[CamaraDas] Diante da lei

  • From: João Marcos <jmcantarino@xxxxxxxxx>
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  • Date: Fri, 16 Oct 2009 17:15:10 -0300

À manhã perdida no Detran.


Diante da lei


Diante da lei está um porteiro. Um homem do campo chega a esse porteiro e
pede para entrar na lei. Mas o porteiro diz que agora não pode permitir-lhe
a entrada. O homem do campo reflete e depois pergunta se então não pode
entrar mais tarde.

É possível – diz o porteiro – Mas agora não.

Uma vez que a porta da lei continua como sempre aberta e o porteiro se põe
de lado o homem se inclina para olhar o interior através da porta. Quando
nota isso o porteiro ri e diz:

Se o atrai tanto, tente entrar apesar da minha proibição. Mas veja bem: eu
sou poderoso. E sou apenas o último dos porteiros. De sala para sala porém
existem porteiros cada um mais poderoso que o outro. Nem mesmo eu posso
suportar a simples visão do terceiro.

O homem do campo não esperava tais dificuldades: a lei deve ser acessível a
todos e a qualquer hora, pensa ele; agora, no entanto, ao examinar mais de
perto o porteiro, com o seu casaco de pele, o grande nariz pontudo, a longa
barba tártara, rala e preta, ele decide que é melhor aguardar até receber a
permissão de entrada. O porteiro lhe dá um banquinho e deixa-o sentar-se ao
lado da porta. Ali fica sentado dias e anos. Ele faz muitas tentativas para
ser admitido e cansa o porteiro com os seus pedidos. Às vezes o porteiro
submete o homem a pequenos interrogatórios, pergunta-lhe a respeito da sua
terra natal e de muitas outras coisas, mas são perguntas indiferentes, como
as que os grandes senhores fazem, e para concluir repete-lhe sempre que
ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que havia se equipado com muitas
coisas para a viagem, emprega tudo, por mais valioso que seja, para subornar
o porteiro. Com efeito, este aceita tudo, mas sempre dizendo:

Eu só aceito para você não julgar que deixou de fazer alguma coisa.

Durante todos esses anos o homem observa o porteiro quase sem interrupção.
Esquece os outros porteiros e este primeiro parece-lhe o único obstáculo
para a entrada na lei. Nos primeiros anos amaldiçoa em voz alta e
desconsiderada o acaso infeliz; mais tarde, quando envelhece, apenas
resmunga consigo mesmo. Torna-se infantil e uma vez que, por estudar o
porteiro anos a fio, ficou conhecendo até as pulgas da sua gola de pele,
pede a estas que o ajudem a fazê-lo mudar de opinião. Finalmente sua vista
enfraquece e ele não sabe se de fato está ficando mais escuro em torno ou se
apenas os olhos o enganam. Não obstante reconhece agora no escuro um brilho
que irrompe inextinguível da porta da lei. Mas já não tem mais muito tempo
de vida. Antes de morrer todas as experiências daquele tempo convergem na
sua cabeça para uma pergunta que até então não havia feito ao porteiro.
Faz-lhe um aceno para que se aproxime, pois não pode mais endireitar o corpo
enrijecido. O porteiro precisa curvar-se profundamente até ele, já que a
diferença de altura mudou muito em detrimento do homem

O que é que você ainda quer saber? – pergunta o porteiro. – Você é
insaciável.

Todos aspiram à lei – diz o homem. – Como se explica que em tantos anos
ninguém além de mim pediu para entrar?

O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para ainda alcançar sua
audição em declínio ele berra:

- Aqui ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada
somente a você. Agora eu a fecho e vou embora.

*Franz Kafka*

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