[CamaraDas] PSTU e HH

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  • Date: Fri, 29 Sep 2006 10:58:15 -0300

Nick, essa é antológica, pra arquivar e acariciar por muitos anos: Valério 
Arcary, capo do PSTU, parece algo desconfortável com a Heloísa Helena:
 
 
 
A polêmica sobre a democracia e a declaração de amor de Heloísa Helena 




Valério Arcary
Historiador, professor do Cefet/SP e membro do conselho editorial da revista 
Outubro 
                                


* "O direito à revolução é o único `direito histórico` real, o único sobre o 
qual repousam todos os Estados modernos, sem exceção" 1
Friedrich Engels

Em sua campanha a candidata à Presidência Heloísa Helena tem declarado, quando 
perguntada pela imprensa se sua candidatura é anticapitalista, que o socialismo 
seria a maior declaração de amor à humanidade de nossa época; mas pondera que 
seu governo não será socialista. Heloísa anunciou que o socialismo será, 
talvez, uma alternativa para os seus netos. Afirmou também que o programa de 
seu partido, e dos partidos da Frente, o PSTU e o PCB, é socialista, mas o seu 
programa de governo não. Este respeitaria a Constituição em vigor no país.

Em momentos mais arrebatados, a candidata tem defendido uma revolução 
democrática. Mas, quando sob pressão, tem admitido que seu projeto seria de 
democratização da democracia e esclareceu que somente os corruptos e 
especuladores teriam razões para temer a sua candidatura. Heloísa tem 
finalizado esses depoimentos concluindo que, em sua opinião, não haveria 
ambigüidade alguma nessas posições.

Ninguém ignora que o socialismo é um projeto de libertação dos trabalhadores. 
Ser de esquerda é o abraço de um compromisso de classe. O socialismo é uma 
declaração de guerra ao capital. Reservamos nosso amor à humanidade para 
aqueles que são vítimas da exploração capitalista. Nossa entrega à causa mais 
elevada do tempo em que nos tocou viver, o socialismo, é do mesmo tamanho que 
nosso ódio ao capital, e do desprezo pelos que vivem da exploração do trabalho. 
O socialismo é uma declaração de luta ao mundo que nos cerca e que condena 
milhões à privação, à brutalização e ao desespero. 

O capitalismo é o sistema que fomenta a guerra de recolonização do mundo. A 
fórmula do "amor à humanidade" é deseducativa, porque semeia ilusões. Ilusões 
que interessam à preservação da ordem. A humanidade está dividida. Há Estados 
imperialistas que dominam o mundo. Há classes que exploram a maioria, aqueles 
que vivem do trabalho. O socialismo não pode unir os homens e mulheres de "boa 
vontade". Essa ilusão existe entre os trabalhadores e as camadas médias, e uma 
das tarefas de uma candidatura socialista é fazer a disputa ideológica para 
combatê-la. O projeto socialista não é a colaboração de classes, mas a luta de 
classes. 

O socialismo para os nossos netos é outra fórmula infeliz. O projeto socialista 
ficou confundido com as ditaduras burocráticas que durante décadas usurparam 
seu nome, para preservar seus privilégios, e encabeçaram a restauração 
capitalista na ex-União Soviética e no Leste Europeu. Mas a propriedade privada 
e o mercado só trouxeram miséria e obscurantismo. A restauração capitalista 
significou na Rússia uma destruição equivalente ao desmoronamento de uma 
guerra, e fez da China o inferno dos trabalhadores. Mais do que nunca seria 
necessária uma enérgica defesa da superioridade histórica do socialismo. 
Defendê-lo para um futuro remoto corresponde à promessa religiosa de que uma 
vida melhor só seria possível depois da morte. Acreditamos que o socialismo é 
uma alternativa concreta aqui e agora. A preservação tardia do capitalismo é 
uma ameaça à civilização. 

Não somente os ladrões e os banqueiros deveriam temer a candidatura da Frente 
de Esquerda. É verdade que não precisamos de inimigos imaginários, porque já 
estamos bem servidos. Nunca existiu, no entanto, capitalismo sem corrupção. A 
desigualdade social é inseparável da opressão política. O projeto da revolução 
brasileira é a ruptura com o imperialismo, o direito e o dever do trabalho para 
todos, o aumento dos salários e a anulação das privatizações, o acesso 
universal à educação, saúde e previdência pública de qualidade, a conquista da 
reforma agrária, etc. Nossos inimigos de classe não são nem tolos, nem 
distraídos. 

Não temos porque esconder nossa identidade. Não deveríamos ser cúmplices da 
infantilização do debate eleitoral. A esmagadora maioria do povo só poderia ser 
beneficiada pelo projeto socialista. Nenhum militante desconhece, também, que 
os socialistas não são tolerantes com a duplicidade. Não disfarçamos nossas 
intenções. Nosso programa pode se desdobrar em diferentes plataformas táticas, 
dependendo das conjunturas, mas tem uma coerência indivisível. Nas eleições e 
depois delas, defendemos nosso programa como uma alternativa de poder. 

As discussões políticas nunca são, teoricamente, irrelevantes. As discussões 
teóricas entre marxistas, por sua vez, nunca são politicamente inocentes. A 
polêmica sobre a democracia foi possivelmente uma das mais ásperas de todas e 
tem uma longa história. A estratégia de "radicalização da democracia" é um 
programa que surgiu na tradição marxista, há 100 anos, na Alemanha de Bernstein 
e Kautsky. Desde então, foi um dos divisores de águas na esquerda.

Democracia liberal e reformismo socialista
A questão de fundo das declarações de Heloísa Helena é a atitude diante do 
regime democrático. Nos declaramos em oposição ao regime da democracia corrupta 
dos ricos e o denunciamos implacavelmente, ou somos a ala esquerda que pretende 
reformá-lo? O marxismo interpreta os debates de estratégia caracterizando cada 
posição em função da intensidade das pressões de classe. A esquerda socialista 
conhece no Brasil - pela tragédia vivida pelo PCB, em 1964, e pela comédia 
recente do PT - e no mundo, em incontáveis experiências, as conseqüências 
devastadoras da força de cooptação dos regimes democrático-liberais. 

A luta do movimento operário e das organizações socialistas foi decisiva para 
garantir a expansão do direito do voto e, de resto, de todas as liberdades 
cívicas e democráticas. Mas, se a influência da esquerda foi vital para a 
conquista da liberdade de imprensa, de organização, de manifestação ou do 
direito de greve, é incontornável considerar também que a democracia liberal 
exerceu uma pressão terrível sobre os partidos socialistas. 

Não esquecemos que houve uma longa resistência da burguesia ao sufrágio 
universal. Tão importante, no entanto, seria lembrar que na Europa o capital só 
aceitou a dominação através de regimes democrático-liberais, ao final do século 
19, quando obteve garantias de que os líderes social-democratas tinham 
renunciado ao projeto revolucionário. A burguesia preferiu a democracia, quando 
teve a certeza que os partidos socialistas tinham renegado o socialismo. 
Precisou antes se assegurar que a social-democracia não utilizaria as 
liberdades democráticas para subverter a ordem, organizando os trabalhadores 
para a luta pelo poder.

A social-democracia e a via inglesa indolor
Na etapa histórica anterior à Primeira Guerra Mundial, a sugestão de uma "via 
inglesa" - a perspectiva reformista de uma transição socialista por dentro do 
regime democrático, portanto, sem ruptura revolucionária - esteve no centro da 
disputa dentro da II Internacional, e ficou conhecida como o debate Bernstein. 
A querela do primeiro revisionismo marxista teve como pano de fundo a expansão 
imperialista do final do século 19 - até a Primeira Guerra Mundial - e a 
consolidação de regimes democrático-eleitorais, na Europa Ocidental, que 
absorviam as ambições de integração dos aparelhos sindicais e parlamentares 
reformistas - uma casta burocrática sustentada em setores privilegiados da 
classe trabalhadora e das novas classes médias. 

O reformismo não era, contudo, antes de 1914, somente uma ideologia 
reacionária. Não estava desconectado do processo econômico-social. O regime 
democrático, depois do susto da Comuna de Paris em 1871, se apoiava em reformas 
que favoreciam setores organizados entre os trabalhadores: o salário médio 
subia lentamente, mas subia, surgiam em muitas cidades as vilas operárias, o 
acesso à educação pública se ampliava, os direitos políticos foram ampliados, 
etc. Mas o reformismo "à la Bernstein" naufragou também com a precipitação da 
Primeira Guerra Mundial. Não foi indolor: dez milhões de vidas foram 
sacrificadas nas trincheiras.

O reformismo dos programas keynesianos do pós-guerra
O gradualismo democrático permaneceu sendo a política dos aparelhos 
social-democratas na etapa histórica posterior à Segunda Grande Guerra 
(associados aos partidos comunistas alinhados com Moscou), mas despojado de 
horizontes socialistas. A reconstrução capitalista da Europa fomentava o 
crescimento econômico, potencializado pela divisão de áreas de influência no 
mundo entre os EUA e a URSS, que garantia estabilidade política aos regimes 
democrático-liberais nos países imperialistas. 

Esse programa de colaboração de classes renunciou até ao vocabulário 
anticapitalista, em função de um projeto keynesiano de políticas anti-cíclicas 
de regulação do capitalismo que buscava o pleno emprego e a universalização 
gradual de serviços públicos como saúde e educação. O medo histórico das 
seqüelas previsíveis de uma possível crise como a de 1929, e de novas 
revoluções como o outubro russo, aterrorizava o capitalismo. A burguesia estava 
disposta a ceder reformas para evitar revoluções. Social-democracia e 
estalinismo renderam-se ao capitalismo e abraçaram a democracia e, durante 
décadas, relembraram o socialismo nos dias de festa. Claro que esse processo só 
foi possível porque a existência da URSS sob Stálin garantia a coexistência 
pacífica no sistema mundial de Estados, portanto, o controle colonial da 
América Latina, da Ásia e da África.

O reformismo das contra-reformas reacionárias
Nos anos 80, no contexto de uma crise de estagnação econômica de longa duração, 
o programa reformista desceu mais um degrau em sua adaptação ao regime 
democrático e aos limites do capitalismo. Assimilando a pressão dos ajustes 
exigidos pelo programa do neoliberalismo, Felipe González na Espanha e depois 
Mitterand na França, em seu segundo mandato, iniciaram as privatizações e o 
processo de precarização do trabalho. Blair e Gerhard Schroder, os líderes da 
chamada Terceira Via nos anos 90, passaram a denunciar a perda de 
competitividade da economia européia diante dos EUA e da Ásia, os gastos 
insustentáveis dos serviços sociais, os excessos fiscais do estatismo 
intervencionista, etc.

Diante da ofensiva neoliberal, conduzida em vários países com a cumplicidade de 
suas organizações sindicais, aconteceu uma evolução desfavorável para os 
trabalhadores das relações de forças sociais e políticas: com as derrotas, 
ocorreu uma desmoralização de amplos setores da classe. Em resumo, desde 1980, 
os regimes democráticos deixaram de oferecer para a classe trabalhadora, mesmo 
nos países centrais, a segurança de que a geração futura poderia aguardar um 
futuro melhor. Surgiu um reformismo de contra-reformas. A democracia-liberal 
entrou em crise, e com ela a sua ala esquerda, os partidos reformistas. 
Passaram a ser os gerentes da destruição dos sistemas de seguridade social 
construídos 50 anos atrás.

O reformismo das políticas compensatórias
A crise da economia capitalista desde meados dos anos 70 não foi superada pela 
restauração no Leste Europeu e pela recolonização da América Latina. O mapa da 
esquerda mundial começou a passar, então, por mudanças. Não só a democracia nos 
países imperialistas já não garantia emprego, salário, aposentadoria, saúde e 
educação, mas exigia uma política de guerra permanente. À esquerda da 
social-democracia e do curso majoritário dos ex-partidos comunistas, entre as 
ideologias nostálgicas do reformismo das etapas históricas anteriores, nenhuma 
foi mais representativa do que o programa da "cidadania participativa" que 
reuniu em Porto Alegre, desde 2001, algumas dezenas de milhares de ativistas de 
todos os continentes contra a globalização. 

Organizados ou atraídos pelas ONG's, uma parcela dessa militância jovem se 
desinteressou de projetos de luta pelo poder. Se já não era possível a defesa 
do programa gradualista dos serviços sociais universais, a alternativa passou a 
ser o programa das políticas sociais focadas ou compensatórias. Lula era ainda, 
entre 2001 e 2003, ano da posse, a principal referência deste reagrupamento. 
Política e socialmente heterogênea, com posições que oscilavam da defesa das 
experiências do "orçamento participativo" do governo do PT do Rio Grande do 
Sul, à proposta da taxa Tobin sobre as transações financeiras internacionais 
dos colaboradores da ATTAC, passando pelos que se iludem com o projeto de 
democratização dos organismos internacionais, como a ONU, o elemento comum que 
unifica boa parte dessa "nova esquerda" mundial é a ilusão na democracia. 

Democratizar a democracia?
Mesmo as correntes que se colocaram à esquerda desta esquerda eram forças 
engajadas na construção de partidos sem delimitação estratégica, como o PSOL. 
Admitiam a idéia de unir, em um mesmo partido, tendências que defendiam a 
reforma do capitalismo e o gradualismo democrático, e tendências comprometidas 
com a revolução. Mas, em um partido de tendências permanentes com estratégias 
incompatíveis, a construção de um denominador comum só pode ser alcançado a 
partir da posição mais moderada. O denominador comum dessa estratégia é a 
democratização da democracia. 

As posições de Heloísa Helena na campanha eleitoral têm sido, contudo, uma 
surpresa. Ela tem argumentado que não restaria aos socialistas alternativa 
melhor senão a proposta de regular o capitalismo pela redução de juros.

A candidata renunciou à defesa da suspensão do pagamento da dívida. Isso não 
corresponderia à atual relação social e política de forças, já que não se abriu 
ainda no Brasil, ao contrário da Bolívia e de outros países da América do Sul, 
uma situação revolucionária. Seriam necessárias, nessas circunstâncias, 
palavras de ordem plausíveis, ou seja, democráticas. Não há, de fato, uma 
situação revolucionária no Brasil. Isso não impede os socialistas de serem 
coerentes com seu programa e construírem uma campanha de educação política de 
massas sob as suas bandeiras.

Infelizmente, é o receio de perder votos que explica o discurso de Heloísa. 
Os socialistas não escondem seu programa em campanhas eleitorais. As eleições 
são o melhor momento para a apresentação de uma saída socialista para a crise. 
A tradição marxista-revolucionária sempre defendeu a atualidade das 
reivindicações democráticas - em especial nos países periféricos, onde a 
revolução por fazer será a simultaneidade de várias revoluções - mas nunca 
confundiu reivindicações democráticas com a defesa da reforma do regime 
democrático. O marxismo reconhece que no Brasil há uma revolução democrática 
por fazer, porque há tarefas democráticas pendentes. Mas nosso programa é a 
revolução socialista. 

Dizem-nos que o internacionalismo revolucionário, tal como inspirou a fundação 
da Primeira, Segunda, Terceira e Quarta Internacional, no limiar do novo 
século, seria uma utopia. No entanto, se algo pode ser dito do século 20 é que 
ele demonstrou ser possível o movimento dos trabalhadores triunfar 
revolucionariamente sobre o capital: afinal, revoluções socialistas 
conquistaram o poder em inúmeros países, até na pequena Cuba, a poucas milhas 
da costa dos EUA. O que é utópico, no início do século 21, é a regulação social 
do capitalismo, ou a democratização 
da democracia. 



1 ENGELS, Friedrich. "Introdução a Luta de Classes na França" In MARX e ENGELS. 
Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume 1, sem data, p.105. 

 
 

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