[CamaraDas] Vale a pena ler

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Wed, 30 Mar 2011 10:07:05 -0300

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ANTONIO PRATA

A vitrola e o iPad

Num arroubo napoleônico, disse a mim mesmo: "Do alto desta estante,
dois séculos me contemplam!"


QUANDO A VITROLA e o iPad chegaram à minha casa, na mesma noite,
semana passada, me senti como um anfitrião recebendo convidados muito
díspares para jantar: temi que se desentendessem.
Coloquei-os lado a lado, sobre um móvel da sala: a tia velha, saindo
do fundo de um armário, após vinte anos de hibernação, na casa do meu
sogro; o "enfant terrible", recém-chegado de um shopping, nascido,
quem sabe, há menos de um mês.
Constatando suas diferenças, num arroubo napoleônico, disse a mim
mesmo: "Do alto desta estante, dois séculos me contemplam!"
A vitrola é a epítome do século 20, era da mecânica: engrenagens,
correias, a agulha de metal, feita para percorrer as ranhuras do
vinil.
Cada música, uma faixa: concreta, visível, tangível, até. Cada disco,
dois lados, A e B, como o mundo de então, dividido entre americanos e
russos, mocinhos e bandidos, o pop e o underground, Arena e MDB, Globo
e SBT. Um tempo em que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra
coisa. Ponto.
Na lateral do toca discos, o acabamento imitando madeira: mais do que
mero adorno, um tributo que a modernidade precisava pagar à tradição,
naquela época em que o novo ainda tinha que buscar legitimação no
passado. (Lembro-me dos assentos vermelhos da Viação Cometa, onde
lia-se: "Esta poltrona é revestida do mais nobre dos materiais: couro
legítimo". Penso nas sandálias Havaianas, cujas tiras e sola imitam,
respectivamente, o trançado do tecido e a superfície de palha dos
chinelos japoneses em que se inspiraram).
Já o iPad, como os outros "is" da Apple, não busca legitimar-se na
tradição. O iPhone não imita o telefone, o iPod não finge ser um
walkman, nem o tablet é um computador em miniatura.
(Não é sugestivo que a empresa de Steve Jobs chame-se Apple e que, no
logotipo, a maçã apareça mordida, evocando o primeiro ato do Homem
contra Deus, e, portanto, contra a tradição?) Trajando sua capa de
borracha preta, o iPad tem ares de cowboy futurista. Seus únicos
pertences são o laço, perdão, o cabo de energia, com o qual captura a
eletricidade de que se alimenta, e o lenço sintético, usado para
remover de sua tela cristalina as eventuais máculas mundanas. Não
precisa de discos nem disquetes, sequer tem entrada USB: recolhe do ar
as músicas, filmes, livros e jogos que, invisíveis, pairam sobre
nossas cabeças.
No dia em que os dois aparelhos chegaram, achei que o tablet ocuparia
todo o espaço, silenciando a vitrola. O iPad, de fato, me conquistou,
mas quanto mais me perdia por seus labirintos virtuais, mais
compreendia o encanto da ultrapassada solidez dos discos.
Quando a agulha toca a superfície do vinil e, segundos antes do início
da música, aquele chiado toma conta da sala, é como se eu desse um
trago num cigarro, depois de anos e anos sem fumar. Podem dizer que é
só poeira, estática e nostalgia, que seja, mas o crepitar funciona
como um discreto acalanto, um leve afago vindo do passado, de um tempo
em que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa e havia
apenas dois lados, A e B, nessa deslumbrante confusão em que o mundo
se transformou.
antonioprata.folha@xxxxxxxxxx

@antonioprata

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Niquele
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