CLÓVIS ROSSI Evo tem o direito até de errar SÃO PAULO - A nacionalização do gás boliviano pode ser certa ou errada, conforme o gosto de cada qual, mas tem um aspecto que precisa ser ressaltado: trata-se de cumprimento de contrato, coisa que os liberais, hoje hegemônicos, sempre exigem. Que contrato? O contrato entre candidato e eleitor, que deveria ser sagrado na democracia. Evo Morales prometeu, na campanha, nacionalizar os recursos minerais. O eleitorado "comprou" a promessa e lhe deu a vitória. Está agora fazendo apenas o que prometeu. Democracia é assim. Pena que parte dos que se dizem democratas só gosta de quem cumpre as promessas que lhes agradam. Enamoraram-se, por exemplo, de Luiz Inácio Lula da Silva porque tudo o que prometeu em 23 anos de vida partidária -e que desagradava ao liberalismo- virou "bravata" depois de eleito. É assim que começa a corrupção. Pela corrupção da palavra empenhada. Outra tremenda falta de coerência é atacar a Petrobras por ter investido na Bolívia e, agora, correr o risco de perder tudo (ou muito). O credo liberal não mandava criar transnacionais tupiniquins para competir no mercado global? A Petrobras investiu. E trouxe ao Brasil gás a um preço bastante interessante: US$ 2 o milhão de metros cúbicos, que, na Califórnia, por exemplo, custa de US$ 12 a US$ 15 -ou de seis a sete vezes mais. O negócio, na era contemporânea, não é fazer negócios? Pois é, a Petrobras fez, surfando na onda de privatizações que marcou a América Latina nos anos 90. O único probleminha é que o negócio do gás deu lucro para as empresas, mas não serviu para alterar a situação de extrema miséria da maioria, o que acabou sendo o combustível para as mobilizações populares que levaram ao solo sucessivos governos e ao poder Evo Morales. Agora, ele quer tentar melhorar a vida de sua gente usando os recursos do gás na mão do Estado. O passado mostra que não é exatamente o melhor caminho, mas ele tem todo o direito de tentar. ELIO GASPARI A diplomacia do trivial delirante É do chanceler Celso Amorim o qualificativo "nosso guia" para designar a clarividência diplomática de Lula. Bajulá-lo, elevando-o à condição de líder mundial, faz parte do ritual de oferendas-companheiras. O senador Aloizio Mercadante, por exemplo, escreveu que "não há líder no planeta que não queira se reunir com ele para trocar idéias e percepções sobre a construção do futuro". "Em nossa região, a maioria dos chefes de Estado busca seu conselho." Será que foi o caso de Evo Morales? O pior é que Lula acredita nessas coisas. Rege uma política externa esportiva no método, exibicionista no ritual e desastrosa nos resultados. Nunca, desde que os obás Osenwede, do Benin, e Osinlokun, de Lagos, tornaram-se os primeiros chefes de Estado a reconhecer a nação brasileira, Pindorama andou tão encrencada nas relações com seus vizinhos. O Brasil se distanciou de quem deveria se aproximar (Argentina e Chile) e aproximou-se de quem devia se distanciar (Venezuela e Cuba). Perdeu tempo com países inúteis (Namíbia e Gabão) e oportunidades com aliados tradicionais (Uruguai e Paraguai). Quando o secretário de Estado George Marshall chamou o embaixador George Kennan para planejar a recuperação da economia européia, pediu-lhe: "Evite as trivialidades". Lula faz o contrário: persegue uma autoglorificação trivial. Meteu-se a cabo eleitoral na eleição boliviana e associou-se a Evo Morales, que confisca o patrimônio de empresas brasileiras. Decidiu capturar a presidência da Organização Mundial do Comércio e seu chanceler desqualificou o candidato uruguaio. Atropelou na direção de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU e até hoje está em pé. A diplomacia fominha estimulou a galhofa do presidente argentino Néstor Kirchner, para quem Lula tinha candidato até a papa. (Era d. Cláudio Hummes.) Saiu pelo mundo articulando um imposto contra a pobreza. Resultou que a patuléia brasileira corre o risco de pagar taxas de embarque mais caras nos seus vôos internacionais. O presidente americano George Bush já disse que não aceita esse tipo de tunga em cima de seu povo miserável. Pode-se fixar com precisão a ocasião em que Lula jogou no mar a oportunidade de desempenhar um papel politicamente relevante nas negociações internacionais. Ela se deu em janeiro do ano passado, quando a Argentina saiu sozinha brigando pela reestruturação de sua dívida externa. Pressionado pela servidão cosmopolita da ekipekonômika, "nosso guia" foi incapaz de oferecer aos argentinos o conforto da cortesia. Pelo contrário, muita gente boa do governo brasileiro saiu a futricar pelos salões de Washington, defendendo a banca. Achavam que a reestruturação fracassaria. Deu certo. Enquanto "nosso guia" acredita que redesenha o mapa geopolítico do mundo, o Mercosul (herança maldita do tucanato) vai a pique, comido pela borda por uma teia de acordos bilaterais da diplomacia comercial americana. Encantado com a política externa dos grandes empreiteiros, ratificou uma irresponsável dependência do gás boliviano. Não bastaram os confiscos de Saddam Hussein nos anos 80, os calotes da cleptocracia africana nos anos 90, muito menos as roubalheiras angolanas de hoje.