[CamaraDas] Artigo: Eliane Brum

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Sat, 12 Jul 2014 16:39:52 -0300

*O Brasil do eu acredito*

*Na grande tragédia da seleção brasileira nesta Copa do Mundo não há
inocentes, nem mesmo a torcida *

"Eu acredito, eu acredito." Uma pequena parte da torcida brasileira ainda
repetia o bordão depois de a seleção brasileira já ter levado uma goleada
dos alemães no Mineirão. Era uma pequena grande cena. A realidade se
impunha como o inacreditável, as bolas iam estourando na rede brasileira
como ficção, quem não tinha deixado o estádio olhava para o campo tomado
pela anestesia que assinala a tragédia. A inversão da expectativa é tão
avassaladora que passa a ser interpretada como irrealidade, num estado
delirante, em que qualquer gesto parece destinado ao nada. A goleada era da
Alemanha no Brasil, mas era ainda mais profundo do que isso: era realidade
7x1 pensamento mágico. Um? Não. Zero.

Essa foi a seleção do pensamento mágico. E, nesse aspecto, não podia ser
mais brasileira nesta Copa de 2014. Não o pensamento mágico como fonte de
explosão criativa, mas como um produto de consumo. Vende-se que o
espetáculo é a verdade profunda sobre o Brasil e o seu futebol. Confunde-se
marketing publicitário com realidade. Os jogadores da seleção comportam-se
como astros. Não mais astros de rock, mas astros de um show religioso.
Confinados, assistem a palestras de "motivação", são treinados no
pensamento de autoajuda mais do que no campo, com a bola no pé.

Age-se como se houvesse uma predestinação. Se você acreditar muito, você
consegue. Se você rezar muito, acontece. A arrogância enorme de achar que
"deus" é torcedor do seu time porque você é o mais merecedor expressa nas
cenas de joelhos dentro do campo, os dedos apontando para o céu, a oração
em transe nos momentos-limite.

Só que acreditar não foi o suficiente para fazer acontecer. A realidade deu
de goleada. Diante da força avassaladora da verdade em alemão, os
torcedores brasileiros reagiram como se tivessem sido traídos.
Apresentadores de TV que desempenharam o papel de, em vez de fazer uma
narração crítica, serem o mestre cerimônias de um espetáculo no qual a
realidade era matéria ordinária, passaram a sangrar os "vilões" com o mesmo
empenho com que antes os tinham transformado em "heróis". É fácil perceber
por que o espetáculo, com tanto dinheiro envolvido, precisa continuar o
mais rapidamente possível. No mundo de negócios a lealdade não importa, os
puxa-sacos que antes só faltavam lustrar a careca de Felipão com a língua,
agora mostram caninos afiados, ávidos por sangue.

Não há inocentes nessa trágica história de futebol. Nem mesmo os
torcedores. O que se convencionou chamar de povo brasileiro embarcou
alegremente na lógica do espetáculo. Era visível nos estádios, onde
proporcionalmente havia muito mais negros em campo do que nas
arquibancadas, que a preocupação com a câmera para muitos era maior do que
com o jogo que se jogava no chão. Nas entrevistas com torcedores
fantasiados de verde-amarelo, a maioria deixava claro que se produzia para
virar imagem na TV. Na entrada da Granja Comary, eram mais numerosos os que
tentavam vender alguma coisa, aproveitando a presença das câmeras --em
geral a si mesmos. A torcida era mais um produto. E um produto sem
constrangimento de apresentar-se como produto.

Todos cumpriram o seu papel, então como não deu certo? Como parecem
descobrir agora o que alguns têm dito, a um alto custo pessoal e
profissional, que o futebol brasileiro não é mais o futebol brasileiro? Ou,
o mais difícil de ouvir, que este é o futebol brasileiro hoje. Algumas
cenas da "reação" dizem muito:

*1) A entrevista coletiva de Felipão, acompanhado da comissão técnica,
nesta quarta-feira (9), na Granja Comary.*
A cena era bastante patética. Felipão levou várias planilhas para mostrar
que fez tudo certo. "O trabalho não foi de todo ruim, tivemos uma derrota
ruim." Ele continuava achando --ou fingindo achar-- que a "realidade" das
planilhas era mais "real" do que o que todos viram no Mineirão. Carlos
Alberto Parreira chegou a fazer uma afirmação surreal: "Todos foram
perfeitos, nenhum deslize. O resultado é que impactou".

*2) O pedido de desculpas de David Luiz depois do jogo.*
"Eu só queria dar alegria ao meu povo, a minha gente que sofre tanto
inúmeras coisas (...). Eu só queria ver o meu povo sorrir. Todos sabem o
quanto era mais importante pra mim ver o Brasil inteiro feliz pelo menos
por causa do futebol.(...) Um dia vou alegrar esse povo de alguma forma." É
um discurso emocionado, em lágrimas, mas também é um discurso de político
populista. Expressa sincera emoção, mas também enorme onipotência.

*3) Neymar, o menino de chuteiras douradas da seleção e do mercado
publicitário.*
Quando a realidade interfere, na forma do joelho do colombiano Zúñiga, foi
preciso rapidamente improvisar para continuar mantendo a propriedade da
narrativa. Neymar disse outra frase, que também pertence a essa geração:
"Tenho certeza que os meus companheiros vão fazer de tudo para que eu possa
realizar o meu sonho, que é ser campeão". O sonho dele. De imediato
criaram-se campanhas de apoio, máscaras com o rosto do jogador, usando e
potencializando a comoção nacional. Era preciso manter o jogo, não o da
bola, mas o do mercado, em campo: "Somos todos Neymar". Na vida real, como
mostrou Juca Kfouri, depois dos sete gols Neymar foi jogar pôquer com os
amigos.

*4) A imagem de um menino inconsolável, aos gritos: "Quero vencer!".*
Mantém-se a narrativa do "trauma", que atravessou a campanha brasileira
nessa Copa. Primeiro, eram os jogadores em permanente estado de "trauma",
fosse por quase perder do Chile, fosse por perder Neymar, agora por perder
de goleada. É a marca dessa geração, treinada para acreditar que o
pensamento mágico de poder tudo é a realidade. Tudo o que é da vida não é
da vida, mas "trauma". A vida "traumatiza". Acaba o jogo da Alemanha e são
as crianças brasileiras as "traumatizadas". Como se uma derrota, mesmo
acachapante, não fizesse parte de qualquer existência humana. Completa-se a
transmutação: uma seleção de traumatizados, uma torcida de traumatizados.
E, mais uma vez, explora-se o choro a exaustão, agora das crianças. Não é
trauma na seleção, não é trauma na torcida. Trauma é de outra ordem.

O espetáculo continua, parece que pouco se aprendeu com a goleada da
realidade. Neymar desembarcou nesta quinta-feira (10), na Granja Comary,
"para dar apoio" aos companheiros, aos "caras". O único que não estará em
campo em Brasília, na partida pelo terceiro lugar, foi o escolhido pela CBF
para dar coletiva à imprensa. Torna-se explícito qual é o jogo que
realmente importa. O drama real é insuficiente, o espetáculo precisa
seguir. É vetado se retirar do palco. O herói alquebrado será explorado até
o fim. Todos usando todos.

O que aconteceu não foi um "apagão" de seis minutos no jogo contra a
Alemanha. Seria fácil se fossem só seis minutos. Na vida real, o "apagão"
dura anos, abarca o país inteiro e continuará como espetáculo depois da
Copa, se o bordão "eu acredito" não mudar para "eu duvido".

*:::*
*Niquele*

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