Abaixo, entrevista da Caros Amigos com Lúcio Flávio Pinto. Nosso entrevistado é um homem gentil e de aspecto grave, daquele tipo de repórter investigativo que não se faz mais. Durante três horas de conversa, ficou claro porque o jornalista e sociólogo Lúcio Flávio Pinto, 54 anos, vive há quase duas décadas sob a pressão de vários processos judiciais. O motivo? Escrever em seu Jornal Pessoal, formato tablóide, com tiragem de 2 mil exemplares, o que ninguém mais tem coragem de publicar sobre os principais conflitos da região amazônica, como a grilagem de terra, a exploração ilegal de madeira e a conivência do Judiciário com esses delitos. " Antes o grileiro tinha o seu parceiro no 38. Hoje os grileiros descobriram que o Judiciário, por desconhecimento, insensibilidade, omissão ou conivência, é o principal parceiro do grileiro na Amazônia". Ganhador de quatro prêmios Esso, dois da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais), e o maior prêmio jornalístico da Itália (o prêmio Colombe d ' Oro per la Pace), percorreu, ao longo de 38 anos de profissão, diversas redações como do Estadão, Veja e Isto É, e publicações alternativas, como dos extintos jornais Opinião e Movimento. Tem 10 livros publicados, todos sobre a Amazônia. Nesse momento, corre o risco de ser condenado e ir para a cadeia. "Acho interessante que durante o regime militar, fui jornalista por 19 anos e só fui processado uma vez. Desde 1992, já foram 15 processos, além de mais um na justiça eleitoral. Em pleno regime democrático, sinto-me mais perseguido do que na ditadura." Belém, 27 de julho de 2004. Entrevistadores: Rogério Almeida, Guilherme Carvalho e Nanani Albino. Fotos: Nanani Albino. Rogério Almeida - Como foi o início de sua carreira? Comecei no jornalismo em 1966, com 16 anos, em A Província do Pará. Aí fui pro Rio de Janeiro, onde trabalhei no Correio da Manhã. Voltei então para Belém, onde fiquei até janeiro de 1969. Quando foi baixado o AI-5, eu era editor de A Província do Pará, depois de ter sido seu secretário de redação por um período. Resolvi ir para São Paulo porque não havia mais condição de trabalho em Belém. Trabalhei no Diário de S. Paulo e no Diário da Noite, que faziam parte dos Diários Associados, e participei da edição especial da revista Realidade sobre a Amazônia, que ganhou o Prêmio Esso de Reportagem de 1971. Naquela época a edição foi de 450 mil exemplares. Uma edição de 400 páginas, toda ela sobre a Amazônia. Uma edição antológica. Trabalhei também na Rádio Eldorado do grupo Mesquita, do Estadão. Depois voltei para Belém, onde fui correspondente do Estadão e da Veja. Guilherme Carvalho - Quando foi esse regresso? Eu ia e voltava sempre. Nesse período era muito inconstante. Voltei mesmo em fim de 1971. Fiquei aqui até o fim de 1972, daí voltei para São Paulo, para o jornal O Estado de S. Paulo , onde fiquei 17 anos, de 1971 a 1988. Voltei para Belém no fim 1974,quando fiquei como correspondente. Trabalhei no Opinião, para mim, o maior jornal alternativo daquela época. Trabalhei ainda no Movimento e no EX. Todas eram publicações alternativas. Em seguida, trabalhei no O Liberal (jornal de maior circulação do Norte do país) e na TV Liberal. Trabalhei na Isto É e no Jornal da República. Aí, em 1987, comecei a fazer o Jornal Pessoal. Antes havia feito o Informe Amazônico, que foi o embrião do Jornal Pessoal. Foram 12 números do Informe Amazônico. Antes, em 1975, havia feito o Bandeira 3 , um tablóide semanal de 18 páginas. Nanani Albino - Antes de entrar no Jornal Pessoal, gostaria de voltar um pouco na sua trajetória. A Amazônia é rica em história de intensa migração. Gostaria de saber a história de sua família. Qual é o seu movimento familiar? Minha família é totalmente migratória. Meu avô por parte de mãe é português. Meu avô por parte de pai veio da seca do Nordeste para o Acre, depois para o Pará. Por parte de mãe português e acreano e cearense e acreano por parte de pai. Nanani Albino - Sempre em Belém ou interior? Eu nasci em Santarém e minha mãe também. Meu pai e minha mãe se juntaram lá. Depois viemos para cá. Nanani Albino - O que fazia o seu pai? Meu pai era precoce. Começou a trabalhar no Nordeste com meu avô, que era comerciante, com oito anos, carregava semente de algodão. Meu avô voltou para a Amazônia e meu pai dava aula de inglês e era fotógrafo. Foi o primeiro locutor esportivo em Santarém, com 14 anos. Fundou o jornal Baixo Amazonas. Depois foi presidente da Congregação Mariana e secretário do prefeito da cidade. Como o prefeito era muito inibido, era ele quem fazia os discursos, o que lhe rendeu o apelido de "papagaio do prefeito". Iniciou a primeira campanha para a industrialização da juta, fibra que havia sido trazida pelos japoneses para o Baixo Amazonas com sementes da Ásia. Como era muito audacioso, escreveu para Getúlio Vargas e conseguiu uma audiência com o presidente, no Palácio do Catete, Rio no Janeiro, na época sede do governo. O presidente liberou a importação das máquinas para a industrialização da juta. As máquinas vieram da Inglaterra e meu pai começou a montar a fábrica. Em 1954, ele foi deputado estadual pelo PTB, com a quinta maior votação do Estado. A família o acompanhou para Belém quando assumiu o cargo. Ele fez carreira como deputado pelo PTB, daí integrou a comissão de planejamento da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia). Rogério Almeida - O embrião da SUDAM? Não era o embrião do SUDAM. A SPVEA foi criada em 1953, por Vargas e estava ligada estava ligada à visão da substituição de importações; já a Sudam vinha executar uma política colonial, baseada no fornecimento de matérias primas e insumos básicos, começando com a pecuária de corte. Ela deveria continuar, mas desapareceu em 1966, no regime militar. Bem, meu pai trabalhou na SPVEA, depois foi prefeito de Santarém, pelo MDB (atual PMDB). Rogério Almeida - Então o senhor não teve problemas para estudar, já que era de classe média? A nossa vida foi um pouco incerta. Depois que meu avô perdeu tudo com a seca meu pai ficou pobre e eu estudava em escola pública. Num dado momento, meu pai começou a enriquecer como empresário e comerciante. Chegou a ter três fábricas, duas delas de fibras, a Tecejuta, em Santarém, e a Tecefátima, no município de Capanema, e a Cerâmica Marajó. Nessa época éramos de classe média alta. Pude ter um bom estudo. Meu maior patrimônio era uma conta corrente em aberto na Livraria Martins. Podia tirar o que quisesse. Guilherme Carvalho - Quantos irmãos? Somos sete. Seis homens e uma mulher. Guilherme Carvalho - Como foi o episódio que ocorreu com teu pai durante a ditadura? Naquele tempo, o Pará só tinha 83 municípios. Dos 83, o MDB, de oposição, só elegeu dois: em Santa Isabel, um pequeno município, e Santarém, o segundo mais importante município do Estado. Meu pai tinha conseguido uma vitória grande sobre a Arena, com uma margem de 65% dos votos. Ele já havia sido "garfado" duas vezes no "mapismo" (a fraude que era praticada quando se fechava a apuração dos votos). Então, desde o início ele ficou atravessado. A Arena tinha o controle político e ele tentou uma composição com o governador Alacid Nunes. Sob o pretexto de irregularidades nas contas dele, meu pai foi afastado pela Câmara Municipal, onde era minoria. Tinha apenas três representantes do total de nove. Afastado, a Câmara resolveu pela sua cassação. Ele entrou na Justiça no município de Óbidos, o juiz era Christo Alves, que veio a ser desembargador depois. Ele concedeu mandado de segurança para a reintegração do meu pai no cargo. No dia da execução do mandado de segurança, Alacid enviou uma tropa com 150 homens da PM com ordem de não permitir a posse. Papai teve apoio do deputado mais votado da região, o brigadeiro Haroldo Veloso, que tinha sido líder da revoltas de Jacareacanga e Aragarças contra Juscelino kubistchek e era da ala radical da Aeronáutica, embora fosse da Arena. Ele disse que ia liderar a passeata para papai reassumir a prefeitura. Quando a passeata saiu, às cinco horas da tarde, para a prefeitura, a PM começou a atirar. Morreram três pessoas. Papai teve que fugir e recebeu a cobertura do brigadeiro Paulo Vítor, que se deslocou para lá com tropas, em avião da Aeronáutica. Isso aconteceu em 1968. Ele conseguiu fugir e depois teve o mandato cassado. Talvez seja o único político cassado duas vezes. Primeiro o mandato e depois os direitos políticos. E Santarém foi declarada área de Segurança Nacional, não pôde mais eleger seu prefeito. Rogério Almeida - Como foi a sua saída para o Sudeste. Foi convite de algum meio de comunicação de lá ou uma iniciativa sua? Vi que aqui não dava mais. A imprensa estava acomodada. Fui primeiro para o Rio de Janeiro. Parte de minha família morava lá e mesmo sem contato nenhum consegui trabalhar no Correio da Manhã, na última fase de D. Niomar. A gente já começava a ver o início da decadência do jornal que havia sido o mais importante da República. Por problema de família, voltei para Belém. Fiquei indo e vindo um certo período. Até que fiquei em Belém por mais tempo e participei de uma série de transformações em A Província do Pará. A primeira página dessa época era só de telegramas nacionais e internacionais. Fizemos chamadas de primeira página, introduzimos suplementos. Aí veio o AI- 5. Li a íntegra na redação, fim de noite. Vi que não tinha como ficar mais em Belém. Rogério Almeida - Do Pará, quem assinou foi o Jarbas Passarinho? Passarinho era o ministro do Pará, autor da célebre frase sobre "jogar fora os escrúpulos da consciência" para poder assinar o AI-5. É a frase mais infeliz de Passarinho. Vi que não tinha chance, que os donos de jornais iriam aceitar a censura, determinada por via telefônica, como aceitaram mais tarde. No dia 2 de janeiro de 1969, fui para São Paulo e ainda peguei a decadência dos Diários Associados, do Diário de S. Paulo, que durante um certo período foi um dos mais importantes de São Paulo. Chegamos a criar ainda um suplemento de vanguarda aos domingos. Nesse período o que me interessava era o cosmopolitismo, sociologia cultural e sociologia política. Meu sonho era passar um tempo fora, sair do Brasil. Estava fazendo mestrado em política na USP, com Oliveiros Ferreira. Minha tese era mostrar que às vezes o pensamento conservador pode ser mais modernizador do que o pensamento de esquerda e analisava os intelectuais das décadas de 20 e 30 no Brasil. Fui entrevistar o presidente da Associação dos Empresários da Amazônia, na antiga sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, que era no Viaduto Maria Paula, o Eduardo Celestino Ribeiro, bandeirante típico, dono da Cetenco Engenharia. No meio da entrevista, ele começou a falar da Amazônia que bandeirantes como ele estavam criando. Na medida em que ele falava (já havia escrito dois livros sobre isso), EU entrava em pânico. Dizia para mim mesmo: se ele conseguir fazer isso, a minha Amazônia, na qual nasci e havia vivido a maior parte da minha vida, desaparece. Era o auge da pecuária de corte. Decidi voltar para a Amazônia. Nanani Albino - Era a contradição de sua tese? Não é contradição. É aplicação histórica. Aquelas tendências modernizadoras dos anos 20 e 30 se tornaram conservadoras. Avalio que há uma diferença entre conservadorismo e reacionarismo. Meu marco teórico na época era Karl Manheimm. Eu dizia que às vezes a reação contra a mudança exerce um papel muito importante de oxigenação das idéias (daí a importância do pluralismo e da tolerância). Isso ocorreu com o fim do feudalismo na Europa. O pensamento dos nobres da oligarquia fez-se mágico. Assim, surgiu uma literatura fantástica, muito rica. Eles escapavam da realidade para o mundo da imaginação. Isso é bom para gerar controvérsia. Um ambiente mais democrático. Foi isso que ocorreu com os intelectuais de 20 e 30 chamados de direita: Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Lourival Fontes. Todos estão atentos a Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda. E esquecendo essa vertente, incluindo Gilberto Freyre, que conheciam o Brasil melhor dos que os de esquerda. Os pensadores conservadores, como Paulo Prado, conheciam muito o Brasil. Rogério Almeida - E os conservadores de hoje, conhecem? Acho que não conhecem mais. Nanani Albino - O que desconhecem? O brasileiro continua a viver como caranguejo, arranhando o litoral, para usar a imagem quinhentista. Do ponto de vista do pensamento, a imagem vale até hoje. É sempre o pensamento do litoral voltado para fora do Brasil. O Brasil não conhece o Brasil. A penetração para o sertão, a corrida para o Oeste, mais destrói do que conscientiza. A descoberta do Brasil não passa de movimentos espasmódicos e cheios de exotismo. É o descobridor querendo que a paisagem original seja de acordo com a visão do colonizador. Isso me levou a desistir da grande imprensa. Houve um momento importantíssimo para mim, principalmente entre 1971 e 1979. Quem quiser escrever a história da Amazônia tem que obrigatoriamente consultar o jornal O Estado de S. Paulo nesse período. A história da Amazônia desse período está no Estadão. Em nenhum outro lugar a história da Amazônia é mais visível. Isso foi um trabalho paulatino de convencimento da direção Nanani Albino - Isso se deve a quê? Por que você estava lá? Quando fui para o Estadão, não havia um só paraense na redação, nem de qualquer outra parte da Amazônia. Várias coincidências fizeram aproximar -me do dono do jornal, Júlio Mesquita Neto. Em alguns momentos ele precisou de determinadas coisas que forneci, inclusive escrever editorial. Naquela época fiz a "heresia" de entrar na sala do doutor Júlio, na qual ninguém entrava. Não tinha muito respeito pela sacralidade do "aquário" (ambiente da direção do jornal) do chefe. O Estadão tinha a mácula do Estado Novo, quando o governo entrou no Estadão e o administrou. A propósito, o Estadão melhorou tecnicamente nesse período. A marca do liberalismo do Estadão dessa época era não aceitar censura. A rede de informação do Estadão era bem fraca. Sob a liderança do Raul Martins Bastos, do Departamento de Sucursais e Correspondentes, que naquela época não tinha muita importância, ajudei a fazer a mudança de toda a rede de correspondentes do jornal no país. Havia pessoas que trabalhavam no jornal fazia muito tempo, e entraram numa rotina que era pobre para o jornalismo. Rogério Almeida - Quem veio cobrir a Guerrilha? Nós tínhamos feito o levantamento e faltava apenas a senha, que viria a ser a ACISO - Ação Cívico Social do Exército, que arrancava dentes da população carente e outras coisas, além do que o repórter enviado era tido como de confiança do governo. Os oito parágrafos iniciais eram dedicados a essa história da ACISO, o resto era só a história da guerrilha, a única que furou a muralha da censura no período. Depois disso, se decidiu que o Estadão ia ser o grande jornal da Amazônia. O plano, aprovado pessoalmente pelo doutor Júlio, era para eu vir para cá e montar a sucursal, a primeira sucursal verdadeiramente regional do jornal. Fizemos uma grande reunião com todos os correspondentes da região, e logo acertamos que São Paulo não mexeria em nosso texto. A nossa idéia era depurar a visão exótica da Amazônia. Permitir que a Amazônia verdadeira emergisse na grande imprensa. Rogério Almeida - Como foi a decisão da direção? A gente apresentou o projeto e foi aprovado. Rogério Almeida - Ainda é exótico o olhar da grande imprensa sobre a Amazônia? Hoje a cobertura da grande imprensa é muito pior do que na época do regime militar. A grande imprensa vê a Amazônia como o lugar onde ocorrem os fatos insólitos, originais e inéditos. Eles não conseguem fazer uma cobertura sistemática. Nanani Albino - Quem são "eles"? Toda a grande imprensa. Na época nós tínhamos a sucursal do Estadão, da Veja, Manchete. Todos os grandes jornais tinham correspondentes. Rogério Almeida - Não é contraditório quando a Amazônia é pauta em todo canto do mundo? É um interesse estandardizado. É o que se quer que seja a Amazônia. Essa é a regra para a Amazônia. Para acompanhar a Amazônia bem, é preciso uma boa estrutura, gente bem paga e qualificada. Eles não querem isso. Exemplo disso é Klester Cavalcanti, repórter da Veja. Ele apareceu um dia dizendo que foi seqüestrado, embora o caso nunca tenha sido bem elucidado, provavelmente pelos grileiros de terras. Ele foi retirado de Belém logo em seguida como se fosse uma operação de guerra. Uma história cheia de contradição. Dois terços da matéria que saiu em Veja era sobre o seqüestro dele. O que ele escreveu sobre grilagem de terras não justificava de jeito nenhum qualquer ato hostil. Era muito menos do que qualquer um aqui da terra já havia escrito várias vezes. Ele saiu como o Indiana Jones, de volta à metrópole cosmopolita depois de aventuras na jungle feroz e primitiva. (Leia a resposta do jornalista Klester, a tréplica de Lúcio Flávio e a continuação da discussão aqui <http://carosamigos.terra.com.br/novas_corpo_ci.asp?not=602> ) Guilherme Carvalho - Nesse caso o seu Jornal Pessoal surge para se contrapor a isso? Como disse, fiquei 17 anos no Estadão. Existe uma regra que se você sobrevive a 15 anos na empresa, você é indemitível , para usar um neologismo. Quando pedi demissão, o doutor Júlio me ligou. Ele se sentia desconfortável, eu vim com um compromisso dele. Pedi demissão porque não acreditava mais que o Estadão pudesse fazer uma cobertura decente da Amazônia, como havia feito no passado. Nanani Albino - O que havia mudado? Tinha mudado o seguinte, vou citar um exemplo: eu estava fazendo uma cobertura sobre um assunto. No melhor dia a matéria não saiu. Liguei para o editor de São Paulo e perguntei o que estava acontecendo. Ele falou que havia dado dois dias seguidos de Amazônia e que precisava dar uma matéria de Fortaleza. Vi que o Estadão não voltaria mais a ser o que era. Quando saí, depois de 22 anos na grande imprensa, sabia que não tinha volta. Meu compromisso era com a Amazônia. Escrever o que a grande imprensa não escrevia. Eu já tinha iniciado o Jornal Pessoal, em setembro de 1987. Rogério Almeida - Você ainda estava no Liberal? Eu ainda estava em O Liberal. Começou exatamente por causa da morte de Paulo Fontelles, que foi deputado estadual pelo PMDB e advogado que defendia os posseiros no sul do Pará. Ele não conseguiu se eleger deputado federal. Seria reeleito fácil se saísse deputado estadual. Aí ele assumiu o vínculo com o PC do B. Três dias antes a gente havia participado de um debate no Instituto Lauro Sodré, do qual fez parte Luiz Pinguelli, que ficou pouco tempo na Eletrobrás, porque ele não tem voto, Lula o demitiu para colocar o Silas Randeau. Rogério Almeida - Por pressão do PMDB? Da ala conservadora do PMDB e porque o Pinguelli queria executar o programa do PT para energia. Mas o PT já tinha mudado e não queria mais o programa de energia. Rogério Almeida - Pinguelli é a maior autoridade de energia no Brasil? Não digo que é a maior, mas digo que é uma grande autoridade, é respeitado por todas as pessoas. O que o PT fez com ele foi uma coisa indecente. Decidiu demiti-lo sem que ele nem fosse consultado. Como fez com o Christovam Buarque. Bem, voltando ao episódio Paulo Fontelles, nós estávamos no debate, Paulo e eu, depois conversamos longamente. Parecia um desabafo dele. Três dias depois, quando estava fazendo uma cobertura na Sudam, um colega que cobria polícia informou que ele havia sido morto. Vi o corpo dele quando ainda estava no carro. Ele estava no banco do carona. Ainda com o cigarro na mão. Foram três tiros de mestre dados na cabeça dele. Morreu na hora, sem a menor possibilidade de reação. Foi no dia 10 de junho de 1987. Uma regra não escrita do crime de encomenda dizia que quem estava em Belém estava a salvo. Era a sede dos poderes institucionais. Agora, no sertão, não; era a lei da selva. Em Belém, os pistoleiros respeitavam. O caso do Paulo foi o primeiro crime político na região metropolitana de Belém. Eu disse que a gente tinha que impedir que o crime ficasse impune. Só assim seria possível frear uma escalada, como viria a ocorrer. No ano seguinte, foi morto o advogado João Batista, em pleno exercício de seu mandato de deputado estadual. Passei três meses investigando. Escrevi uma matéria, que veio a ganhar o prêmio da FENAJ, no ano de seu lançamento. Escrevia nessa época a coluna Repórter 70, a mais influente do jornal O Liberal, apresentava um programa de entrevistas na TV Liberal e tinha minha própria coluna assinada no jornal. Na época do assassinato do Paulo, o dono da empresa tinha acabado de morrer, o Romulo Maiorana. Entreguei a matéria para a Rosângela Maiorana Kzan, que depois viria a entrar com cinco ações na Justiça contra mim. Ela falou que a matéria era impressionante, só que tinha um problema: denunciava as pessoas mais ricas do Pará: o Joaquim Fonseca, que se dizia o maior armador fluvial do mundo, e o Jair Bernadino de Souza, da Belauto, a maior revendedora de automóveis. Ela disse que não podia publicar a matéria porque citava dois dos maiores anunciantes do jornal. Sugeri que ia fazer um jornal, ela falou que imprimiria o meu jornal de graça, contanto que não citasse isso. Depois, entraram com uma ação na justiça para que citasse onde era a impressão do Jornal Pessoal, para intimidar as gráficas, que realmente se amedrontavam. No segundo número, foi uma denúncia de um rombo de 30 milhões de dólares no Banco da Amazônia (BASA), que nenhum jornal publicava, pelo presidente interino do banco, que era o advogado de O Liberal, Augusto Barreira Pereira. O Liberal não publicava porque um dos envolvidos era o procurador dele, e A Província do Pará não publicava porque outro dos envolvidos era o famoso Billy Blanco, irmão do Milton Trindade, superintendente da empresa. Rogério Almeida - O compositor? O compositor se beneficiou, são as fraquezas da alma. Aí O Liberal disse que não imprimiria o jornal. Passei para a segunda gráfica, das 11 pelas quais o Jornal Pessoal já passou. Em seguida, publiquei uma denúncia de uso de cocaína bem antes da escalada da droga, sobre a penetração da cocaína na alta sociedade. Envolvia uma pessoa que era amiga do dono dessa segunda gráfica, que não podia imprimir por causa disso. O que avaliei é que se o Jornal Pessoal não saísse, mesmo saindo pouco, com pouca circulação, determinadas matérias nunca seriam publicadas na imprensa local e nacional. Local por causa dos compromissos, nacional pelo desinteresse. O Jornal Pessoal se mantém nessa trincheira. Se não sair no Pessoal, provavelmente não sai em nenhum lugar. Nanani Albino - Você sofre ameaças? Além de situações constrangedoras de perda de amizades, há ameaças anônimas. Na primeira você fica em desespero. Depois aprende a filtrar as ameaças que são sérias dos trotes. É preciso tratar com seriedade o assunto. Tem gente que é vítima de brincadeiras de humor negro e se diz perseguida. Houve um momento em que os telefonemas anônimos não vinham para mim. Foi feito um para o diretor de redação de O Liberal, que era o Cláudio Augusto de Sá Leal, que já morreu. Dizia a voz: "Doutor, prepare a manchete de amanhã: Assassinado Lúcio Flávio Pinto". Descobri de onde vinham as ameaças. Isso foi em 1985, o Jader Barbalho era o governador do Estado. liguei para ele, informei-o e lhe disse que se fosse investigar saberia de onde estava vindo. Comuniquei-lhe que estava com uma carta para ser enviada para o dono do Estado de S. Paulo, contando que as ameaças de morte estavam vindo dele. Depois do impacto, o Jader reagiu, disse que a carta seria usada pelos seus inimigos para tentar prejudicá-lo. Retruquei que eu é que estava sendo ameaçado de ser destruído. Ele pediu 24 horas para desmontar o esquema. No dia seguinte, ligou dizendo que era verdade e que ele havia desmontado o esquema. Guilherme Carvalho - Os caras estavam mesmo interessados em assassinar você? O Jader apurou minha denúncia e desfez qualquer esquema que pudesse ser montado contra mim afirmando, numa reunião com seu esquema de segurança, literalmente, que "cortaria o saco" de quem pretendesse me fazer mal. Na época, eu estava fazendo a primeira denúncia de corrupção do Jader. Foi por isso a reação. A denúncia estava muito bem documentada. Eles não tinham como rebater. Foi o momento mais crítico. Por ironia, dizem que protejo o Jader. Nanani Albino- Por que dizem isso? Eu e o Jader estudamos na mesma época no Colégio Paes de Carvalho. Da turma, fui o único que não subiu com o Jader. O resto todo subiu. Quando o Jader estava formando o primeiro secretariado dele, me chamou na sede do IDESP (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social do Pará, órgão extinto no governo Almir Gabriel, do PSDB). Estavam ele e o Roberto Ferreira, que seria o secretário da Fazenda. Ele perguntou o que eu queria ser no governo dele. Nessa época eu escrevia muito sobre terras, ele sugeriu a presidência do Iterpa (Instituto de Terras do Pará). Falei que não, ele sugeriu que eu fosse o coordenador do Conselho Superior de Desenvolvimento, que seria o órgão-chave da administração dele, mas se reuniu uma vez. Falei que não queria nada, que seguiria jornalista e crítico dele. Guilherme Carvalho -Você responde a quantos processos e qual a natureza deles?- Acho interessante que durante o regime militar (1964-1985), fui jornalista por 19 anos e só fui processado uma vez. O caso foi por causa do suplemento Encarte, que editava em O Liberal. Denunciei o processo de tortura que uns presos sofreram após uma fuga. Eles eram levados de barco para "interrogatório" na ilha de Cotijuba. Na lancha Martada Conceição houve a fuga e jogaram na baía o tenente responsável pela tortura, Teodorico Rodrigues. Fizemos as fotos da tortura, publicamos. O governador da época era o Aloysio Chaves, que mandou investigar as denúncias. O chefe do inquérito era o então major Antonio Carlos (depois coronel da PM e secretário de Segurança Pública). Ele me chama de lado e informa que todos os jornalistas que foram lá haviam admitido que as fotos tinham sido montadas. Desmentiram tudo o que haviam feito. E que o interesse da polícia era pegar o repórter policial Paulo Ronaldo. O Paulo foi um célebre repórter, tinha sido eleito deputado estadual pela oposição. Ele era muito popular e tinha tido uma votação estrondosa. A polícia era louca para pegá-lo. Eu e o Paulo fomos indiciados na Lei de Segurança Nacional por incitarmos a sociedade contra as autoridades. Depois o crime foi desqualificado na justiça militar e o processo arquivado na justiça comum. Desde 1992, quando a Rosângela Maiorana Kzan entrou com a primeira ação, das cinco que moveu contra mim, já foram 15 processos, além de mais um na justiça eleitoral. Em pleno regime democrático, sinto-me mais perseguido do que na ditadura. Rogério Almeida - O que se passa? A Justiça está sendo usada como instrumento de quadrilhas. Vejamos uma coisa absurda. A história da maior grilagem da humanidade usa como autor um certo Carlos Medeiros. Todo mundo sabe que o Carlos Medeiros não existe. Foi forjado por uma quadrilha de advogados e corretores de terras. Foi inventado por um advogado que morreu recentemente. Eles vão aos cartórios com os juízes e desembargadores em nome de uma pessoa que não existe. Já escrevi várias vezes no Jornal Pessoal que a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) exigisse do advogado a apresentação em carne e osso do cliente, o Carlos Medeiros. E caso o advogado não apresentasse no prazo de uma semana, cassasse a licença do advogado. A Justiça, hoje, por ser o poder menos fiscalizado, se tornou um poder terrível. Rogério Almeida - Desse rosário de processos, nove são sobre grilagem de terras? Nove são de grilagem de terras e extração de madeira na Terra do Meio, lá no Xingu. Cinco são da dona do Liberal, a Rosângela Maiorana Kzan. Chegou ao cúmulo de ela entrar com ação cível para me proibir de falar o nome dela para sempre. Fiz a seguinte pergunta no Tribunal: caso ela ganhe, como vai ser a execução da sentença? Vão mandar um censor do Tribunal? Vou ter que submeter o Jornal Pessoal a um censor do Tribunal? É um absurdo. A ação prospera até hoje. Guilherme Carvalho - A Justiça paraense nesse caso, ou o Judiciário de um modo geral, está servindo como instrumento para que a ação dessas quadrilhas de grilagens de terras proliferem? Veja o caso da desembargadora Maria do Céu Duarte. Ela se sentiu ofendida por um artigo meu no qual reproduzia trecho de uma decisão dela. Disse que a ofensa era agravada pelo fato de eu ter colocado aspas na declaração dela, denotando intenção de ofensa. Rogério Almeida - Para tentar ser didático. São três os atores que o processam. Os dois desembargadores, a Maiorana e o pessoal da grilagem de terras. E tem a figura intolerante do prefeito de Belém, que também é dono de uma ação, Edmilson Rodrigues (PT/PA). A ação é porque ele dava dinheiro para um escroque, um crápula do jornalismo para defender a prefeitura e garantir uma coluna com pseudônimo, que era o "Décio Malho". Usando essa gazua, ele ofendia todas as pessoas inimputavelmente. Mostrei que o PT, que vinha para estabelecer a moralidade, estava usando o dinheiro público para chantagem. Rogério Almeida- Qual era o jornal? Jornal Popular. Rogério Almeida - Ainda existe? Existe, mas sem o seu criador, que morreu, perdeu eficácia. Quando o prefeito deixou de pagar o jornal, o jornal deixou de falar bem dele. No processo, uso a figura jurídica da exceção da verdade. Ou seja, a possibilidade de provar que tudo que estou dizendo é verdade. E as pessoas não deixam. A primeira sentença que me condenou foi manuscrita. Tinha 54 páginas. Foi dada por uma juíza que jamais havia dado uma sentença parecida. Você visualizando notava que não era a mesma letra. Há uma regra da lavratura de sentença que diz que se o juiz começar a manuscrever a sentença, tem que fazer do principio ao fim, rubricar cada página e assinar no final. A juíza não fez isso. Pedi perícia. Afirmava que não havia sido a juíza quem havia escrito aquela sentença. Pedi perícia grafotécnica e grafológica. Era mais de um modelo de letra. Rogério Almeida - Qual foi a acusação? Foi na ação da Rosângela Maiorana, por crime de imprensa. Rogério Almeida - O que a motivou a processar você? Mostrei a briga entre os irmãos Maiorana. Mostrei que havia uma dissensão entre os irmãos. Que eles estavam usando o mesmo funcionário para criar duas empresas para fazer no Amapá a mesma coisa para um e outro, sem que um soubesse da iniciativa do outro, em negócios pessoais paralelos ao da empresa. Estavam criando empresa satélite para um e para outro. Depois o funcionário foi demitido por justa causa. Acho importante dizer que em nenhuma das 15 ações qualquer dos autores usou o direito de resposta. Ninguém quis exercer o direito de reposta no meu jornal ou em outro espaço, inclusive um servidor público, como é o desembargador. Por que eles não prestam contas? Publico qualquer tipo de carta. Nanani Albino -Você tem alguma condenação? O primeiro caso foi esse da Rosângela Maiorana. O segundo foi o do desembargador João Alberto Paiva. No primeiro pedi a perícia. Acabou não sendo feita a perícia. A desembargadora que autorizou a perícia foi alvo de uma campanha contra ela no jornal O Liberal. Tentei esclarecer o caso. Não tive espaço nem no jornal oponente, o Diário do Pará (propriedade do deputado federal Jader Barbalho). O próprio Jader interferiu para a não publicação da explicação, quando o pai dele já havia autorizado. Rogério Almeida- Tem um problema também com os órgãos de imprensa aqui no Pará? Tem. No O Liberal sou proibido de sair. A coisa é tão séria, que fui fazer uma palestra num cursinho. O dono resolveu anunciar no jornal O Liberal, pagando nos classificados. Nem anúncio pago com o meu nome sai no Liberal. A pedido meu, numa das audiências, a juíza interrogou Rosângela Maiorana se era verdade que o meu nome era proibido de sair no jornal. Ela respondeu que não. Que no dia em que eu morrer, sai. Quanto ódio, meu Deus! Rogério Almeida - Como é a história mais recente de sua batalha processual, a da condenação do processo movido pelo desembargador Paiva? Em 1996, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) propôs, na comarca de Altamira, uma ação de anulação e cancelamento dos registros imobiliários que havia ali em nome da Incenxil (Indústria, Comércio, Exportação e Navegação do Xingu). A Incenxil era uma empresa de Altamira, que foi comprada pela Rondon Agropecuária, do grupo C. R. Almeida. O que havia de ativo na Incenxil? Registros de posse, com uma cadeia dominial longa, mas que não mostrava a origem da titulação. Cadeia dominial são os registros sucessivos que o imóvel tem no cartório. A propriedade privada só se caracteriza quando o domínio da terra sai do patrimônio público para o particular. O primeiro registro, de 1923, tinha a seguinte informação: " título hábil", mas sem informar qual era o título. Evidentemente que era uma cadeia dominial incompleta. Rogério Almeida - Altamira ainda é o maior município em extensão territorial do mundo? Ainda é o maior município. No "chute", uns 150 mil quilômetros quadrados. O Iterpa pediu para o juiz Torquato Alencar uma tutela antecipada. O que é isso? Autorizar que na margem do registro constasse, com autorização do juiz, que essa terra está sub-judice por causa da ação de cancelamento proposta pelo Iterpa. Para que isso? Para alertar terceiros de boa fé. Qualquer pessoa que quisesse comprar essas terras iria saber que a terra estava sob litígio. Assim, qualquer comprador seria de má fé. Sem direito a indenização. O juiz deu a tutela antecipada. A empresa recorreu em Belém. O agravo foi para o desembargador João Alberto Paiva. Ele decidiu, em liminar, sem examinar o mérito da questão, que as terras são "inquestionavelmente de propriedade particular". A liminar é dada quando o direito é evidente (sem maior indagação) e há iminência de dano irreparável. Como, se o Iterpa entrou com o pedido de anulação e cancelamento dos registros imobiliários que havia no cartório de Altamira da Incenxil? O desembargador deixou de ouvir o Ministério Público. São 5 milhões de hectares. São duas vezes e meia a área da Bélgica. Todos os órgãos públicos, federais e estaduais, dizem que a terra é pública. Avalio que o juiz deveria ter tido cautela na questão. Quatro meses depois da decisão, o Ministério Público se manifestou contrariamente. Nanani Albino - Você fez alguma crítica sobre o desembargador ou somente sobre a decisão dele? A minha crítica é sobre o ato. Ao longo desses 40 anos, nunca entrei num assunto se não tenho prova. Nunca fui processado por falta de provas. A questão é sintomática. A C. R. Almeida, antes entrar com as ações, tinha o jornalista Oliveira Bastos como seu assessor especial. Mandou-me duas cartas violentíssimas. A tentativa era me desmoralizar. Não conseguiu. Depois ele saiu da empresa. No terreno do debate, não fui vencido. Só escrevo depois de ler, verificar, me convencer da questão. Não produzo com base em dossiê. Só escrevo quando domino o assunto. Guilherme Carvalho - Lúcio, você tem tido dificuldade de conseguir advogado aqui? Quando a Rosângela Maiorana Kzan, em setembro de 1992, entrou com a primeira das cinco sucessivas ações, procurei oito advogados. Em geral, de esquerda. Todos, sob diferentes pretextos, não aceitaram a minha causa. Uns alegando dor de cabeça, amizade... Um amigo, que não era advogado militante, sem escritório, topou fazer a defesa. O acordo era que eu freqüentasse o Fórum e ajudasse na elaboração das peças. Aí comecei a estudar Direito e freqüentar o Fórum. São doze anos. Usei de todos os institutos do Direito Penal. Sempre é a Lei de Imprensa. Avalio que não haja alguém que conheça a Lei de Imprensa melhor do que eu. Nanani Albino - Por que a Lei de Imprensa, criada em pleno regime militar, ainda não foi derrubada? A lei é inconstitucional. Só que alguém tem que entrar com Ação de Declaração de Inconstitucionalidade (ADIN). Aí fica o sindicato, a Federação, ficam os grandes líderes dos direitos humanos dizendo que a lei é entulho do regime autoritário. E ninguém toma uma atitude positiva. A Constituição revogou tacitamente a lei. Como a Lei de Imprensa é especial, ela deve ser declarada inconstitucional e tem que ter uma outra lei para substituí-la. Por quê? Porque os democratas de ontem são os autoritários de hoje. Edmilson Rodrigues, prefeito do PT, usou a Lei de Imprensa contra mim. Lula não vive dizendo que a imprensa é denuncista? Não interessa ao poder, de direita ou de esquerda, abolir a Lei de Imprensa. Guilherme Carvalho - Qual avaliação que você faz da relação entre os meios de comunicação, governo e esses grupos econômicos que estão controlando mais terras, grilando? Acho que a imprensa deva ser democrática. Se você manda uma carta e o jornal não a publica, já deveria ser considerado crime, a recusa da publicação da carta. Se você mandou e em 48 horas o jornal não publicou, já seria crime. Bastaria entrar na Justiça provando o recebimento da carta pelo jornal e sua não foi publicação. A partir desse dia, multa violenta na empresa, em dinheiro. Com isso se resguardaria o direito do cidadão de se defender daquilo que foi escrito contra ele na imprensa. Por esse lado, se defenderia o cidadão. Outro ponto seria que ninguém poderia entrar na Justiça sem antes esgotar a via administrativa. Nesses moldes, nenhum dos desembargadores poderia me processar, já que não exerceram o direito de resposta. Acho também que com a criação de alguns mecanismos seria possível estabelecer uma relação democrática dos meios de comunicação. Por exemplo: cada empresa que alcançasse determinada tiragem, ou determinado capital, deveria ficar obrigada a abrir o seu capital. E a empresa não poderia absorver as ações totais, deveria permitir que 10% fossem comprados pelo cidadão. Não acredito no modelo de conselho, como feito no Peru. O Estado, quando entra no campo cultural, é totalitário por atavismo. É o cidadão que deve ter o controle. Não o Estado. Quando optei pelo Jornal Pessoal, nunca aceitei publicidade. Nanani Albino - Como ele sobrevive? Há horas em que ele se paga. Há horas em que não se paga. Isso hoje é o que menos importa. Numa época ele só era vendido através de assinaturas. Cheguei a ter 1.200 assinantes. Mais que o Jornal Liberal, que tinha 800. Mas para manter as assinaturas, teria que virar empresa. Nanani Albino - Qual é a tiragem? 2 mil exemplares. Nanani Albino - E a distribuição? Só em banca. Guilherme Carvalho- Voltando naquela relação dos meios de comunicação. Poder Judiciário e os grupos econômicos... A C. R. Almeida criou uma pendência judicial. Enquanto tiver a pendência judicial, ela domina a terra. É uma forma mais sofisticada de grilagem do que as formas anteriores. A forma antiga era falsificação de título, corromper o cartório. Agora eles fazem questão de manter a questão sub-judice. A justiça pode tomar uma decisão. No próximo número do Jornal Pessoal farei um comentário sobre uma resolução baixada pela corregedora geral de Justiça do interior, Carmencin Cavalcante. Ela usou seu poder de arbítrio numa questão. O poder arbitrário do Estado deve ser em defesa do interesse público. Se há dúvida de registro de uma terra imensa, cancela-se e o particular que vá para a justiça. Guilherme Carvalho - A Justiça no Pará não decide por quê? Porque não quer. Há esse exemplo da doutora Carmencin Cavalcante. Ela baixou uma resolução em que ela cancela. No caso da Jarí, ela cancelou a unificação de terras em 940 mil hectares. Exerceu o poder de arbítrio. Tem de usar. Falta vontade ao judiciário. Agora mesmo estão com recurso de plotagem, GPS. Sim, de que adianta ter tudo isso sem vontade política? Nanani Albino - Você ainda é réu primário? Sou. Porque a questão está suspensa. Tentaram armar uma trama quando fui condenado pela primeira vez. Eles queriam me colocar na cadeia e fotografar, para pôr a minha foto no jornal. Mesmo que eu saísse no primeiro minuto. A justiça é terrível. É um poder triturador -lento, mas inelutável. Por isso há o ditado: quem tem juízo, não vai a juízo. Quando li a decisão do Tribunal, passei o fim de semana questionando onde havia errado. Não posso errar. Não posso deixar o inimigo se alimentar de falhas. Sobretudo das pequenas, que desviam da apreciação do mérito e se restringem a uma preliminar formal. Nanani Albino- Como você consegue com tanta pressão ser um repórter investigativo? O que significa ser um repórter investigativo? As pessoas pensam que repórter investigativo é aquele presenteado por dossiê. Investigar significa ir atrás do fio da meada e questionar sempre. Se você não tem dossiê, vai atrás dos fatos. A escola de repórter de polícia continua sendo a grande escola. Morto não manda release. Não tem assessor de imprensa. O problema é que consigo desagradar todo mundo. O PT não me considera um aliado. O PSDB não me considera aliado. O PFL, idem. Azar deles. E azar o meu. Guilherme Carvalho - Você falou do governo Edmilson e falou do Jader. E quanto ao governo do Estado, os governos de Almir Gabriel e Simão Jatene (atual governador do Pará/PSDB). O Ministério Público faz o que o Executivo quer? Infelizmente. Quando ele passou a se tornar muito forte, os procuradores passaram a ter carreira política. Marília Crespo, Manoel Santino saíram do MP diretamente para a política. Acho isso uma promiscuidade. Acho que não se deveria mandar lista tríplice para o governador. O colegiado do Ministério Público deveria escolher seus novos integrantes. Não tem porque representante do Ministério Público ser desembargador. Nem gente da OAB. A promoção deveria se restringir aos integrantes da carreira. O governador não deveria nomear ninguém. Todos acabam dependendo do poder executivo. Nanani Albino - Você falou que a melhor escola para investigar os fatos é estar diante dos fatos e perguntar. No que tange à Amazônia, o que te inquieta? Quais os fatos que deveriam estar na pauta e não estão? Sempre lembro, como metáfora, o exemplo de Isaac Newton. Estavam os dois irmãos debaixo da macieira. Felizmente a maçã caiu na cabeça de Newton. Fosse na cabeça do irmão, teria gerado no máximo um palavrão. O jornalista é aquele que faz a pergunta certa, na hora certa. O jornalista é aquele que incomoda o poder. Seja qual for. Ideológico, econômico, institucional. Uma vez, em Tucuruí, o presidente da Eletronorte afirmava que a água do lago era boa. A TV filmando. Então pedi: "beba essa água". Ele não tomou. Ninguém estava esperando. Liquidou-se. Um outro episódio foi com o pistoleiro que executou o deputado João Batista, de nome Péricles. Numa pequena sala da Assembléia Legislativa, ele dava entrevista. Só entrava uma equipe de TV de cada vez. A que estava naquele momento era a equipe da Cultura. O pistoleiro afirmava que nunca tinha pegado numa arma. Pedi para o soldado tirar as balas do revólver que usava e passá-lo para mim. O capitão, que estava ao lado, autorizou. Peguei o revólver e disse para o Péricles: "pega". Ele tomou a arma de minha mão na hora. Era um profissional. A equipe da TV Cultura, que filmou tudo, saiu correndo para exibir o filme. Jornalismo é isso. Em cima do lance. E às vezes não. Até porque as sociedades que mais se desenvolvem são aquelas que dão tempo para as pessoas ficarem no ócio, refletindo. Não existe verdade sem ócio. Outra coisa foi Sossego. Dezenas de matérias. Rogério Almeida - Você poderia explicar o que é Sossego? É a primeira mina de cobre a entrar em produção, que vai tornar o Brasil auto-suficiente. É a primeira das cinco minas da região de Carajás, no Sudeste do Pará. Em 1977, estava lá quando começou a pesquisa no Salobo 3 Alfa, em Carajás e comecei a estudar cobre. O principal são as boas fontes. Acompanhei a história da Caraíba, do Geisel, dos estudos do Estado-Maior das Forças Armadas para abastecer de cobre o Brasil. O cobre é o segundo item na balança de importações minerais. Concluí que ocorreria um paradoxo. Vamos ser auto-suficientes e vamos continuar importando cobre. Vamos exportar concentrado e importar cobre metálico. Porque há uma incompatibilidade entre a Caraíba Metais e a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). Com os calos de 20 anos tentando estudar a questão, você faz a pergunta certa. Escreve uma matéria que, talvez, ninguém vá escrever, ao menos naquele momento, em cima do fato. Em Marabá, em 1995, na Escola Mendonça Virgolino, houve um debate sobre o projeto de cobre do Salobo. Valor do projeto: 1,6 bilhão de dólares. Não se sabia onde ia ficar. Se em Marabá ou Parauapebas, ambas no Pará, ou Rosário do Oeste, no Maranhão. Aí o Haroldo Bezerra, então prefeito de Marabá, informa no meio do debate que o pessoal da Salobo Metais tinha visitado a cidade no dia anterior. Interroguei se ele havia perguntado se a quantidade de minério daria para produzir, durante 20 anos, 140 mil toneladas de concentrado ao ano. Bezerra retruca o por que da pergunta. Expliquei que se não fosse assim a mina não sairia. Não teria viabilidade econômica, fosse lá onde ficasse instalada. Nanani Albino - Você avalia que as pessoas que estão no planejamento das políticas públicas para a Amazônia estão fazendo as perguntas certas? Alguns são honestos e competentes e possuem a resposta. Outros, não. As pessoas que fizeram os contratos de minério de ferro, bauxita (matéria prima para a produção do alumínio), os contratos da Albrás (maior empresa de alumínio do Brasil, instalada no município de Barcarena, a 40 Km de Belém), sabiam que estavam cometendo um crime contra o Brasil. Rogério Almeida - Todos esses projetos se deram no regime militar? Todos. Todas as pessoas que assinaram contratos dos grandes projetos na Amazônia deveriam estar respondendo a processos. A base do meu diálogo são os fatos. Eliezer Batista (ex-executivo da CVRD - Companhia Vale do Rio Doce), um dos homens mais importantes da história contemporânea, que concebeu todo o Grande Carajás, disse que, caso não tivesse havido corrupção na construção de Tucuruí, nós não teríamos precisado subsidiar o alumínio. E a CVRD é uma empresa do alumínio. O subsídio custou dois bilhões de dólares. Fui apurar e escrevi matérias sobre o assunto no Jornal Pessoal. Em contato com o ex-deputado federal do PT, Geraldo Pastana, sugeri que ele convocasse o Eliezer. Não foi aprovado o pedido. Então, pedimos informações no TCU - Tribunal de Contas da União, depois de dois anos tivemos a reposta deles, de que se tratava de águas passadas. Rogério Almeida- Dois bilhões em subsídio? De subsídio no alumínio e de corrupção na construção de Tucuruí. Rogério Almeida - A empresa no caso era a Camargo Corrêa? A Camargo Corrêa teve um lucro líquido de 500 milhões de dólares na construção da hidrelétrica de Tucuruí. Sempre que posso, toco no assunto. As pessoas não se indignam. Fico estupefato com a questão. No regime militar, descobri que balanço de empresa é uma fonte preciosa de informação. Principalmente pelo que não está dito. O Banco do Estado Pará (Banpará) foi eleito o banco do ano em 1983, quando eu havia escrito que o banco era uma porcaria e que todas as suas operações estavam erradas. E a revista Exame, uma publicação aparentemente de conceito, afirmava se tratar do banco com o melhor desempenho no Brasil. Passei a estudar balanço, consultar gente que sabia. Fui estudar o balanço da Albrás de 1987 e conclui que só a variação cambial entre a moeda japonesa e o dólar relativos à moeda nacional, que proporcionou a maior aplicação de capital de risco estrangeiro na história do Brasil representava três vezes o orçamento do Estado do Pará. Perdemos três vezes o orçamento do Estado. Consultei o cidadão que fazia o orçamento no Rio de Janeiro e ele confirmou a conta. Escrevi matéria em O Liberal. Imaginava um escândalo nacional e nada houve. Nanani Albino - Por que a opinião pública parece não se aliar a você? Há um descompasso entre a agenda da opinião pública e a agenda da história. Estamos numa situação colonial. Caso a gente soubesse o que está acontecendo de verdade, não seríamos coloniais. Rogério Almeida - Existe saída para essa condição colonial? Tem. Ciência e tecnologia, o modelo de colonização que defendo é a ocupação através da ciência e tecnologia. Deveríamos ter aqui não colono de soja e não colono de arroz. Nanani Albino - O que é isso? Em vez de colonos, cientistas. Ele não vai só produzir ciência, se ele estuda arroz, vai plantar arroz. Vai ensinar como é que faz, fazendo. Vamos pegar o cara e colocar no campo, e não no campus, com bolsa de pesquisa, uma estrutura mínima. Se a gente não colocar a formação antes da transformação está liquidada a Amazônia. Sei que serão necessários muitos milhões no começo. Quando comecei a visitar o Araguaia, a densidade de mogno era o dobro do que existe no Xingu, eram 10 árvores por hectare. Não tem mais nada lá. Diziam que a gente ia aprender com a experiência do Araguaia. Estamos fazendo pior no Xingu. Aí só vai restar o Acre. Uma árvore por hectare. Araguaia era a maior reserva de mogno do mundo. Nanani Albino - Você fala em mudança substancial em investimento em pesquisa? Devemos conceber investimento em pesquisa não como retaguarda, mas como vanguarda. Vamos pegar a meninada da USP, UFRJ e outras com uma boa bolsa e vamos para o campo aprender. Os orientadores também devem ir ao campo, com condições de trabalho bons salários. Nanani Albino - E as universidades federais locais? Todo mundo iria para o campo. É como se estivesse em Israel. A nossa guerra é a guerra da ciência. Guerra da ciência não é ficar fazendo o seu trabalhozinho acadêmico. É fazer a difusão da ciência no campo. Nanani Albino - Agora é a hora? Tem que começar já senão nunca vai começar. Nanani Albino - E os colonos não científicos? Ele vai aprender e ensinar. Você coloca o doutor em genética na Transamazônica para fazer melhoramento no campo com uso do conhecimento tradicional e empírico. Considero que o pessoal tem que ir a campo. O doutor tem que deixar de lado essa postura arrogante. Nanani Albino - Como você avalia a ciência produzida na Amazônia? Quando comecei a fazer palestras, vinham perguntar sobre a minha formação e eu dizia malandramente que era jornalista. Era um constrangimento. Jornalista não tem valor científico. Aí eu dizia: sou sociólogo - e tinha o carimbo da academia. Depois dizia: "vamos para o debate!" O critério da verdade é o debate. Se vocês são os cientistas, os doutores, vocês vão me vencer no debate. Caso eu vença, não adianta ser doutor. Nanani Albino - No Brasil, existe a tradição do debate? Aqui o debate costuma ser improdutivo, assistemático e acientífico. O que grita mais alto, as pessoas aplaudem, vence o debate. Todos sabem do rigor que tenho com os dados. Caso esteja errado, corrijo. Num determinado debate, soube da proibição por decreto pelo presidente José Sarney do uso do alumínio nos garimpos. Disse que seria pior. Que os garimpos iriam usar cianeto. A pessoa que conversava iria palestrar pela tarde. Cheguei na hora em que ela falava de uma importante denúncia que a Amazônia iria ser inundada por "cianureto". Mandei um bilhete informando que não era cianureto e sim cianeto. Guilherme Carvalho - Qual a perspectiva da Amazônia diante de mais um Plano Plurianual aprovado? Quando Lula foi eleito, elogiou a tecnocracia do regime militar. Escrevi um artigo dizendo que ele tinha certa razão. Acho que nunca se fez tanto plano quanto na época do regime militar. Alguns tão bem feitos que não poderiam nem ser executados. Uma vez, em Brasília, fui ao Instituto de Pesquisa de Econômica Aplicada (IPEA), cujo chefe era o ministro João Paulo dos Reis Veloso, do Planejamento, que sempre se preocupava com a história, por isso apadrinhou intelectuais marxistas. Não queria passar como o tecnocrata dos ditadores. Em 1972, andando pelo IPEA, entrei inadvertidamente numa sala onde estava sendo dada uma aula sobre Marx. Aquilo era uma heresia privatizada. Nessa época, o IPEA publicou um livro crítico sobre a colonização dirigida na Amazônia. Critica o INCRA, os incentivos fiscais que motivaram a formação dos latifúndios com metodologia marxista. Caso for analisar a história pela fonte secundária, você vai dizer que esse era um déspota esclarecido. Agora a bíblia sobre a Amazônia é um o II Plano de Desenvolvimento da Amazônia - PDA (1975/1979). Esse documento diz o que da Amazônia? Diz que o papel da Amazônia é fornecer insumos para o Brasil moderno e matérias-primas para o mundo. Com isso, ela vai aumentar o ritmo do desenvolvimento brasileiro, pois o Brasil não tem poupança suficiente para isso, e também manter a roda do processo produtivo do mundo. É isso que interessa. Tudo dito claramente sem filigranas ou cosméticos. É um futuro colonial. Como mudar isso? Tornar o povo participante. Rogério Almeida - Qual é orçamento para a ciência na Amazônia? Zero, dois ou meio por cento do orçamento em ciência e tecnologia. Rogério Almeida - Estamos condenados ao colonialismo? Se tirassem as verbas estrangeiras seriam zero vírgula qualquer coisa. Nanani Albino - Qual é o investimento em pesquisa vindo do exterior? Dois terços dos investimentos da pesquisa são em moeda estrangeira. A Amazônia não é prioridade nem para o Brasil. Nanani Albino - E o resultado? É o modelo colonial. O projeto MADAM( Programa Manejo e Dinâmica nas Áreas de Manguezais), por exemplo , é interesse alemão. Há documentos que são produzidos em alemão, e que nunca foram traduzidos. O que o mundo desenvolvido quer da Amazônia? Preservar uma parte da Amazônia e estudá-la antes que acabe. Ninguém no mundo sério tem dúvida de que a gente vai acabar com a Amazônia. Somos destruidores como eles também foram e são. A história da humanidade é a história da destruição da floresta. Na Amazônia, é a primeira vez que a gente tem a possibilidade de uma civilização florestal. É o único lugar que tem floresta expressiva hoje. Temos a consciência e os meios, se a gente não usar a consciência e os meios, vamos seguir a tradição do homo agrícola. Vamos destruir a floresta. A Amazônia só tem futuro no mundo. Onde Marx escreveu OCapital? No Museu Britânico. O Marx nunca entrou numa fábrica. Em quais dados primários se baseia O Capital? Nos relatórios dos fiscais de fábrica da Inglaterra. Rogério Almeida- Então não era um bom jornalista Era ótimo jornalista. Rogério Almeida - Mesmo distante do campo? Mesmo não indo para o campo. Quando ele ia para o campo, ele era o editor da Nova Gazeta Renana. Ele escreveu sobre o monopólio da lenha e a liberdade de imprensa. A luta dele contra o censor. O censor esperando ele na redação e ele dormindo. Até o momento que ele se tornou profeta tinha muito bom humor. Rogério Almeida - A gente estava falando em ciência, e o SIVAM - Serviço de Vigilância da Amazônia? São 20 anos de verba de ciência e tecnologia na Amazônia que estão sendo distorcido pela visão geopolítica. Hoje nós temos o SIVAM pronto. Isso significa maior segurança para a Amazônia? O prisma da geopolítica é o que mais distorce a visão da Amazônia. Desde Arthur Cezar Ferreira Reis, que é a matriz desse pensamento. A nossa relação com o mundo tem que ser diferente. Quanto mais a gente se desenvolve, mais a gente fica subdesenvolvido. Continua aquela visão de Euclides da Cunha do seringueiro. Aquele que quanto mais trabalha, mais se escraviza. Aquele que compra produtos caros no barracão, e vende produtos baratos. Uma relação de troca desfavorável. Rogério Almeida - Essa questão da regulação fundiária, gostaria que a gente retomasse. É uma questão séria na Amazônia. Está em vigor o Estatuto da Terra. Foi baixado pelos militares em novembro de 1964, o Estatuto é melhor que a Constituição. O Estatuto diz o seguinte: ninguém pode ser dono de mais de 600 vezes o modulo rural. Rogério Almeida - O módulo rural hoje é de 25 hectares? Há vários tipos de módulos. Há de um hectare, para a horticultura, ao maior, que é o silvicultural, que é de 120 hectares. Pela letra da lei, ninguém pode ser dono de mais de 72 mil hectares. Vamos pegar os Estados Unidos, onde há cadastros fundiários desde o século XVIII. São amarrações por posições astronômicas. Como a gente não tinha isso, a nossa amarração foi através de acidentes naturais. Só que a gente não conhecia o interior. No início da República expedimos 40 mil títulos de posse. Isso só existe no Pará e na Bahia. Era uma carta do poder público autorizando a ocupação do interior por quem estivesse disposto a ocupar. O limite máximo era uma légua quadrada, que corresponde a 4.356 hectares. Com base nisso, ninguém poderia aparecer com título de posse com 5 milhões de hectares. Desses 40 mil títulos, apenas 3 mil buscaram a regularização depois. O resto deu origem a essas grilagens. É fraude. Caso o senhor Cecílio Rego Almeida aparecesse com um título desses nos Estados Unidos, poderia ser preso. Rogério Almeida - Vamos falar um pouco sobre a CVRD -Companhia Vale do Rio do Doce. A Vale é maior que o Pará? É maior. A CVRD tem uma verba de investimento maior que a do Estado. O faturamento da CVRD é maior que a receita do Estado. Caso o modelo de enclave prospere, a CVRD vai ser três vezes maior que o Pará. É um modelo baseado em matéria-prima, quantidade crescente de minério de ferro. Vinte milhões de toneladas era o ponto de viabilidade da mina de Carajás. Hoje está em 55 milhões de toneladas. Por quê? O primeiro trem saiu de Carajás com a tonelada de minério a 26 dólares, hoje são 15 dólares. Ocorre que tem de produzir cada vez mais. O Pará é o 2º Estado em território, 9º em população, 16º em Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), 19º em Índice de Desenvolvimento Juvenil (IDJ). É o modelo da África do Sul. Nós somos a África do Sul da Amazônia. Rogério Almeida - A privatização foi um crime de lesa pátria? A melhor análise que saiu foi da Euromoney, uma revista de negócios da Europa, foram 16 páginas. Eles mostraram o absurdo que foi o preço de avaliação de arremate da CVRD. O absurdo é tanto que hoje os japoneses estão na CVRD. Uma das regras da privatização era que comprador não poderia ser acionista da CVRD. O modelador da privatização, que é o Bradesco, é o principal controlador fora dos fundos federais. Que privatização é essa? Foi um dos maiores escândalos do Brasil. As ações propostas na Justiça não foram decididas até hoje. Nanani Albino - Há 12 anos você vem sendo processado. Qual a postura das entidades de classe, federação, sindicato de jornalistas em relação a isso? Bem, fui do sindicato do tempo em que o Lula tentava implantar as delegacias sindicais no ABC, no fim da década de 70. Fomos o primeiro sindicato a ter salário profissional e delegacia sindical. Depois perdemos no Tribunal Superior do Trabalho. Mas fizemos isso primeiro. No primeiro processo, o presidente do sindicato escreveu uma nota de solidariedade tão sórdida, que pedi o meu desligamento do sindicato. A solidariedade era pior do que se tivesse feito um ataque a mim. Ele dizia que a Rosangela Maiorana tinha razão, mas que tinha de ser solidário comigo pelo espírito de corpo. Nesse recente episódio (do desembargador João Paiva) a nota de solidariedade foi comandada pelas ONGs: Instituto Sócio Ambiental (ISA), Amigos da Terra, Greenpeace. FENAJ e sindicato aderiram. A iniciativa não foi deles. O episódio mais triste que ocorreu nesses quase 40 anos de profissão foi quando denunciei a infiltração do narcotráfico na Amazônia, em 1991, ano em que ocorreu o assassinato de uma figura da sociedade, que era lavador do dinheiro do narcotráfico internacional. Durante meses, o Jornal Pessoal foi o único que publicou os fatos. Era a história de Bruno Matos. Quatro meses depois, saiu uma única matéria nos três jornais da cidade, dizendo que ele tinha se suicidado. Ele morreu na BR 316, a 90 quilômetros por hora, recebeu um tiro na distância mínima de três metros, de cima para baixo, da esquerda e ele era destro. Foi um único tiro, preciso. Esse é o suicídio mais inverossímil da história da humanidade. Um tiro a três metros de distância, dirigindo o carro a 90Km/h. Após o Jornal Pessoal encadear os fatos, a PF apreendeu uma tonelada de cocaína no Marajó e no rio??? Amazonas. Toda a imprensa foi para a sede da PF para a coletiva. Fui e não fiz qualquer pergunta. Os colegas interrogaram sobre o meu silêncio. Falei que tinha ido para conversar em off com o delegado José Salles, hoje superintendente aqui no Pará. O colega declarou, então, que iria ficar. Que agora é que ia começar o bom. Retruquei que não existe off coletivo. Que se tratava de uma conversa particular, estabelecida através da confiança mútua. Concordei em que todos participassem, com o compromisso de que todos publicassem o que ia ser dito ali. Todos foram embora. O Salles, delegado, interrogou: são esses seus colegas? Nanani Albino - Você tem 38 anos de jornalismo. O Jornal Pessoal muitas vezes não cobre nem sequer os custos. Você hoje consegue viver da profissão? Dou palestras, escrevo artigos para fora, escrevo livros. Do Jornal Pessoal, não. O Jornal Pessoal é a pedra no sapato. Guilherme Carvalho - A mosca na sopa? O Roger Agnelli, presidente da CVRD, um dos homens mais poderosos do Brasil, num vôo leu um clipping do Jornal Pessoal. A CVRD mantém o Jornal Pessoal no seu clipping. Ele ficou furioso. Contatou o chefe de comunicação, que estava indo para o Maranhão, para antes parar no Pará. Queria que me dissesse que ele não era banqueiro, que faz filantropia e que destina todo o dinheiro das suas participações em conselhos a obras de caridade. Estava furioso com o Jornal Pessoal. Agora, nesse episódio (da condenação), recebi uma carta do Jarbas Passarinho em solidariedade. Ele fez o que nenhum colega meu fez. "Use essa carta, se quiser", disse ele. Fomos adversários. Nunca me processou. Mesmo quando ele era o homem mais poderoso do Pará. Nanani Albino - Que preço você paga? No Jornal Pessoal, quem quiser entrar, tem que me convencer. Não interessa se é poderoso. O Hélio Gueiros (ex-governador do Pará e ex-prefeito de Belém, candidato nesse pleito de 2004 à prefeitura de Belém), mandou uma carta para mim que começava assim: "Lúcio Flávio, porque tu não vais chupar o cu da puta que te pariu?" Publiquei a carta. Ele não imaginava que publicaria e nunca mais quis falar sobre isso. Rogério Almeida - São quantos livros? Dez livros e participação em muitas obras coletivas. Rogério Almeida - A produção dos livros obedece à mesma lógica do Jornal Pessoal, bancados por ti mesmo? Agora, sim. Antes, não. O melhor que fiz foi bancado por uma bolsa de pesquisa americana, da Universidade da Flórida, que me permitiu falar mal de um dos símbolos americanos, o Daniel Ludwig, do projeto Jari. Recebi uma boa bolsa de seis meses. Passei seis meses pesquisando e estudando nos Estados Unidos, escrevendo um livro contra um símbolo do capitalismo americano. Esse foi o livro que mais me agradou. Quanto aos outros, não tive essa retaguarda. Foi um dos melhores períodos da minha vida. Guilherme Carvalho - Você é um homem cético ou esperançoso? Se fosse cético, já teria entregado as armas. Tenho esperança. Agora, a minha consciência diz que estou numa luta perdida. Vou continuar a luta até o último dia. Nanani Albino - Você acha que vai pagar atrás das grades por expor fatos que mais ninguém publica? Cipriano Barata foi muito mais jornalista do que eu. Toda vez que ia para as grades, escrevia um jornal. Escrevia na guarita da fortaleza maranhense. É um exemplo. O meu algoz, a Rosângela Maiorana, que já foi minha amiga, disse que iria me mandar para a prisão. Retruquei que o risco era que eu iria ter tempo para escrever um Jornal Pessoal por dia. Iria imitar o Cipriano Barata. Como diz o Gramsci, pessimismo na inteligência, otimismo na vontade. Tenho clareza que a máquina está me triturando. Vou capitular? Não sei? Nanani Albino - Você falou que a salvação da Amazônia está no mundo. Você acha que a salvação para Lúcio Flávio Pinto está fora da Amazônia? Na Itália, tem um grande jornalista chama Maurizio Chiericci. É um dos principais enviados especiais da imprensa italiana. Cobre todos os conflitos internacionais. Ele escreveu um artigo no L'Unità, na primeira página, sobre o meu caso, edição do dia 19 de julho. Ele pediu para não calar a voz da Amazônia. Além do artigo, mandou uma carta para o embaixador brasileiro, o Itamar Franco. Não interessa o que vai acontecer. Interessa que eu não pedi. Foi ele quem me indicou para o maior prêmio de jornalismo da Itália, em 1997. Fui o primeiro não europeu que recebeu esse prêmio. No ano que recebi, o deputado federal da Irlanda do Norte, John Humme, também ganhou. No ano seguinte, ele foi Prêmio Nobel da Paz. Recebeu o prêmio também um jornalista, poeta e escritor albanês, Fatos Lubonja, que passou 19 anos preso, no regime de Enver Hoxxa. O governo brasileiro mandou um funcionário da embaixada numa ocasião em que estavam lado a lado, pela primeira vez na Europa, os embaixadores da Inglaterra e da Irlanda. Ao registrarem o fato, o auditório os aplaudiu. Depois vim a saber que o Itamaraty, consultado pelo embaixador, havia dito que eu não era "confiável". Por isso o embaixador não foi. Fiquei contente em saber que eu não era confiável para o poder. Mas triste como brasileiro. Rogério Almeida - Como você avalia a presença dos Estados Unidos na Amazônia? Os Estados Unidos não conseguem entender a América do Sul. São incapazes. Clinton esteve para lançar o Plano Colômbia em Nova Granada. Ele não conseguia perceber que estava diante da sede de um poder imperial que foi maior do que os Estados Unidos, que foi o da Espanha. No século XVI, metade das universidades da Europa estava na península ibérica. Nós levamos quatro séculos para fazer a nossa universidade. A rigor, a nossa universidade foi criada em 1950, a Universidade do Brasil. Ele esqueceu que existe uma história hispânica anterior aos Estados Unidos. Fomos maiores que os Estados Unidos até D. Pedro II. Ele era uma pessoa brilhante, mas infelizmente travou a nossa história por 50 anos. Quando a biblioteca de Washington sofreu um incêndio, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro era muito mais rica e importante. Perdemos o rumo da história nesse período. Entre 1822 e 1850, não tinha Lei de Terras no Brasil, a lei, não escrita, era a da ocupação, o princípio da posse, que fez a grandeza dos Estados Unidos. Quando criaram a Lei 601, de 1850, a ocupação física foi substituída pelo papel. E só pode ter papel, quem tem dinheiro. Liquidaram com um projeto do Brasil, que estava na cabeça do patriarca José Bonifácio. Ninguém fala desse período. A diplomacia americana se baseia na falta de conhecimento. Qualquer que seja o conteúdo do Plano Colômbia, ele é trágico. Um equívoco para o continente e para os Estados Unidos. Hoje o cidadão médio americano bem informado não tem dúvida de que Bush deve ser colocado para fora. Podem vir a fazer um novo Vietnã na América do Sul se insistirem em mais presença física americana. Temos que contrapor a ela uma integração econômica continental. Tem que acabar com esse negócio de ALCA, Mercosul, por algo mais amplo na América do Sul. Onde a gente possa se unir para nos tornarmos mais fortes? Se você inverter a direção da água no canal do Cassiquiare, vai abrir o caminho pelo centro da América do Sul, vai entrar pelo Caribe e vai sair na Bacia do Prata. Você vai acabar com o esquema de comércio no mundo inteiro. Com uma inversão de águas, você já começa a revolução. Aí tem lógica fazer hidrelétrica no Madeira. Enquanto isso não vem, não tem lógica. Nós estamos trazendo 70 megawatts por dia do sistema Guri da Venezuela para Boa Vista usar 32 megawatts. Estamos jogando fora o restante. Guri é atualmente a maior hidrelétrica do mundo. A estrutura do domínio do Estado é poderosa no sistema de gestão do desenvolvimento venezuelano. A Venezuela pode quebrar essa estrutura burocrática, que gera, de um lado, americanofilismo, e de outro lado esse fidelismo do Chávez. Temos que resolver as coisas passo a passo. Temos que mudar a matriz de energia e o modal de transporte do continente. Não é fazendo retórica contra plano Colômbia, fazendo SIVAM. Isso é perfumaria. Rogério Almeida-- Esse modelo de integração econômica para o continente que você fala é via ALCA? Não. Acaba com isso de ALCA, Mercosul, ALADE. Vamos trabalhar as nossas potencialidades. Rogério Almeida - Quando você fala a gente, fala América Latina? América Latina. Só vamos pensar lá fora depois que a gente fizer uma hidrovia do Caribe à Bacia do Prata. Não podemos integrar para sermos esmagados. Carajás não tem carvão, vamos trazer o carvão da Colômbia. Guilherme Carvalho - Lúcio, construir uma hidrovia desse jeito não significa destruir boa parte do pantanal? Não vai passar no Pantanal. Passa ao largo. Sempre defendemos que o caminho natural é o rio. Sempre brigamos contra as rodovias. Por que agora achamos que todas as hidrovias vão destruir? Podemos fazer hidrovias perfeitamente válidas. Não podemos é fazer como foram feitas as rodovias e as ferrovias. A hidrovia é para desenvolver o interior, o núcleo das regiões conforme as suas aptidões. Devemos optar por ciência e projetos que agregam valor. Guilherme Carvalho - Isso é um problema. As hidrovias não são pensadas nesse modelo. São pensadas para soja. A própria lei dá os antídotos para esse problema. Só vamos aprovar hidrovias se tiver comitê de bacia. Dos 103 comitês de bacia, nenhum é da Amazônia. Não podemos aprovar um projeto de hidrovia sem um plano de desenvolvimento, transformado em lei e aprovado pela Assembléia Legislativa e referendado pelo Congresso Nacional. Terminou a fase da esquerda dizer, sou contra, diagnostico certo, mas não sei fazer. Tem que saber fazer. Rogério Almeida - Você ainda está dando aula? Faz sete anos que não dou aula. Estou aprendendo de novo. Sobre os entrevistadores: Todos cursam o mestrado em planejamento no Núcleo de Altos Amazônicos (NAEA), na Universidade Federal do Pará (UFPA). Rogério é jornalista e colabora no setor de comunicação do MST no Pará. Nanani é jornalista. Guilherme é historiador e técnico da FASE Pará.