[CamaraDas] Oliver Sacks

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  • Date: Mon, 23 Feb 2015 16:05:04 -0300

Minha vida: O neurologista diante da morte

*OLIVER SACKS*
tradução *FRANCESCA ANGIOLILLO*

*RESUMO* Autor prolífico de livros populares de divulgação científica, o
neurologista Oliver Sacks descobriu recentemente metástases, não tratáveis,
de um câncer que tem há nove anos. Neste texto, ele fala de como quer viver
seus últimos meses e dos esforços necessários para fazer o que chama de um
acerto de contas com a vida.

*

Um mês atrás, eu me sentia gozando de boa saúde; diria até que de uma saúde
de ferro. Aos 81, ainda nado 1.600 metros por dia. Mas minha sorte se
esgotou -há algumas semanas, soube que tinha múltiplas metástases no
fígado. Nove anos atrás, descobri que eu tinha um tumor de olho raro, um
melanoma ocular. Apesar de as radiações e do laser para eliminar o tumor
terem me deixado cego daquele olho, era muito improvável que um tumor
daquele tipo se alastrasse. Eu estou entre os 2% desfavorecidos pela sorte.

Sinto-me grato pelos nove anos produtivos e de boa saúde que tive após o
diagnóstico original, mas agora estou cara a cara com a morte. A doença
tomou um terço de meu fígado e, ainda que seja possível atrasar seu passo,
o avanço desse tipo particular de câncer não pode ser impedido.



 [image: Oliver Sacks em frente à casa onde passou sua infância, na
Inglaterra]  Oliver Sacks em frente à casa onde passou sua infância, na
Inglaterra

O que me cabe agora é decidir como viverei os meses que me restam. Devo
vivê-los da maneira mais rica, profunda e produtiva que puder. Nisso sou
encorajado pelas palavras de um de meus filósofos favoritos, David Hume,
que, aos 65 anos, sabendo-se acometido por uma doença mortal, escreveu, em
um só dia de abril de 1776, uma breve autobiografia. Ele a intitulou "Minha
Vida".1

"Conto agora com uma morte rápida", ele escreveu. "Tenho sofrido
pouquíssima dor advinda de minha doença e, o que é mais estranho, apesar do
rápido declínio de meu corpo, meu espírito nunca se abateu um momento
sequer. [...]Possuo o mesmo ardor de sempre pelos estudos, e a mesma
alegria na companhia de outras pessoas."

Tive muita sorte de poder passar dos 80, e os 15 anos que me foram
concedidos além das seis décadas e meia que viveu Hume, eu os vivi de forma
tão plena de trabalho e amor quanto ele. Nesse período, publiquei cinco
livros e terminei uma autobiografia, um bocado mais extensa que a dele, a
sair nos próximos meses;2 tenho vários outros livros quase concluídos.

Hume seguia: "Sou [...] um homem de disposição cordial, senhor de si mesmo,
de humor franco, social e jovial, capaz de amizade, mas pouco suscetível a
inimizades e de grande moderação em todas as suas paixões".

Nesse ponto minha experiência se afasta da dele. Embora eu tenha vivido
amores e amizades e não tenha inimizades reais, não posso dizer (nem
ninguém que me conhece poderia) que sou um homem de disposição cordial. Ao
contrário, meu caráter é veemente, sou capaz de me entusiasmar de forma
violenta e sou extremamente imoderado no que diz respeito a qualquer de
minhas paixões.

Ainda assim, uma linha do ensaio de Hume me parece especialmente
verdadeira: "É difícil", escreve, "sentir maior distanciamento da vida do
que este que sinto neste momento".

Ao longo dos últimos dias, eu pude ver minha vida como se a observasse
desde uma grande altitude, como se ela fosse uma espécie de paisagem, e com
a percepção cada vez mais aguda da conexão entre todas as suas partes. Isso
não quer dizer que eu tenha dado minha vida por encerrada.

Ao contrário: sinto-me intensamente vivo, e quero e espero que, no tempo
que resta, eu possa aprofundar minhas amizades, dizer adeus aos que amo,
escrever mais, viajar, se tiver força para tanto, alcançar novos graus de
entendimento e de discernimento.

Isso vai requerer audácia, clareza e franqueza; é uma tentativa de acertar
as contas com o mundo. Mas haverá tempo, também, para diversão (e até mesmo
para um tanto de tolices).

Sinto uma súbita nitidez de foco e de perspectiva. Não há tempo para nada
que não seja essencial. Preciso me concentrar em mim, no meu trabalho, nos
meus amigos. Não vou mais assistir ao noticiário na televisão toda noite.
Não darei mais atenção alguma à política ou ao aquecimento global.

Isso não é indiferença, mas distanciamento -eu ainda me preocupo muito com
o Oriente Médio, aquecimento global, o crescimento da desigualdade, mas
esses assuntos não me cabem mais; eles cabem ao futuro. Eu me alegro quando
encontro gente jovem e talentosa -inclusive a que fez a biópsia que
constatou minhas metástases. Eu sinto que o futuro está em boas mãos.

Fiquei mais e mais atento, nos últimos dez anos, à morte de contemporâneos
meus. Minha geração está de saída, e cada uma dessas mortes eu senti de
forma abrupta, como se uma parte de mim me fosse arrancada. Não haverá mais
ninguém como nós quando todos nós tivermos ido embora, mas é um fato que
não há no mundo ninguém igual a outra pessoa, nunca. Quando alguém morre,
não existe um substituto possível. Cada um deixa um vazio que não pode ser
preenchido, pois é o destino -genético e neural-de cada humano ser um
indivíduo único, que deve achar seu próprio caminho, viver sua própria vida
e morrer sua própria morte.

Não posso fingir não ter medo. Mas o sentimento que predomina em mim é a
gratidão. Eu amei e fui amado; tive muito e dei muito em troca; eu li, e
viajei, e pensei, e escrevi. Eu tive com o mundo o relacionamento especial
que os escritores e os leitores têm com ele.

Acima de tudo, eu fui um ser senciente, um animal pensante sobre este belo
planeta, o que, por si só, já foi um enorme privilégio e uma aventura.

*Notas*

1. O ensaio autobiográfico de David Hume (1711-76) foi publicado no Brasil
no livro "Da Imortalidade da Alma e Outros Textos Póstumos" (ed. Unijuí,
2006). Os trechos citados por Oliver Sacks seguem, aqui, a tradução de
Daniel Swoboda Murialdo para o citado volume, salvo quanto ao termo
"detachment". Lá traduzido como "desinteresse", tem também a acepção de
"distanciamento", mais apropriada ao que descreve Sacks.

2. A autobiografia de Oliver Sacks será publicada pela Companhia das Letras
em data a definir, ainda em 2015.

*OLIVER SACKS*, 81, é médico neurologista e escritor.
*FRANCESCA ANGIOLILLO*, 42, é editora-adjunta da "Ilustríssima".


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*Niquele*

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