[CamaraDas] Artigo: José Paulo Lanyi

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  • Date: Thu, 5 Feb 2015 15:22:04 -0200

*O apartheid econômico na ilha de Fidel*

Com o pulso socialista e as pernas amparadas em um capitalismo de muletas,
Cuba vive a sua transição. O povo está esperançoso, diante do acordo com os
EUA e da perspectiva da chegada de mais turistas. Mas ele sabe que há muito
mais a ser feito para que possa, enfim, viver com dignidade. Deve-se
levantar o bloqueio de fora. E o "apartheid" de dentro.

Voltamos, minha namorada e eu, de uma jornada de três semanas pelo Eldorado
que só a ideologia e a ficção são capazes de fundar.

Viagem independente. Nada de pacotes e excursões. Ficamos em casas de
famílias que alugam quartos para estrangeiros. Foi assim na caótica Havana,
nos "mogotes" de Viñales e na aristocrática Varadero.

No decorrer dos dias, as férias foram minguando para dar lugar ao espanto.
Canais de televisão celebravam a chegada do 56º ano da revolução.
Descobrimos que, tanto quanto lá, em países como China, Rússia, Brasil e
Venezuela, só acontecem coisas boas.

Em Cuba, poucos são os escolhidos. Donos de lojas, restaurantes, hotéis e
casas particulares convertidas em hospedaria são autorizados a cobrar em
moeda turística (CUC, peso convertível), cujo valor é pouco menor do que o
do euro. Esses vivem melhor, reinvestem e fazem o dinheiro circular.

O grosso da população que tem emprego recebe em uma moeda que vale 25 vezes
menos. E, como ganha uma espécie de cesta básica que também não cobre o
mês, faz de sua rotina uma jornada pela selva. Vale tudo pelo dinheiro dos
turistas.

Muitos moradores mendigam, enganam, colocam, literalmente, camundongo em
cima de cachorro para conseguir aquele trocado que para os gringos não é
nada. Mas, para os excluídos, é uma fortuna em pesos nacionais. E a ciranda
do desespero recomeça no dia seguinte.

Turista pode tudo. Cubano não pode nada, a menos que receba a chancela para
trabalhar com estrangeiros. Nas praias de Varadero, se um forasteiro se
senta em uma "cadeira proibida" de um resort, ouve de um segurança que terá
de pagar 1 ou 2 CUCs para ficar (embora, provavelmente, o hotel não saiba
disso). Se um residente se abanca ali, é escorraçado pelo mesmo homem.

Cubanos só podem entrar em restaurantes para nacionais e, de modo similar,
em casas de hospedagem com um selo vermelho na porta. As de selo azul,
melhores e mais refinadas, são frequentadas pelos estrangeiros. A corrupção
é a marca da desigualdade. Em uma farmácia para nativos, a balconista
exigiu 40 pesos nacionais em uma compra que deveria custar 15. Uma propina
de, digamos, R$ 3.

Tudo para vender duas pomadas anti-inflamatórias que, dizia a atendente,
exigiam receita médica -o que não era verdade. E turistas, diga-se, também
podem comprar nesses locais. No câmbio, a operadora "se enganou" e,
confrontada com o seu "erro", devolveu, sem reclamar, o equivalente a R$ 9.

O contraste entre o que se pode ter e o que se vê nas mãos dos estrangeiros
e da minoria habilitada gera grande insatisfação popular.

Muitos falam mal do governo e dizem que, enquanto a massa se sacrifica,
Fidel Castro, integrantes de seu regime, artistas e esportistas famosos
vivem em mansões em uma região rica a oeste de Havana.

Voltamos para o Brasil com uma imagem que sintetiza o sentimento desse
povo. Em Varadero, um brasileiro deu o seu mergulho, pegou a toalha na
cadeira e rumou para um hotel da rede Meliá. Ostentava, no braço bronzeado,
uma tatuagem de Che Guevara.

JOSÉ PAULO LANYI, 44, é escritor, produtor de cinema e consultor de
comunicação


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Niquele

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