..:: C A M A R A D A S ::.. analistas2002@xxxxxxxxxxxxx ANTONIO PRATA A vitrola e o iPad Num arroubo napoleônico, disse a mim mesmo: "Do alto desta estante, dois séculos me contemplam!" QUANDO A VITROLA e o iPad chegaram à minha casa, na mesma noite, semana passada, me senti como um anfitrião recebendo convidados muito díspares para jantar: temi que se desentendessem. Coloquei-os lado a lado, sobre um móvel da sala: a tia velha, saindo do fundo de um armário, após vinte anos de hibernação, na casa do meu sogro; o "enfant terrible", recém-chegado de um shopping, nascido, quem sabe, há menos de um mês. Constatando suas diferenças, num arroubo napoleônico, disse a mim mesmo: "Do alto desta estante, dois séculos me contemplam!" A vitrola é a epítome do século 20, era da mecânica: engrenagens, correias, a agulha de metal, feita para percorrer as ranhuras do vinil. Cada música, uma faixa: concreta, visível, tangível, até. Cada disco, dois lados, A e B, como o mundo de então, dividido entre americanos e russos, mocinhos e bandidos, o pop e o underground, Arena e MDB, Globo e SBT. Um tempo em que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa. Ponto. Na lateral do toca discos, o acabamento imitando madeira: mais do que mero adorno, um tributo que a modernidade precisava pagar à tradição, naquela época em que o novo ainda tinha que buscar legitimação no passado. (Lembro-me dos assentos vermelhos da Viação Cometa, onde lia-se: "Esta poltrona é revestida do mais nobre dos materiais: couro legítimo". Penso nas sandálias Havaianas, cujas tiras e sola imitam, respectivamente, o trançado do tecido e a superfície de palha dos chinelos japoneses em que se inspiraram). Já o iPad, como os outros "is" da Apple, não busca legitimar-se na tradição. O iPhone não imita o telefone, o iPod não finge ser um walkman, nem o tablet é um computador em miniatura. (Não é sugestivo que a empresa de Steve Jobs chame-se Apple e que, no logotipo, a maçã apareça mordida, evocando o primeiro ato do Homem contra Deus, e, portanto, contra a tradição?) Trajando sua capa de borracha preta, o iPad tem ares de cowboy futurista. Seus únicos pertences são o laço, perdão, o cabo de energia, com o qual captura a eletricidade de que se alimenta, e o lenço sintético, usado para remover de sua tela cristalina as eventuais máculas mundanas. Não precisa de discos nem disquetes, sequer tem entrada USB: recolhe do ar as músicas, filmes, livros e jogos que, invisíveis, pairam sobre nossas cabeças. No dia em que os dois aparelhos chegaram, achei que o tablet ocuparia todo o espaço, silenciando a vitrola. O iPad, de fato, me conquistou, mas quanto mais me perdia por seus labirintos virtuais, mais compreendia o encanto da ultrapassada solidez dos discos. Quando a agulha toca a superfície do vinil e, segundos antes do início da música, aquele chiado toma conta da sala, é como se eu desse um trago num cigarro, depois de anos e anos sem fumar. Podem dizer que é só poeira, estática e nostalgia, que seja, mas o crepitar funciona como um discreto acalanto, um leve afago vindo do passado, de um tempo em que uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa e havia apenas dois lados, A e B, nessa deslumbrante confusão em que o mundo se transformou. antonioprata.folha@xxxxxxxxxx @antonioprata -- Niquele ______________________________________ Respeite a privacidade de seus contatos. Use sempre o campo "Cco" ao enviar e-mail para vários destinatários. Grazie! ............ Politics, it seems to me, for years, or all too long, has been concerned with right or left instead of right or wrong. Richard Armour Arquivo de mensagens //www.freelists.org/archive/analistas2002/