal.

Ela veio. Em agosto de 1989. Os meus pais, historiadores de formação,
sugeriram uma viagem à Romênia. O programa era simples: sete dias em
Bucareste, a capital; e mais sete no sul, em Olimp, um balneário. Para
"relaxar", diziam eles, com intocável otimismo.

Fomos. Da Romênia, tinha imagens fantasmagóricas de vampiros e donzelas
mortalmente mordidas. O cinema, sempre o cinema, essa divina corruptela.

Errei por pouco. No aeroporto de Bucareste, ninguém era recebido como
turista. Apenas como intruso. Depois da revista marcial, encostados à parede
de pernas abertas (recordo a minha mãe, irônica e nervosa, declarando em voz
alta que fizera uma mamografia meses antes), veio um interrogatório longo,
apurado, com perguntas ridículas. "Que vêm fazer à Romênia?", perguntava o
guarda. "Turismo", respondíamos nós. Descobri rapidamente que as respostas
eram mais ridículas do que as perguntas. Ninguém fazia turismo na Romênia.

Viagem para o hotel. Noite em Bucareste: as ruas sujas, escuras e desertas,
como se alguém tivesse envenenado o ar.

Não eram apenas as ruas a exibir desolação: os romenos, talvez o povo mais
triste que encontrei na vida, falavam baixo, olhavam baixo. E pediam muito:
cigarros, roupa, creme de barbear e, entre as senhoras, os inevitáveis
produtos íntimos.

Sete dias em Bucareste e dei por mim contrabandista: de leite, pão, pasta de
dentes. E não apenas para os empregados de hotel, que faziam as suas
encomendas em sigilo.

Certa vez, caminhando pelas ruas fúnebres da cidade, aproximei-me de uma
vitrine, como se as vitrines tivessem algo para mostrar. Só um turista
acreditava em milagres e os habitantes sabiam disso. Por isso, esperavam que
os estrangeiros se aproximassem de vitrines vazias para fazerem descer
cestos dos andares cimeiros, mendigando as preciosidades habituais.
Cigarros, roupa, produtos íntimos. Doces para as crianças. "Qualquer coisa",
gesticulavam eles. Quem parava nas vitrines não comprava nada. Mas oferecia
tudo. Então o cesto voltava a subir pela mesma corda por onde descera. As
janelas fechavam-se.

Uma semana passou: semana lenta, porque lentas eram as horas em Bucareste,
esse mausoléu pétreo e gris que Nicolau Ceausescu construira sobre os
escombros da belíssima cidade antiga.

E o ditador aparecia em todas as esquinas: cartazes de propaganda gloriosa,
ao estilo norte-coreano. Ele, pai do povo. Ao lado, a mulher, Elena. Na
viagem para Olimp, o guia turístico ainda confessou que, apesar de não ter
estudos, a mulher de Ceausescu fazia questão de assinar todas as descobertas
científicas do país. Ela própria, aliás, ostentava orgulhosamente o título
de "Primeira Dama e Maior Cientista da Romênia". Eu ria da piada. Não era
piada. O guia turístico, um estudante de matemática que fazia visitas nas
horas livres, contou tudo sem rir.

A última semana foi passada junto ao mar. Semana sem história: a mesma
mendicidade dos serviçais; a mesma penúria nas lojas; praias vigiadas e com
horário; praias privadas para os membros do Partido; o casal Ceausescu,
sorridente e confiante, pairando acima da miséria e da infelicidade. E a
pergunta: até quando seria possível prolongar essa mentira?

Quatro meses, eis a resposta. Quando, no Natal daquele ano, os romenos
fizeram a sua revolução e regressaram ao mundo dos vivos, ninguém estranhou
lá em casa.

Sim, eu tinha 13 anos em 1989. Mas, ao deixar a Romênia em finais de agosto,
até um rapaz de 13 anos percebe os limites da falsidade. Os limites da
desumanidade. Longe ainda vinham os tempos em que, por treino acadêmico, eu
acabaria por estudar as "contradições" do "socialismo real": a falência
econômica do sistema marxista; a natureza totalitária dos regimes
comunistas; as obras de Kolakowski ou Karl Popper, que hoje ensino a alunos
que nasceram depois de 1989 e para os quais o Muro de Berlim fica, algures,
na Pré-História.

Mas lembrar o comunismo e o seu fim será sempre lembrar uma viagem em
família a um mundo de medo e de silêncio. Um mundo onde até o mar parecia
rugir em surdina.
*

João Pereira Coutinho
*

jpcoutinho@xxxxxxxxxxxx

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