[CamaraDas] Ótimo artigo de Caligaris na FSP de hoje

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Thu, 4 Nov 2010 11:12:32 -0200

    ..:: C A M A R A D A S ::..
    analistas2002@xxxxxxxxxxxxx

CONTARDO CALLIGARIS - Qual divisão do país?

O país me parece muito mais maduro do que mostraram os grupos raivosos
das militâncias


SEGUNDA-FEIRA CHUVOSA, no Rio. Leio todos os jornais que encontro,
tomando meu café da manhã na Pavelka, padaria merecidamente popular,
no Leblon. Não sou o único cliente com mais de um cotidiano nas mãos.
Na mesa do meu lado, dois homens, mais ou menos da minha idade,
comentam o resultado da eleição presidencial. Aparentemente, um dos
dois votou no Serra, e o outro, na Dilma; mas é óbvio que nenhum dos
dois é um fanático.
O tom geral da conversa é de uma certa preguiça, um "ainda bem que
terminou", alimentado pela sensação (que os dois parecem compartilhar)
de que não havia nada de realmente decisivo que opusesse os candidatos
do segundo turno.
Enquanto escuto os dois amigos do Leblon, que comem croquetes de
frango e carne, como eu, penso que o país não está dividido e não tem
por que estar.
Para começar, contrariamente ao que foi repetido nas queixas de ambas
as partes, a campanha não foi especialmente violenta nem sórdida. Tudo
bem, voaram balões de água e rolos de fita crepe, e os militantes se
chocaram aos berros, de vez em quando. Como é normal que aconteça,
cada lado acusou o outro de baixaria e brutalidade. E cada lado zombou
das "lamúrias" do outro. Por sorte (mas, na verdade, penso que não foi
sorte: foi juízo), os (raros) enfrentamentos nunca tiveram
consequências graves, e eu me lembro de uma época, na Europa, em que
uma manifestação sem feridos era exceção.
Cá entre nós, a campanha de 2010 foi tranquila. E não acho que isso
tenha acontecido só graças ao temperamento naturalmente conciliatório
dos brasileiros.
Ainda no primeiro turno, li as propostas e os argumentos de Dilma,
Serra e Marina. Pois bem, nunca fiquei com a impressão de que o país
estivesse, como se dizia nos meus tempos, diante de uma "escolha de
sociedade", tendo que decidir entre futuros radicalmente divergentes.
Ao contrário, parece-me que o país teve a sorte de ser chamado a votar
em candidatos que todos, atrás das oposições indispensáveis para que
as candidaturas e as campanhas fizessem sentido, compartilhavam as
mesmas preocupações básicas.
Nesta segunda, vários cotidianos apresentaram, mais uma vez, os planos
de governo de Dilma e Serra, frente a frente, para uma última
comparação. Reli com cuidado. Claro, há diferenças quanto às
prioridades e aos meios e, de qualquer forma, resta se perguntar qual
dos dois seria mais eficiente na hora do vamos ver, mas o sentimento
inspirador é parecido. Ou seja, nada impediria que José Serra e Dilma
estivessem aqui, na Pavelka, discutindo o que seria melhor para o
país, entre amigos.
Afinal, eles pertencem a uma mesma geração, a dos que definiram suas
aspirações políticas (de fato, suas vidas) na resistência à ditadura
militar. Como não compartilhariam um fundo moral comum? Como poderia
ser que ambos não desejassem, de um jeito ou de outro, uma sociedade
livre e decente, na qual seja mais agradável conviver?
Quem assistiu aos debates presidenciais na televisão afirma que eles
foram chatos; aliás, que toda a campanha foi chata. Concordo, mas não
estranho: quando existe, entre candidatos, um fundo político comum, só
resta debater temas cuja relevância é fictícia ou pretextuosa e,
sobretudo, inventar jeitos de demonizar o adversário.
Essa última foi a função das militâncias, oficiais e oficiosas. Sobre
esse tema sou suspeito: tenho ojeriza a todas as identidades
coletivas. A história de minha geração de europeus e norte-americanos
é que passamos por várias identidades coletivas e, no fim, ficamos
fundamentalmente anarquistas (ou, numa vertente mais integrada,
individualistas).
Peço vênia, mas, recebendo os inúmeros e-mails das militâncias, com
desnudamentos extraordinários de última hora, revelações desvendando o
grande complô da mídia, e, enfim, agora, com as maldições dos que
perderam e os hosanas dos que ganharam, sinto-me um pouco como num
jogo de futebol, em que a violência estúpida e cega das torcidas me
impede de aproveitar meu domingo no estádio.
Mesmo assim, nesta segunda chuvosa, aqui no Rio de Janeiro, o país me
parece infinitamente mais maduro do que suas militâncias -mais
parecido com uma mesa da Pavelka com amigos discordando e discutindo
do que com o espaço raivoso e vazio da gritaria on-line das últimas
semanas.

ccalligari@xxxxxxxxxx

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Niquele
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