[CamaraDas] RES: Homem de bem

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  • Date: Tue, 18 Oct 2005 13:34:35 -0200

Mais um texto da série "Como jogar para a torcida sem argumentos sérios".
De fato, irretorquível. Tantos clichês que não se sabe por onde começar a 
refutar. Mais saudável deixar passar batido...

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De: analistas2002@xxxxxxxxxxxxx [mailto:analistas2002@xxxxxxxxxxxxx] 
Enviada em: terça-feira, 18 de outubro de 2005 09:42
Para: analistas2002@xxxxxxxxxxxxx
Assunto: [CamaraDas] Homem de bem


IDÉIAS 

MARCO AURÉLIO WEISSHEIMER 

17/10/2005



Cuidado, aqui mora um homem de bem! 

O debate sobre o referendo trouxe à tona, com força, a figura do homem de bem. 
Como saber se você é um homem de bem? O jornal Zero Hora oferece ensinamentos 
preciosos sobre como deve se portar um homem de bem diante do referendo sobre o 
comércio de armas e na vida em geral.



Um dos méritos do referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo e 
munição é o striptease ideológico que vem propiciando, um processo que ajuda a 
ver com maior nitidez um perfil médio de pensamento que, aparentemente, vem 
ganhando força e espaço na sociedade brasileira. Esse perfil revela, ao menos 
no plano discursivo, o surgimento de uma nova categoria social: o homem de bem. 
Adotado à exaustão pelos defensores da continuidade do comércio de armas de 
fogo e munição, esse discurso consegue concentrar em uma só expressão todos os 
preconceitos enraizados em nossa cultura: preconceitos de gênero, de classe, 
étnicos e culturais. 

Pode parecer uma bobagem, mas é interessante notar a aparente inexistência de 
"mulheres de bem" na sociedade. São os "homens de bem" que têm seus direitos 
ameaçados pela proposta de proibição desse comércio. Esses "deslizes 
lingüísticos" talvez revelem mais do que aparentam. Mas os preconceitos revelam 
apenas a ponta do iceberg. Um iceberg que indica claramente a existência de um 
caldo de cultura radicalmente conservador, que faz do direito à propriedade a 
mãe de todos os direitos, e que não vem sendo adequadamente tratado pelos 
defensores do "sim". 

É interessante notar que o discurso dos defensores do "não" vem conquistando 
adeptos mesmo entre uma parcela da sociedade que se considera de esquerda. 
Parte dela assimila sem maiores dificuldades o argumento dos "homens de bem" 
que, diante da ineficácia do Estado em garantir a segurança pública, teriam o 
direito de se defender por conta própria. Uma outra parte adota argumentos mais 
curiosos, como o do "direito de auto-defesa dos trabalhadores" e da "origem 
elitista do referendo". Além disso, há também um certo caráter plebiscitário em 
torno do governo Lula que atravessa, com diferentes inflexões, todas essas 
posições. Mas a força principal da campanha do "não" parece estar mesmo em 
torno da figura do "homem de bem". 

Para entender o que é exatamente essa figura, algumas perguntas são 
pertinentes: Quantos "homens de bem" existem entre a população brasileira? E 
quantos "homens do mal"? Quantos "homens de bem" têm armas em suas casas ou 
pensam em comprar uma? O que define, afinal de contas, um "homem de bem"? Como 
ele deve se portar? 

"Um não responsável"
A edição desta segunda-feira (17 de outubro) do jornal Zero Hora, de Porto 
Alegre, ajuda a entender melhor o que pensam os "homens de bem". A publicação 
do Grupo RBS decidiu, finalmente, sair do armário e assumiu, em editorial, a 
defesa do "não" no referendo. Um "não responsável", como diz o título do 
editorial, o que sugere a existência de um "não irresponsável". Na mesma 
edição, o jornal publica uma pesquisa do Centro de Estudos e Pesquisas em 
Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Cepa/UFRGS) 
indicando que dois terços dos gaúchos apóiam o comércio de armas. 

O editorial de ZH comemora o resultado e ajuda a entender também algumas 
questões de fundo que não vêm sendo explicitadas no debate do referendo. Uma 
delas diz respeito ao próprio recurso ao instrumento do referendo. "Tudo é 
equivocado nesta consulta popular que lança sobre o cidadão a responsabilidade 
de decidir sobre um tema extremamente complexo, como se o gravíssimo problema 
da segurança pública no país pudesse ser resolvido apenas com uma lei 
respaldada pelo resultado de um referendo popular". 

Pobre cidadão brasileiro, chamado a opinar sobre "temas extremamente 
complexos". O que isso quer dizer? Em primeiro lugar, com a licença do 
Conselheiro Acácio, quer dizer exatamente o que diz: os cidadãos não devem ser 
chamados a opinar sobre temas complexos, só sobre temas simples. Que outros 
temas podem ser considerados "extremamente complexos", pela lógica desse 
argumento? Vejamos alguns possíveis: Qual deve ser a política de educação do 
Estado brasileiro? E a política de saúde? E a de comunicação? Quais devem ser 
as prioridades de investimento do Estado? Sobre o que os cidadãos devem opinar? 

Segundo o editorial de ZH, os cidadãos devem ser poupados destes temas 
"extremamente complexos", deixando-os a cargo dos especialistas que realmente 
entendem do assunto. Sobre o que os cidadãos poderiam opinar, então? Quais 
seriam os temas simples, sobre os quais suas mentes simples poderiam dar conta? 
O editorial não avança sobre isso, mas, em um caderno de educação, publicado na 
mesma edição, trata de um tema que diz respeito ao cotidiano de todos os 
cidadãos e homens de bem: como educar seu filho? Mais uma vez, repete-se o 
"deslize lingüístico" de gênero. O título do caderno é "Meu filho". Um detalhe 
menor, certamente. Um descuido. Coerente com a linha do editorial, o caderno 
ensina a população como tratar de um "tema extremamente complexo", como a 
educação das crianças. 

Como educar seu filho: mercado financeiro, facas e garfos
E dá dicas preciosas. "Ensine seu filho a lidar com dinheiro desde cedo. É na 
infância que ele deve fazer suas primeiras experiências na área financeira. A 
partir dos 10 anos, apresente seu filho ao gerente de um banco, abra uma conta 
e explique o funcionamento da agência", ensina Cássia D'Aquino Filocre, 
consultora em Educação Financeira. Mas, nem tudo é dinheiro na vida e ZH ensina 
também como as crianças devem se portar à mesa. O ensinamento começa com uma 
advertência que deve ser dirigida às crianças: cuidado, você está sendo 
observado! E a consultora de etiqueta Célia Ribeiro avisa: garfo na esquerda, 
faca na direita! "Se a criança ainda não consegue manusear os dois talheres 
juntos, deve deixar a faca em diagonal depois de cortar a carne, à direita do 
prato, passando o garfo para a mão direita. Uma etiqueta mais rígida não 
permite isso, mas os americanos, práticos, adotaram o sistema". 

Ufa! Se esses temas já são complexos, imagine só o absurdo de exigir dos 
cidadãos que opinem sobre temas relacionados à segurança pública. Sempre haverá 
um consultor para ensiná-los didaticamente a como agir em relação a esses 
temas. 

E o editorial de ZH se propõe a executar essa tarefa. "Diante de tamanha 
deformação (exigir que os cidadãos opinem sobre temas complexos), a melhor 
alternativa para os brasileiros já parecer ter sido identificada pela maioria 
dos rio-grandenses: rejeitar o autoritarismo que retira dos cidadãos o direito 
básico de providenciar a própria defesa, quando se sabe que o poder público tem 
sido incompetente para fazê-lo". Ou seja, diante da falência do Estado (de sua 
ineficácia crônica como não se cansam de repetir os editoriais do mesmo 
jornal), cada cidadão que providencie sua própria defesa. 

"A vida real não deixa dúvidas: os delinqüentes não vão entregar suas armas, 
nem o Estado tem mostrado capacidade para desarmá-los", acrescenta o texto. 
"Defendemos que os cidadãos tenham liberdade para exercer todos os direitos 
assegurados pela Constituição, entre os quais o de decidir a melhor forma de se 
defender da violência que os ameaça cotidianamente. Por isso, o voto no "não" 
nos parece ser o que melhor atende aos interesses dos cidadãos", emenda. 

Em defesa do risoto de rúcula e do Möet Chandon
Afinal de contas, como um pai (para manter a lógica do deslize lingüístico) vai 
levar seu filho de 10 anos, com segurança, ao banco para ensinar-lhe as 
primeiras experiências na área financeira? No lado de fora da agência, há uma 
legião de "homens do mal", prontos para tentar cercear esse direito. Como um 
"homem de bem" vai ensinar ao seu filho que ele "deve deixar a faca em diagonal 
depois de cortar a carne, à direita do prato, passando o garfo para a mão 
direita", se a sua casa pode ser invadida a qualquer momento por um "homem do 
mal" e ele não tem o direito de estourar os miolos deste sujeito na frente do 
seu filho? 

Como um "homem de bem" vai garantir uma noite de princesa para sua filha, na 
sua festa de 15 anos, com uma recepção para 600 convidados, como revela a 
coluna social "RSVip", de ZH, se ele não pode cuidar por si próprio da 
segurança do evento? Como proteger um jantar à base de 'risoto de rúcula e 
mostarda dijon, camarões orientais e espaguete pupunha", tudo regado a Möet 
Chandon, da invasão de algum "homem do mal"? 

Então, como diz o colunista Paulo Sant'Ana, na mesma edição de ZH, só 
escritores, intelectuais, sociólogos e jornalistas são favoráveis ao 
desarmamento. "A elite gaúcha é a favor do desarmamento, o povo está contra", 
afirma. O povo quer garantir seu direito a comer risoto de rúcula com camarões 
orientais, com um 38 ao lado do prato para qualquer emergência. O povo quer ter 
o direito de iniciar seus filhos no mundo do mercado financeiro com um cartão 
de crédito na mão e uma pistola na outra. Só mesmo intelectuais elitistas podem 
defender o desarmamento, diz Paulo Sant'Ana. 

O direito de ter uma arma e um carro estrangeiro
Intelectuais como Luís Fernando Veríssimo que, na mesma edição de ZH, abre seu 
voto pelo "sim", dizendo, entre outras coisas, que "dizer que o desarmamento da 
população a deixaria vulnerável ao crime equivale a dizer que, até agora, a 
população armada fez um bom trabalho de se defender, o que não é o que mostram 
as estatísticas". Jornalistas como Rosane de Oliveira, também de ZH, que 
acredita que "reduzindo o número de armas em circulação pouparemos vidas 
tiradas em brigas de trânsito, crimes passionais ou acidentes com crianças e 
adolescentes". 

Conversa de elitistas, diz Sant'Ana, que conclui: "Devemos votar não para 
incrivelmente manter o direito que temos de um dia, quem sabe, é um sonho, 
podermos ter uma arma ou um carro estrangeiro em casa". 

Aí está o sonho dos "homens de bem" que os intelectuais elitistas desprezam: 
uma arma em casa, um carro estrangeiro na garagem (sem pagar muito imposto, de 
preferência), camarões orientais e Möet Chandon na geladeira, o filho bem 
informado sobre o funcionamento do mercado financeiro e sobre o correto uso de 
garfos e facas. O Estado é uma ameaça a esses direitos sagrados. Cabe aos 
homens de bem resistir a ele, à bala se for preciso. Assim, chegará finalmente 
um dia em que poderemos ver, na frente da casa de todo cidadão, uma placa 
advertindo a legião dos "homens de mal" que anda ameaçadoramente pelas ruas: 
"cuidado, aqui mora um homem de bem"! 




Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio 
eletrônico: gamarra@xxxxxxxxxxx) 

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