[CamaraDas] Cesinha: Os filhos do Brasil

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  • Date: Fri, 27 Nov 2009 12:14:31 -0200

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Os filhos do Brasil

CÉSAR BENJAMIN



A PRISÃO na Polícia do Exército da Vila Militar, em setembro de 1971,
era especialmente ruim: eu ficava nu em uma cela tão pequena que só
conseguia me recostar no chão de ladrilhos usando a diagonal. A cela
era nua também, sem nada, a menos de um buraco no chão que os
militares chamavam de "boi"; a única água disponível era a da descarga
do "boi". Permanecia em pé durante as noites, em inúteis tentativas de
espantar o frio. Comia com as mãos. Tinha 17 anos de idade.

Um dia a equipe de plantão abriu a porta de bom humor. Conduziram-me
por dois corredores e colocaram-me em uma cela maior onde estavam três
criminosos comuns, Caveirinha, Português e Nelson, incentivados ali
mesmo a me usar como bem entendessem. Os três, porém, foram gentis e
solidários comigo. Ofereceram-me logo um lençol, com o qual me cobri,
passando a usá-lo nos dias seguintes como uma toga troncha de senador
romano.
Oriundos de São Paulo, Caveirinha e Português disseram-me que "estavam
pedidos" pelo delegado Sérgio Fleury, que provavelmente iria matá-los.
Nelson, um mulato escuro, passava o tempo cantando Beatles, fingindo
que sabia inglês e pedindo nossa opinião sobre suas caprichadas
interpretações. Repetia uma ideia, pensando alto: "O Brasil não dá
mais. Aqui só tem gente esperta. Quando sair dessa, vou para o
Senegal. Vou ser rei do Senegal".

Voltei para a solitária alguns dias depois. Ainda não sabia que
começava então um longo período que me levou ao limite.
Vegetei em silêncio, sem contato humano, vendo só quatro paredes
-"sobrevivendo a mim mesmo como um fósforo frio", para lembrar
Fernando Pessoa- durante três anos e meio, em diferentes quartéis, sem
saber o que acontecia fora das celas. Até que, num fim de tarde,
abriram a porta e colocaram-me em um camburão. Eu estava sendo
transferido para fora da Vila Militar. A caçamba do carro era dividida
ao meio por uma chapa de ferro, de modo que duas pessoas podiam ser
conduzidas sem que conseguissem se ver. A vedação, porém, não era
completa. Por uma fresta de alguns centímetros, no canto inferior à
minha direita, apareceram dedos que, pelo tato, percebi serem
femininos.

Fiquei muito perturbado (preso vive de coisas pequenas). Há anos eu
não via, muito menos tocava, uma mulher. Fui desembarcado em um dos
presídios do complexo penitenciário de Bangu, para presos comuns, e
colocado na galeria F, "de alta periculosia", como se dizia por lá.
Havia 30 a 40 homens, sem superlotação, e três eram travestis, a
Monique, a Neguinha e a Eva. Revivi o pesadelo de sofrer uma curra,
mas, mais uma vez, nada ocorreu. Era Carnaval, e a direção do
presídio, excepcionalmente, permitira a entrada de uma televisão para
que os detentos pudessem assistir ao desfile.

Estavam todos ocupados, torcendo por suas escolas. Pude então, nessa
noite, ter uma longa conversa com as lideranças do novo lugar: Sapo
Lee, Sabichão, Neguinho Dois, Formigão, Ari dos Macacos (ou Ari
Navalhada, por causa de uma imensa cicatriz que trazia no rosto) e
Chinês. Quando o dia amanheceu éramos quase amigos, o que não impediu
que, durante algum tempo, eu fosse submetido à tradicional série de
"provas de fogo", situações armadas para testar a firmeza de cada
novato.
Quando fui rebatizado, estava aceito. Passei a ser o Devagar. Aos
poucos, aprendi a "língua de congo", o dialeto que os presos usam
entre si para não serem entendidos pelos estranhos ao grupo.

Com a entrada de um novo diretor, mais liberal, consegui reativar as
salas de aula do presídio para turmas de primeiro e de segundo grau.
Além de dezenas de presos, de todas as galerias, guardas
penitenciários e até o chefe de segurança se inscreveram para tentar
um diploma do supletivo. Era o que eu faria, também: clandestino desde
os 14 anos, preso desde os 17, já estava com 22 e não tinha o segundo
grau. Tornei-me o professor de todas as matérias, mas faria as provas
junto com eles.
Passei assim a maior parte dos quase dois anos que fiquei em Bangu.
Nos intervalos das aulas, traduzia livros para mim mesmo, para
aprender línguas, e escrevia petições para advogados dos presos ou
cartas de amor que eles enviavam para namoradas reais, supostas ou
apenas desejadas, algumas das quais presas no Talavera Bruce, ali ao
lado. Quanto mais melosas, melhor.

Como não havia sido levado a julgamento, por causa da menoridade na
época da prisão, não cumpria nenhuma pena específica. Por isso era
mantido nesse confinamento semiclandestino, segregado dos demais
presos políticos. Ignorava quanto tempo ainda permaneceria nessa
situação.
Lembro-me com emoção -toda essa trajetória me emociona, a ponto de eu
nunca tê-la compartilhado- do dia em que circulou a notícia de que eu
seria transferido. Recebi dezenas de catataus, de todas as galerias,
trazidos pelos próprios guardas. Catatau, em língua de congo, é uma
espécie de bilhete de apresentação em que o signatário afiança a seus
conhecidos que o portador é "sujeito-homem" e deve ser ajudado nos
outros presídios por onde passar.
Alguns presos propuseram-se a organizar uma rebelião, temendo que a
transferência fosse parte de um plano contra a minha vida. A essa
altura, já haviam compreendido há muito quem eu era e o que era uma
ditadura.

Eu os tranquilizei: na Frei Caneca, para onde iria, estavam os meus
antigos companheiros de militância, que reencontraria tantos anos
depois. Descumprindo o regulamento, os guardas permitiram que eu
entrasse em todas as galerias para me despedir afetuosamente de alunos
e amigos. O Devagar ia embora.


São Paulo, 1994. Eu estava na casa que servia para a produção dos
programas de televisão da campanha de Lula. Com o Plano Real, Fernando
Henrique passara à frente, dificultando e confundindo a nossa
campanha.
Nesse contexto, deixei trabalho e família no Rio e me instalei na
produtora de TV, dormindo em um sofá, para tentar ajudar. Lá pelas
tantas, recebi um presente de grego: um grupo de apoiadores trouxe dos
Estados Unidos um renomado marqueteiro, cujo nome esqueci. Lula
gravava os programas, mais ou menos, duas vezes por semana, de modo
que convivi com o americano durante alguns dias sem que ele houvesse
ainda visto o candidato.

Dizia-me da importância do primeiro encontro, em que tentaria formatar
a psicologia de Lula, saber o que lhe passava na alma, quem era ele,
conhecer suas opiniões sobre o Brasil e o momento da campanha, para
então propor uma estratégia. Para mim, nada disso fazia sentido, mas
eu não queria tratá-lo mal. O primeiro encontro foi no refeitório,
durante um almoço.
Na mesa, estávamos eu, o americano ao meu lado, Lula e o publicitário
Paulo de Tarso em frente e, nas cabeceiras, Espinoza (segurança de
Lula) e outro publicitário brasileiro que trabalhava conosco, cujo
nome também esqueci. Lula puxou conversa: "Você esteve preso, não é
Cesinha?" "Estive." "Quanto tempo?" "Alguns anos...", desconversei
(raramente falo nesse assunto). Lula continuou: "Eu não aguentaria.
Não vivo sem boceta".

Para comprovar essa afirmação, passou a narrar com fluência como havia
tentado subjugar outro preso nos 30 dias em que ficara detido.
Chamava-o de "menino do MEP", em referência a uma organização de
esquerda que já deixou de existir. Ficara surpreso com a resistência
do "menino", que frustrara a investida com cotoveladas e socos.
Foi um dos momentos mais kafkianos que vivi. Enquanto ouvia a
narrativa do nosso candidato, eu relembrava as vezes em que poderia
ter sido, digamos assim, o "menino do MEP" nas mãos de criminosos
comuns considerados perigosos, condenados a penas longas, que, não
obstante essas condições, sempre me respeitaram.
O marqueteiro americano me cutucava, impaciente, para que eu
traduzisse o que Lula falava, dada a importância do primeiro encontro.
Eu não sabia o que fazer. Não podia lhe dizer o que estava ouvindo.
Depois do almoço, desconversei: Lula só havia dito generalidades sem
importância. O americano achou que eu estava boicotando o seu
trabalho. Ficou bravo e, felizmente, desapareceu.


Dias depois de ter retornado para a solitária, ainda na PE da Vila
Militar, alguém empurrou por baixo da porta um exemplar do jornal "O
Dia". A matéria da primeira página, com direito a manchete principal,
anunciava que Caveirinha e Português haviam sido localizados no bairro
do Rio Comprido por uma equipe do delegado Fleury e mortos depois de
intensa perseguição e tiroteio. Consumara-se o assassinato que eles
haviam antevisto.
Nelson, que amava os Beatles, não conseguiu ser o rei do Senegal:
transferido para o presídio de Água Santa, liderou uma greve de fome
contra os espancamentos de presos e perseverou nela até morrer de
inanição, cerca de 60 dias depois. Seu pai, guarda penitenciário,
servia naquela unidade.

Neguinho Dois também morreu na prisão. Sapo Lee foi transferido para a
Ilha Grande; perdi sua pista quando o presídio de lá foi desativado.
Chinês foi solto e conseguiu ser contratado por uma empreiteira que o
enviaria para trabalhar em uma obra na Arábia, mas a empresa mudou os
planos e o mandou para o Alasca. Na última vez que falei com ele, há
mais de 20 anos, estava animado com a perspectiva do embarque: "Arábia
ou Alasca, Devagar, é tudo as mesmas Alemanhas!" Ele quis ir embora
para escapar do destino de seu melhor amigo, o Sabichão, que também
havia sido solto, novamente preso e dessa vez assassinado. Não sei o
que aconteceu com o Formigão e o Ari Navalhada.

A todos, autênticos filhos do Brasil, tão castigados, presto
homenagem, estejam onde estiverem, mortos ou vivos, pela maneira como
trataram um jovem branco de classe média, na casa dos 20 anos, que
lhes esteve ao alcance das mãos. Eu nunca soube quem é o "menino do
MEP". Suponho que esteja vivo, pois a organização era formada por
gente com o meu perfil. Nossa sobrevida, em geral, é bem maior do que
a dos pobres e pretos.

O homem que me disse que o atacou é hoje presidente da República. É
conciliador e, dizem, faz um bom governo. Ganhou projeção
internacional. Afastei-me dele depois daquela conversa na produtora de
televisão, mas desejo-lhe sorte, pelo bem do nosso país. Espero que
tenha melhorado com o passar dos anos.
Mesmo assim, não pretendo assistir a "O Filho do Brasil", que exala o
mau cheiro das mistificações. Li nos jornais que o filme mostra cenas
dos 30 dias em que Lula esteve detido e lembrei das passagens que
registrei neste texto, que está além da política. Não pretende acusar,
rotular ou julgar, mas refletir sobre a complexidade da condição
humana, justamente o que um filme assim, a serviço do culto à
personalidade, tenta esconder.


CÉSAR BENJAMIN, 55, militou no movimento estudantil secundarista em
1968 e passou para a clandestinidade depois da decretação do Ato
Institucional nº 5, em 13 de dezembro desse ano, juntando-se à
resistência armada ao regime militar. Foi preso em meados de 1971, com
17 anos, e expulso do país no final de 1976. Retornou em 1978. Ajudou
a fundar o PT, do qual se desfiliou em 1995. Em 2006 foi candidato a
vice-presidente na chapa liderada pela senadora Heloísa Helena, do
PSOL, do qual também se desfiliou. Trabalhou na Fundação Getulio
Vargas, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na
Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. É editor da
Editora Contraponto e colunista da Folha.


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Niquêlle
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