Folha de São Paulo Quinta-feira, 15 de dezembro de 2005 Pág. B11 Dinheiro Rapunzel alemã tira a rapadura do Brasil FERNANDO CANZIAN MARCAS E PATENTES Empresa registra produto como "marca" na Alemanha e nos EUA e diz que não pretende voltar atrás O Brasil não quer entregar a rapadura. Para isso, já mobilizou suas representações diplomáticas em Berlim, Washington e Brasília contra uma pequena empresa alemã que é atualmente a "dona da marca" rapadura na Alemanha e nos Estados Unidos. A empresa de alimentos orgânicos Rapunzel, sediada na pacata Legau, cidade de 3.062 habitantes ao sul da Alemanha, registrou a rapadura como sendo uma marca sua de açúcar orgânico em 1989 na Alemanha. Sete anos depois, fez o mesmo nos EUA. Aparentemente, nenhum brasileiro se deu conta do fato até meados deste ano, quando uma comunicação anônima chegou ao conhecimento da Divisão de Propriedade Intelectual do Itamaraty. Navegando pela internet, um brasileiro se deparou com o registro e imediatamente avisou as autoridades brasileiras. A Rapunzel não só registrou a rapadura, uma denominação geral de domínio público (assim como feijoada ou suco), como também adquire cerca de 600 toneladas do produto no Brasil -de um suíço naturalizado brasileiro. No limite, qualquer exportador brasileiro de rapadura que vender o produto com esse nome para a Alemanha ou EUA será obrigado a pagar royalties à Rapunzel pelo uso da marca registrada. No segundo semestre deste ano, a embaixada do Brasil em Berlim fez duas tentativas formais de demover a Rapunzel de continuar usando a rapadura como marca. A última foi há três meses. Na réplica da empresa, enviada por escrito em setembro, a Rapunzel afirmava desconhecer o fato de que "rapadura" é um termo genérico de uso comum. A resposta foi considerada "descarada e cínica" pelos brasileiros, já que a Rapunzel vende há vários anos açúcar mascavo, que vem a ser rapadura triturada. Procurada pela Folha, Heike Kirsten, da divisão de marketing da Rapunzel, disse que a empresa não tem a "intenção de abandonar o registro" que "salvamos para nós". Além de rapadura, a Rapunzel comercializa uma pasta de chocolate chamada Samba. Neste caso, não houve registro do nome. Diante da resposta da Rapunzel sobre a rapadura em setembro, o Itamaraty estuda quais medidas jurídicas tomar agora, já que uma batalha judicial em um caso como esse pode se arrastar por anos. Há três anos, o Brasil viveu uma situação semelhante, quando a empresa japonesa Asahi registrou a "marca" cupuaçu -uma fruta tipicamente nacional. Depois de várias gestões do Itamaraty, a Asahi concordou em abrir mão do registro no Japão e nos EUA. No mercado americano, a marca Rapadura está registrada no USPTO (United States Patent and Trademark Office). A última atualização é de 2001. Membros da Embaixada do Brasil em Washington afirmam que faltou "bom senso" ao organismo. Procurado pela Folha, um funcionário do USPTO disse que o órgão cumpriu todas as etapas formais (como publicação de anúncios e consultas) antes de registrar a marca (desconhecida dos americanos) para os alemães. Depois dos casos do cupuaçu e agora da rapadura, a Divisão de Propriedade Intelectual do Itamaraty começou a preparar uma lista com nomes tipicamente brasileiros para servir de indicação do que não deve ser registrado nos inúmeros escritórios de marcas e patentes espalhados pelo mundo. Jabuticaba vai constar da lista, mas há dúvidas sobre Carnaval. Quinta-feira, 15 de dezembro de 2005 Pág. B11 Dinheiro Empresa diz que não abre mão do registro da marca FERNANDO CANZIAN OUTRO LADO Heike Kirsten, do departamento de marketing da Rapunzel, afirma que sua empresa não planeja abrir mão da "marca" rapadura nos mercados alemão e norte-americano. "Não temos a intenção de abandonar o registro", disse. Ela acrescentou, porém, que o desejo da Rapunzel é "trabalhar de modo cooperativo com o Brasil". Questionada sobre o que seria um "modo cooperativo", disse: "Ainda estamos discutindo o assunto e não poderia comentar". A Folha perguntou a Kirsten o que acharia de um improvável registro da "marca" wurst (salsicha, em alemão) por uma empresa brasileira que desejasse vender embutidos. Ela não soube responder. A representante da Rapunzel disse que o registro da "marca" Rapadura teve o objetivo de "salvar o nome para a empresa". "Ninguém conhecia o termo rapadura e queríamos um nome diferente para vender o açúcar mascavo orgânico no mercado alemão. Registramos o nome aqui e nos Estados Unidos", afirma. Kirsten afirma também que sua empresa deseja "associar o nome rapadura às ações sociais" que a Rapunzel pratica. Segundo ela, 1% das vendas da rapadura e dos demais 400 produtos que a empresa comercializa são destinados a um fundo que financia atividades sociais ao redor do mundo. Neste momento, a rapadura brasileira estaria ajudando as vítimas do tsunami asiático do ano passado. Direto de São Paulo O açúcar mascavo que a Rapunzel vende com o nome rapadura é produzido a 600 quilômetros de São Paulo, em Lucélia, pela empresa de produtos orgânicos Planeta Verde, em uma área de 435 hectares. O dono da Planeta Verde é o suíço naturalizado brasileiro Emile Lutz, que fabrica 1.200 toneladas ao ano de açúcar mascavo e que há 15 anos fornece o produto para a alemã Rapunzel. Segundo Lutz, a Planeta Verde possui sete diferentes certificados para a produção de açúcar orgânico, que é vendido em sacos de 15 quilos ou em contâineres com até 19 toneladas. Ele não revela quanto cobra pela rapadura que vende à Rapunzel. Nos EUA, um pacote de 680 gramas do "adoçante" Rapadura Rapunzel pode ser comprado pela internet por US$ 4,59 (R$ 10). É um pouco mais em conta do que uma rapadura autêntica da marca Itamarati, que sai por US$ 4,99. Quinta-feira, 15 de dezembro de 2005 Pág. B11 Dinheiro No Brasil, produto recheia até biscoitos "São uns sacanas esses caras, hein? Esse negócio é brasileiro", reagiu Orlando Dias Munhoz, fabricante de produtos à base de rapadura ao ser informado de que uma empresa alemã registrou a "marca" na Alemanha e nos EUA. O baiano Munhoz se considera um especialista em rapadura. Há cinco anos inventou em Juazeiro uma máquina que corta pedaços grandes de rapadura e embala automaticamente porções menores para serem comercializadas. Além dos minitabletes e bombons de rapadura, Munhoz vende biscoitos de água e sal com recheio de rapadura -são duas bolachas grudadas pela rapadura. Para 2006, a novidade será o pirulito de rapadura. Embora amplamente conhecida no Brasil, a rapadura, segundo algumas fontes, teria tido sua origem no século 16 nas Canárias, ilhas espanholas do Atlântico. O nome rapadura seria derivado da "raspadura" da crosta de tachos e das engrenagens de engenhos de cana-de-açúcar e melaço. Formatada em blocos e de longa conservação, era usada (como é até hoje no Nordeste) como fonte de energia por trabalhadores de zonas rurais. Comparada ao mel, a rapadura de boa qualidade é mais rica em vitaminas e sais minerais. Outro produtor baiano, Geraldo Henrique Sena afirma que vem trocando a produção de rapadura pela de geléias de goiaba e banana, que seriam mais rentáveis e menos trabalhosas. Para produzir 400 quilos de rapadura, por exemplo, é necessário o emprego de até dez homens, do plantio da cana até a compactação em pequenos blocos. Segundo Sena, o preço não estimula. "É difícil vender um bloco de 1,2 quilo de rapadura na fábrica por mais de R$ 1,00", diz. Há alguns meses, Sena e outros 21 agricultores tomaram um financiamento de R$ 2,5 milhões no BNDES para montar uma cooperativa para produção de cachaça e rapadura na Bahia. Com apenas cinco agricultores operando até agora, Sena espera que o negócio possa engrenar depois do atual período das chuvas. É que nesta época do ano a cana fica muito "aguada" (com menos concentração de açúcar), o que acaba comprometendo a fabricação da rapadura. (FCZ)