[CamaraDas] Amarildo quis ser Mel Gibson

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Tue, 22 Oct 2013 01:41:34 -0200

21/10/2013 - 03h00
História real

A primeira vez que eu fumei maconha foi no aterro do Flamengo, depois de
uma pelada. Éramos quatro pernas de pau do liceu francês. Perdemos de muito
a zero. Sentamos debaixo de uma árvore e o Marcio apertou (mal) um baseado
pra atenuar a derrota. "Tomamos um esculacho." O esculacho maior estava por
vir. O beque mal apertado ainda não tinha dado uma volta completa quando
brotaram, do nada, dois PMs trincados: "Cadê o flagrante?". O flagrante, a
essas alturas, estava longe. Bruno tinha isolado o beque pro mato. O PM bom
disse que se a gente não achasse o tal flagrante eles levariam a gente para
Bangu 2, onde "bandidos comeriam o nosso cu". Argumentei, me sentindo Mel
Gibson em "Coração Valente", que se eles não achassem o flagrante, não
haveria prisão, porque só pode haver prisão com flagrante. E que nós éramos
menores de idade e não iríamos pra Bangu.

Mas essa última frase eu não cheguei a dizer, porque o PM mau me deu um
soco no peito e eu fui parar no chão. Se eu fosse Mel Gibson, teria
revidado. Se eu fosse Mel Gibson, eu estava morto. A sorte é que eu não sou
Mel Gibson e a garganta apertou. Comecei a chorar. Bruno, Marcio e Antonio,
que tampouco eram Mel Gibson, começaram a procurar o flagrante no chão, de
quatro. Acharam. Pronto, não tinha mais o que fazer. Ou melhor: tinha.
Esvaziamos nossas carteiras, que, juntas, deram R$ 10. Naquela época o
ônibus custava R$ 0,90. Achamos R$ 10, era uma fortuna. O PM mau não achou.
Marcio disse que morava ali perto.

Eles ficaram com as nossas carteiras de identidade, pra gente não sumir
("Retenção de documentos não é crime?", teria dito Mel Gibson). Na casa do
Marcio, a mãe dele estava vendo TV na sala. Atravessamos cabisbaixos. "Boa
noite, mãe." Saímos do quarto dele com uma mochila pesada, contendo tudo o
que ele tinha de mais valioso na vida: uma nota de R$ 50, um PlayStation
velho, meia dúzia de jogos de PlayStation, um videocassete, algumas fitas
de VHS, os controles do PlayStation. "A gente já volta, mãe." Deixamos a
mochila na viatura, com muita dor e vergonha. No dia seguinte, rachamos o
prejuízo: uns R$ 200 pra cada um. E uma raiva que eu iria levar pra vida.

Desde então, aprendi a temer a polícia. Aprendi que ela não existe pra me
proteger. Aprendi que as coisas não mudam. A sorte é que tem gente que não
é feita do mesmo material que eu. Tem gente que toma soco no peito e
revida. Assim, quem sabe, um dia, ninguém mais vá precisar tomar porrada.
[image: gregorio duvivier]

*Gregorio Duvivier* é ator e escritor. Também é um dos criadores do portal
de humor Porta dos Fundos

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