[CamaraDas] Artigo: Homens e animais

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  • Date: Tue, 22 Oct 2013 02:15:29 -0200

JOÃO PEREIRA COUTINHO

Homens e animais

*Os defensores da libertação animal preferem que sejam os homens no lugar
dos bichos nos laboratórios?*

É uma marca de progresso: a discussão sobre os "direitos dos animais"
chegou ao Brasil. Com estrondo: leio nesta *Folha* que centenas de
cachorros foram resgatados de um instituto de pesquisa médica no Estado de
São Paulo. A violência veio a seguir, com carros vandalizados ou
completamente destruídos.

Nada de novo na frente ocidental. Na Inglaterra, por exemplo, tenho amigos
que trabalham com ratinhos de laboratório em suas pesquisas científicas.
Nenhum deles comenta o fato em ambientes, digamos, sociais. Como bares,
cinemas, restaurantes. Nunca se sabe: pode haver um fanático da "libertação
animal" por perto e as coisas descarrilam facilmente.

Como já descarrilaram no passado: histórias de insultos, ameaças de morte,
agressões físicas e até profanação de sepulturas de familiares de
cientistas fazem parte do cardápio. Na experimentação médica, o silêncio, e
não o cachorro, é o melhor amigo do homem. Como se chegou até aqui?

O filósofo Roger Scruton escreveu um livro a respeito ("Animal Rights and
Wrongs", editora Continuum, 224 págs.) que ajuda a explicar o fenômeno.

E o fenômeno explica-se com o declínio da religião nas sociedades
ocidentais: quando os homens acreditavam que eram os seres superiores da
criação, ninguém pensava nos "direitos" ou nas "sensibilidades" dos bichos.
Nós, e apenas nós, tínhamos sido criados à imagem e semelhança do Pai. Não
havia como confundir um ser humano com um batráquio.

A "morte de Deus" alterou a discussão: se não existe um Pai com seus filhos
prediletos, então todos somos habitantes do mesmo espaço --e todos somos,
como diria o extravagante Peter Singer, criaturas dotadas de "senciência",
ou seja, capazes de experimentar a dor e o prazer. Donde, evitar a dor é um
imperativo tão legítimo para humanos como para animais.

Claro que, nas teorias de "libertação animal", nem todos os animais
desfrutam da mesma sorte empática: acredito que mesmo Peter Singer, nas
tardes de insuportável calor australiano, também seja capaz de matar uma
mosca ou duas. Mas o leitor entende a ideia: se conseguirmos imaginar um
animal a falar e a cantar num filme Disney, por que não conceder-lhe
estatuto moral pleno?

Porque isso é uma aberração filosófica, explica ainda Roger Scruton sobre o
argumento Disney: existem traços básicos da nossa comum humanidade que
estão ausentes do restante mundo animal. São esses traços que fazem com que
"nós", e apenas "nós", sejamos seres morais no sentido pleno da palavra.

"Nós", e apenas "nós", somos capazes de julgar, meditar, revisitar o
passado, planear o futuro --desde logo porque somos seres temporais por
excelência, conscientes da nossa história e do nosso fim.

"Nós", e apenas "nós", somos dotados de imaginação e, sobretudo, de
"imaginação moral": somos capazes de rir, corar, sentir remorsos ou
alimentar indignações (e premeditadas vinganças).

E, talvez mais importante, "nós", e apenas "nós", somos capazes de
reivindicar e defender "direitos", o que implica que "nós", e apenas "nós",
somos capazes de entender o que significam certos "deveres". Como, desde
logo, o "dever" de não infligir dano desnecessário sobre animais (moscas
excluídas).

Será a pesquisa científica um "dano desnecessário sobre animais"?

Não creio, sobretudo quando contemplo as alternativas. O americano Carl
Cohen, outro filósofo sobre estas matérias que também recomendo aos
interessados (com o seu "The Animal Rights Debate"), é primoroso ao colocar
o problema no seu duplo e potencial impasse: os defensores da libertação
animal preferem que sejam os homens a tomar o lugar dos bichos nos
laboratórios?

Ou preferem antes que não existam mais cobaias nos laboratórios e que os
avanços científicos possam parar de vez neste ano da graça de 2013?

Boas perguntas. Esperemos pelas respostas. Mas, até lá, talvez não fosse
inútil convidar os militantes da "libertação animal" a recusarem daqui para
a frente todos os tratamentos médicos que têm no seu historial o uso de
animais em laboratório. Em nome da coerência.

Se isso significar, no limite, a morte de alguns dos militantes, tanto
melhor: unidos na vida, unidos na morte.

-- 
*:::*
*Niquele*

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