Re: [CamaraDas] Oliver Sacks

  • From: Leandro <leandro.cariello@xxxxxxxxx>
  • To: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • Date: Wed, 25 Feb 2015 08:15:25 -0300

Triste e bonito.

Em 23/02/2015, às 17:13, Leandro Cariello <leandro.cariello@xxxxxxxxx> escreveu:

> Em 23/02/2015 16:05, "Niquele" <niquele@xxxxxxxxx> escreveu:
>> Minha vida: O neurologista diante da morte
>> 
>> OLIVER SACKS
>> tradução FRANCESCA ANGIOLILLO
>> 
>> 
>> RESUMO Autor prolífico de livros populares de divulgação científica, o 
>> neurologista Oliver Sacks descobriu recentemente metástases, não tratáveis, 
>> de um câncer que tem há nove anos. Neste texto, ele fala de como quer viver 
>> seus últimos meses e dos esforços necessários para fazer o que chama de um 
>> acerto de contas com a vida.
>> 
>> *
>> 
>> Um mês atrás, eu me sentia gozando de boa saúde; diria até que de uma saúde 
>> de ferro. Aos 81, ainda nado 1.600 metros por dia. Mas minha sorte se 
>> esgotou –há algumas semanas, soube que tinha múltiplas metástases no fígado. 
>> Nove anos atrás, descobri que eu tinha um tumor de olho raro, um melanoma 
>> ocular. Apesar de as radiações e do laser para eliminar o tumor terem me 
>> deixado cego daquele olho, era muito improvável que um tumor daquele tipo se 
>> alastrasse. Eu estou entre os 2% desfavorecidos pela sorte.
>> 
>> Sinto-me grato pelos nove anos produtivos e de boa saúde que tive após o 
>> diagnóstico original, mas agora estou cara a cara com a morte. A doença 
>> tomou um terço de meu fígado e, ainda que seja possível atrasar seu passo, o 
>> avanço desse tipo particular de câncer não pode ser impedido.
>> 
>> 
>> 
>> 
>> 
>> Oliver Sacks em frente à casa onde passou sua infância, na Inglaterra
>> O que me cabe agora é decidir como viverei os meses que me restam. Devo 
>> vivê-los da maneira mais rica, profunda e produtiva que puder. Nisso sou 
>> encorajado pelas palavras de um de meus filósofos favoritos, David Hume, 
>> que, aos 65 anos, sabendo-se acometido por uma doença mortal, escreveu, em 
>> um só dia de abril de 1776, uma breve autobiografia. Ele a  intitulou "Minha 
>> Vida".1
>> 
>> "Conto agora com uma morte rápida", ele escreveu. "Tenho sofrido pouquíssima 
>> dor advinda de minha doença e, o que é mais estranho, apesar do rápido 
>> declínio de meu corpo, meu espírito nunca se abateu um momento sequer. 
>> [...]Possuo o mesmo ardor de sempre pelos estudos, e a mesma alegria na 
>> companhia de outras pessoas."
>> 
>> Tive muita sorte de poder passar dos 80, e os 15 anos que me foram 
>> concedidos além das seis décadas e meia que viveu Hume, eu os vivi de forma 
>> tão plena de trabalho e amor quanto ele. Nesse período, publiquei cinco 
>> livros e terminei uma autobiografia, um bocado mais extensa que a dele, a 
>> sair nos próximos meses;2 tenho vários outros livros quase concluídos.
>> 
>> Hume seguia: "Sou [...] um homem de disposição cordial, senhor de si mesmo, 
>> de humor franco, social e jovial, capaz de amizade, mas pouco suscetível a 
>> inimizades e de grande moderação em todas as suas paixões".
>> 
>> Nesse ponto minha experiência se afasta da dele. Embora eu tenha vivido 
>> amores e amizades e não tenha inimizades reais, não posso dizer (nem ninguém 
>> que me conhece poderia) que sou um homem de disposição cordial. Ao 
>> contrário, meu caráter é veemente, sou capaz de me entusiasmar de forma 
>> violenta e sou extremamente imoderado no que diz respeito a qualquer de 
>> minhas paixões.
>> 
>> Ainda assim, uma linha do ensaio de Hume me parece especialmente verdadeira: 
>> "É difícil", escreve, "sentir maior distanciamento da vida do que este que 
>> sinto neste momento".
>> 
>> Ao longo dos últimos dias, eu pude ver minha vida como se a observasse desde 
>> uma grande altitude, como se ela fosse uma espécie de paisagem, e com a 
>> percepção cada vez mais aguda da conexão entre todas as suas partes. Isso 
>> não quer dizer que eu tenha dado minha vida por encerrada.
>> 
>> Ao contrário: sinto-me intensamente vivo, e quero e espero que, no tempo que 
>> resta, eu possa aprofundar minhas amizades, dizer adeus aos que amo, 
>> escrever mais, viajar, se tiver força para tanto, alcançar novos graus de 
>> entendimento e de discernimento.
>> 
>> Isso vai requerer audácia, clareza e franqueza; é uma tentativa de acertar 
>> as contas com o mundo. Mas haverá tempo, também, para diversão (e até mesmo 
>> para um tanto de tolices).
>> 
>> Sinto uma súbita nitidez de foco e de perspectiva. Não há tempo para nada 
>> que não seja essencial. Preciso me concentrar em mim, no meu trabalho, nos 
>> meus amigos. Não vou mais assistir ao noticiário na televisão toda noite. 
>> Não darei mais atenção alguma à política ou ao aquecimento global.
>> 
>> Isso não é indiferença, mas distanciamento –eu ainda me preocupo muito com o 
>> Oriente Médio, aquecimento global, o crescimento da desigualdade, mas esses 
>> assuntos não me cabem mais; eles cabem ao futuro. Eu me alegro quando 
>> encontro gente jovem e talentosa –inclusive a que fez a biópsia que 
>> constatou minhas metástases. Eu sinto que o futuro está em boas mãos.
>> 
>> Fiquei mais e mais atento, nos últimos dez anos, à morte de contemporâneos 
>> meus. Minha geração está de saída, e cada uma dessas mortes eu senti de 
>> forma abrupta, como se uma parte de mim me fosse arrancada. Não haverá mais 
>> ninguém como nós quando todos nós tivermos ido embora, mas é um fato que não 
>> há no mundo ninguém igual a outra pessoa, nunca. Quando alguém morre, não 
>> existe um substituto possível. Cada um deixa um vazio que não pode ser 
>> preenchido, pois é o destino –genético e neural–de cada humano ser um 
>> indivíduo único, que deve achar seu próprio caminho, viver sua própria vida 
>> e morrer sua própria morte.
>> 
>> Não posso fingir não ter medo. Mas o sentimento que predomina em mim é a 
>> gratidão. Eu amei e fui amado; tive muito e dei muito em troca; eu li, e 
>> viajei, e pensei, e escrevi. Eu tive com o mundo o relacionamento especial 
>> que os escritores e os leitores têm com ele.
>> 
>> Acima de tudo, eu fui um ser senciente, um animal pensante sobre este belo 
>> planeta, o que, por si só, já foi um enorme privilégio e uma aventura.
>> 
>> Notas
>> 
>> 1. O ensaio autobiográfico de David Hume (1711-76) foi publicado no Brasil 
>> no livro "Da Imortalidade da Alma e Outros Textos Póstumos" (ed. Unijuí, 
>> 2006). Os trechos citados por Oliver Sacks seguem, aqui, a tradução de 
>> Daniel Swoboda Murialdo para o citado volume, salvo quanto ao termo 
>> "detachment". Lá traduzido como "desinteresse", tem também a acepção de 
>> "distanciamento", mais apropriada ao que descreve Sacks.
>> 
>> 2. A autobiografia de Oliver Sacks será publicada pela Companhia das Letras 
>> em data a definir, ainda em 2015.
>> 
>> OLIVER SACKS, 81, é médico neurologista e escritor.
>> 
>> FRANCESCA ANGIOLILLO, 42, é editora-adjunta da "Ilustríssima".
>> 
>> 
>> -- 
>> :::
>> Niquele

Other related posts:

  • » Re: [CamaraDas] Oliver Sacks - Leandro