[CamaraDas] Estatuto da Igualdade Racial pode ser votado hoje

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Wed, 13 May 2009 16:05:46 -0300

Tava esperando uma oportunidade pra reenviar estes dois textos do Cesinha.
Ambos são de 2002, quando o debate esquentou na Caros Amigos.
Vale muito a pena ler.
Saludos,
*Niquele*

ps: os textos a que ele se refere estão em
http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/edicoes/ed64/sueli.asp
http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/edicoes/ed66/debate_quente.asp
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*Vôo cego*

por César Benjamin (Junho de 2002)

Em certo momento de sua história, o brasil se orgulhou de ser um povo
mestiço, aberto a novas experiências.
Hoje não temos mais esse orgulho.



Muitos motivos se somaram, ao longo de nossa história, para tornar
especialmente difícil a tarefa de decifrar, mesmo imperfeitamente, o enigma
brasileiro. Já independentes, continuamos a ser um animal muito estranho no
zoológico das nações: sociedade recente, filha da modernidade, concebida
desde o início para servir ao mercado mundial, alicerçada em um escravismo
prolongado e tardio, única monarquia em um continente republicano, assentada
sobre uma extensa base territorial situada nos trópicos, com um povo em
processo de formação, sem um passado profundo em que pudesse ancorar sua
identidade. Que futuro estaria reservado para uma nação assim?

Durante muito tempo, as tentativas feitas para compreender esse enigma e
constituir uma teoria do Brasil foram, em larga medida, infrutíferas. Não
sabíamos fazer outra coisa senão copiar saberes da Europa, onde predominavam
os determinismos geográfico e racial que irremediavelmente nos condenavam.
Só na década de 1930, depois de mais de cem anos de vida independente,
começamos a pegar o fio da nossa própria meada. Devemos ao conservador
Gilberto Freyre, em 1934, com Casa-grande e Senzala, uma revolucionária
releitura do Brasil, visto a partir do complexo do açúcar, à luz da moderna
antropologia cultural: abandonando o enfoque da “raça”, enfatizando a
cultura, Freyre virou tudo de ponta-cabeça, com um tremendo resgate do papel
civilizatório de negros e índios dentro da formação social brasileira.
Devemos a Sérgio Buarque, em 1936, com Raízes do Brasil, um instigante
ensaio – “clássico de nascença”, nas palavras de Antônio Cândido – que
tentava compreender como uma sociedade rural, de raízes ibéricas,
experimentaria o inevitável trânsito para a modernidade urbana e “americana”
do século 20. Devemos a Caio Prado, em 1942, com Formação do Brasil
Contemporâneo, o definitivo desvendamento das nossas origens como uma
empresa colonial, acompanhado da hipótese forte de que a história do Brasil
tem um sentido, o da transformação dessa empresa, que fomos, em uma nação,
que seremos. Devemos depois a Celso Furtado uma brilhante síntese da
Formação Econômica do Brasil, num texto que falava de história para mostrar
os desafios fundamentais da modernização brasileira no século 20.


Um país que deixou de existir

Tributárias de diferentes influências – notadamente Franz Boas, Max Weber,
Karl Marx e John M. Keynes, nessa ordem –, essas quatro obras seminais
lançaram as bases da moderna ciência social brasileira e permitiram o início
de uma fecunda reinterpretação do Brasil. Como pano de fundo havia o ciclo
desenvolvimentista, com a força de processos estruturais (e estruturantes)
que nos conduziam do passado (agrícola, rural e espacialmente fragmentado)
ao futuro (urbano, industrial e espacialmente integrado). Sabendo falar
sobre nós mesmos, com a nossa própria linguagem, tínhamos agora uma
identidade em construção. Sabendo diferenciar passado e futuro, tínhamos as
condições de um projeto. Os impasses do império escravista e a pasmaceira da
República Velha haviam ficado para trás. Na seqüência desse processo, Darcy
Ribeiro ousou inverter os velhos argumentos europeus contra nós, afirmando
altivamente as vantagens da mestiçagem tropical diante de uma pretensa
pureza temperada e fria. A composição ficava completa: éramos um país
mulato, sensual, alegre, sentimental, culturalmente antropofágico, aberto ao
outro e ao novo, cheio de oportunidades diante de si. O passado nos
condenava, mas o futuro nos redimia. A figura mítica de Macunaíma e a figura
real de Garrincha – figuras fora dos padrões, que faziam tudo errado, para
no fim dar tudo certo – nos divertiam e nos encorajavam.

Não importa discutir se essa imagem do Brasil estava “certa” ou “errada”,
pois a representação ideológica de uma sociedade sobre si mesma cumpre a
função de sinalizar valores, e não de retratar fielmente “o que existe”. Em
certo momento de sua história, o Brasil reconheceu-se assim e percebeu-se
portador de potencialidades insuspeitadas, isso basta. Incorporada à
“ideologia brasileira”, essa construção permanece viva. As análises de
Gilberto Freyre ganharam existência de carne e osso nos personagens de Jorge
Amado, cujas obras viraram novelas e minisséries da Globo, completando o
ciclo de sua transformação em senso comum.

Até que ponto essa imagem ideológica – mesmo considerada apenas assim, como
imagem ideológica – continua a viger? Não pergunto – reparem – se ela é
“verdadeira” ou não, pois isso não faria sentido. Pergunto apenas se
continua a organizar o nosso imaginário coletivo, pois é nessa medida que
ela se torna verdadeira. Começo a suspeitar que não, e lamento profundamente
isso. Os noticiários das últimas semanas nos falam de outro país. Os
inomináveis massacres que chegam aos jornais em seqüência – no Rio de
Janeiro, em Rondônia, em São Paulo – são apenas a ponta espetacular de um
imenso iceberg, pois a grande barbárie do cotidiano permanece dispersa e
silenciosa. Emerge, anônima e burocrática, nos números frios do IBGE:
600.000 homicídios nos últimos dez anos. Presídios e Febens superlotados,
favelas dominadas pelo tráfico, garimpos que se multiplicam e periferias
gigantescas não são o hábitat de mulatos dengosos, criativos e sensuais. Não
se constrói, nesses espaços, futuro nenhum. A antropofagia, agora, não é
mais cultural.

O esforço dos pensadores que nos antecederam deixou pontos de partida muito
valiosos. Mas começo a suspeitar que eles nos falaram de um país que, pelo
menos em parte, deixou de existir. O Brasil de Gilberto Freyre girava em
torno da família extensa da casa-grande, um espaço integrador dentro da
desigualdade; o de Sérgio Buarque apenas iniciava a aventura da urbanização;
o de Caio Prado mantinha a perspectiva da libertação nacional e do
socialismo; o de Celso Furtado era uma economia dinâmica, que experimentava
uma acelerada modernização industrial.


Não temos uma teoria do país

Os elementos centrais com que todos eles trabalharam foram profundamente
alterados nos últimos 25 anos. A economia mais dinâmica do mundo, que dobrou
seu produto cinco vezes seguidas em cinqüenta anos, caminha para
experimentar a terceira década rastejante; tornou-se uma economia de baixo
crescimento. Todos os mecanismos que garantiram, no século 20, alguma
mobilidade social foram impiedosamente desmontados, a começar da escola
pública. A urbanização acelerada concentrou multidões, enquanto a
desorganização do mercado de trabalho multiplicava excluídos. Tornado refém
do sistema financeiro, o Estado nacional deixou de cumprir funções
estruturantes essenciais. A fronteira agrícola foi fechada, estabelecendo-se
nas áreas de ocupação recente uma estrutura fundiária ainda mais concentrada
que a das áreas de ocupação secular. Nessa sociedade urbanizada e estagnada,
os meios de comunicação de massas tornaram-se a principal instituição
difusora de desejos e valores, inoculando diariamente, maciçamente,
irresponsavelmente uma necessidade de consumo que não pode ser atendida.

Todos esses processos estão aí, a nos desafiar, exigindo de nós um esforço
de análise talvez mais árduo do aquele realizado pelas gerações dos nossos
mestres. Ainda não sabemos bem até que ponto tais processos alteraram
definitivamente as condições sociológicas da nossa existência, e em que
direção. Não temos uma teoria do Brasil contemporâneo. Estamos em vôo cego.

PS.: Pertence a esse novo contexto de desmonte cultural do Brasil a
informação de que a Universidade de Brasília começou a fotografar os
candidatos, no ato de inscrição, para que uma comissão – será uma comissão
acadêmica? – possa decidir quem entra e quem não entra, conforme o regime de
cotas raciais. A exata gradação da cor da pele de cada um será examinada e
julgada. É um arianismo às avessas, que será lembrado como uma das decisões
mais vergonhosas já tomadas por uma instituição brasileira de ensino.



César Benjamin é autor de A Opção Brasileira (Contraponto, 1998, nona
edição) e de Bom Combate (Contraponto, 2004).



*Racismo não*

César Benjamin (Setembro de 2002)

Caros Amigos publicou há três meses um artigo em que eu me posicionava
contra a adoção de normas que criem condições diferenciadas de acesso a
empregos e serviços públicos de acordo com a cor da pele, ou a "raça", de
cada um. No número seguinte, coerentemente, a revista publicou uma defesa da
posição oposta, assinada por Sueli Carneiro. Como muitos, ela considera que
tais normas são uma forma legítima e necessária de estimular maior presença
de negros – obviamente, algo desejável – nessas instituições. Eu não tinha,
nem tenho, interesse em esticar o assunto, cada réplica provocando uma
tréplica e assim sucessivamente, como se a busca da última palavra ou o
grito mais estridente concedessem razão a alguém. Fiquei satisfeito ao saber
que ambos os textos estavam sendo reproduzidos para debate em escolas e
grupos. Para mim, mesmo com a desvantagem de ter escrito primeiro, estava
tudo de bom tamanho. Meus artigos seguintes versaram sobre temas bem
diferentes.

Houve depois diversas cartas, algumas bastante agressivas: eu só podia ser
um branquinho folgado, que não teve de fazer força para concluir a faculdade
(nunca concluí nenhuma); garboso com meu doutorado (que não tenho), ocupo
comodamente uma cátedra (quem me dera...) e sou contra as cotas porque tenho
medo da concorrência de gente mais esperta, que começaria a chegar. As
pessoas que escreveram isso, e sandices afins, não me conhecem. Não
obstante, apresentam-se como campeãs na luta contra preconceitos.

Novos artigos também continuaram a chegar. Mais dois saem nesta edição. O
nível é outro, mas a tentação da desqualificação permanece pulsante. O
melhor deles, de Sueli Carneiro, já publicado, reitera que César Benjamin
"deixa deliberadamente de fora" os dados relevantes, "passa intencionalmente
por cima" dos processos históricos, "ignora solenemente" a concentração de
negros em favelas; diz que a oposição aos negros é "aguerrida", a negação de
que o racismo seja uma característica central da nossa sociedade é
"patológica", a recusa é "intransigente", a defesa de outras propostas é
"maníaca", e assim por diante. Como se vê, minha honestidade intelectual
fica por um fio, para dizer o mínimo; surgem dúvidas também sobre minha
sanidade mental. Samuel Aarão Reis coloca entre aspas argumentos ridículos,
fabricados sob medida para serem demolidos, induzindo o leitor a pensar que
eu os usei. E também radicaliza: corro "o risco de passar de um lado para
outro na luta política". Desonesto, louco e direitista, eis o triste fim que
me espera. Quem diria...

Por tudo isso, e a pedido de Caros Amigos, volto ao assunto, creio
(novamente) que pela última vez.

Os dados a que Sueli se refere, e que todos usam, são um conjunto de
estatísticas que mostram que, na sociedade brasileira, os subgrupos formados
por "brancos", de um lado, e "negros", de outro, apresentam discrepâncias
significativas em indicadores representativos da qualidade de vida, como por
exemplo níveis de renda. Esses números e percentagens, produzidos em grande
quantidade nos últimos anos, têm sido, de longe, o principal ponto de apoio
para os que pretendem demonstrar a centralidade da "questão racial" em nosso
país. Como todos os números, estes também transmitem com facilidade uma
imagem de precisão, objetividade e realismo que torna quase supérflua
qualquer discussão. Não são – ou não parecem ser – opiniões; são – ou
parecem ser – um reflexo objetivo do real. Por isso, segundo Sueli, eu
preciso omiti-los "deliberadamente". Minha posição não pode conviver com
eles, como o Super-Homem não pode conviver com a kriptonita. Samuel Aarão
Reis repete igual procedimento, que é mais ou menos geral nesse debate,
multiplicando os números como Cristo multiplicou os pães. Marco Frenette,
embora os exponha menos, remete-se a eles como pano de fundo de toda a sua
argumentação sobre como é o "Brasil real".

O fascínio de Sueli, Samuel e Marco pelo poder demonstrativo desses dados é
muito comum entre pessoas que, independentemente de serem bem formadas em
outras áreas, não conhecem estatística por dentro. Ignoram sua imensa
maleabilidade. Os números, que tanto valorizam, em primeiro lugar são
inconsistentes, seja pelos vícios presentes em sua construção, seja pelo mau
uso que deles se faz. Em segundo, são irrelevantes para o tema em debate.
Pois o conteúdo de verdade que revelam não permite a conclusão a que se
chega. Vamos por partes.

Todos sabemos que o Brasil apresenta índices de concentração muito altos
(foi este o objeto de um de meus artigos recentes em Caros Amigos). Podemos
estimar, um pouco grosseiramente, que 1 por cento da população controla
cerca de 50 por cento da renda e da riqueza. Todos também sabemos que esse
ínfimo grupo dos muito ricos é basicamente formado por brancos. Logo, sempre
que dividirmos nossa sociedade em "brancos" e "negros" (divisão muito
imprecisa e confusa, quando se leva em conta a população como um todo), essa
minoria de muito ricos puxará para cima todas as médias do primeiro grupo. O
resultado final mostrará um subconjunto "branco" homogêneo e remediado,
quando na realidade ele é imensamente heterogêneo e formado por uma clara
maioria de pobres, cujos indicadores não são diferentes daqueles encontrados
para as populações de outras cores. Médias devem ser usadas com muita
prudência, pois às vezes escondem mais do que mostram e induzem a falsas
conclusões. Para advertir os alunos sobre isso, é comum os professores de
estatística repetirem uma velha brincadeira: "Se você colocar a cabeça
dentro da geladeira e os pés dentro do forno, na média seu corpo terá uma
temperatura muito agradável".

Em uma sociedade tão desigual como a nossa, é facílimo construir subgrupos
cujos indicadores estatísticos estejam abaixo da média. Sueli, Samuel e
Marco referem-se a subgrupos construídos a partir do critério da cor da
pele. Note-se que o critério está presente antes de iniciar-se a pesquisa
empírica, cujos objetivos – demonstrar o nosso racismo – foram estabelecidos
de antemão. São eles que determinam quais números vão ser procurados (e,
evidentemente, encontrados). Não é verdade, pois, que as conclusões decorram
dos números; na verdade, elas geram os números que serão usados para
sustentá-las. Sua produção é uma maneira de conceder bases empíricas a uma
dada visão da sociedade. Na mesma busca por legitimar-se, enfoques
diferentes podem encontrar – e, de fato, encontram – dados diferentes,
simplesmente porque os procuram de forma diferente. Por isso, devemos sempre
admitir que o pensamento comanda os números, e não o contrário, o que exige,
neste como nos demais casos, manter acesa uma visão crítica sobre eles. Um
pouco mais cínico e direto, Churchill dizia: "Só devemos acreditar em
estatísticas que nós mesmos fabricamos". (Curiosamente, o esforço dos
racistas europeus para "demonstrar objetivamente" a inferioridade dos negros
também se baseou na fabricação de estatísticas. A mais recente tentativa
nesse sentido foi o livro The Bell Curve, um grosso volume publicado nos
Estados Unidos, cheio de números.)

Não estamos diante nem de provas irrefutáveis da "verdade" nem de
manipulações geradoras de "mentira". Outros critérios, igualmente possíveis,
gerariam outros subgrupos prejudicados na sociedade brasileira, sem relação
com a questão racial. Nas regiões Norte e Nordeste (onde, excetuando-se
Maranhão e Bahia, a presença negra não é muito significativa) estão os
piores indicadores sociais do Brasil, que poderiam fazer a festa de quem
quisesse falar de pobreza minimizando os problemas dos negros. Também
poderíamos montar subgrupos fragilizados juntando dados, por exemplo, sobre
moradores de municípios com menos de 10.000 habitantes, trabalhadores rurais
sem terra, minifundistas de todo o país, desempregados e subempregados,
idosos, migrantes, trabalhadores manuais de modo geral – e tantos outros
grupos quantos a nossa imaginação conceber. Se o racismo fosse o motor da
exclusão, apenas o recorte dado pela cor da pele geraria subgrupos
desiguais, o que não acontece. A maioria de pobres no Sul é branca; no
Centro-Oeste e no Norte, de ascendência indígena nítida e recente; na maior
parte dos Estados nordestinos, também de ascendência indígena, porém mais
misturada; no Rio de Janeiro, na Bahia e no Maranhão, é negra. Em todas as
regiões encontramos todas as cores e, quase sempre, uma enorme mistura, que
torna o critério da cor, além de indesejável, muito confuso.

A importância que meus interlocutores dão aos seus números contrasta
fortemente com a forma imprecisa como os utilizam. Para Sueli, os negros são
"45 por cento da população do país" (o que é claramente absurdo); para Marco
Frenette, eles "oscilam entre 35 e 45 por cento", pois ele reconhece que
tudo depende "da estatística e do critério da determinação de cor
utilizados". Para Sueli, "65 por cento dos pobres e 70 por cento dos
indigentes são pessoas negras"; para Samuel, entre as famílias com renda de
até meio salário mínimo (onde estão, evidentemente, os pobres e indigentes),
"30 por cento são negras". Em seguida, o próprio Samuel passa a referir-se a
"negros e pardos", como se isso não alterasse completamente o universo
abrangido. Pessoas que defendem as mesmas posições e usam as mesmas fontes
apresentam números disparatados e incoerentes, e pretendem, com eles, fechar
o debate.

Sueli e Samuel agregam remissões ao processo histórico de formação de nossa
sociedade. Com mais razão em alguns casos (como na importante questão da
escravidão), com menos em outros, com nenhuma em outros mais, defendem a
política de cotas lembrando a antiga exclusão social, cultural e política
dos negros. Mas, por que só dos negros, se essa exclusão é uma marca geral
da nossa história e atinge a grande maioria dos brasileiros? Os povos
indígenas, por exemplo, eram donos destas terras há milhares de anos e
somavam pelo menos 10 milhões de indivíduos em 1500; hoje, são 300.000. Por
que esquecê-los? Por causa da cor da pele? Quanto à restrição da
participação política dos negros na República Velha, também citada por
Sueli, basta lembrar que nessa época os brasileiros aptos a votar
correspondiam a apenas 4 por cento da população total; durante muito tempo o
voto no Brasil foi censitário, associado a determinada renda; além de todos
os pobres, também todas as mulheres estavam excluídas desse direito até a
década de 1930, por força de lei. Quanto à "falta de qualquer política de
integração social da massa escrava ‘liberta’", é a mesma eterna falta de
política de integração do povo brasileiro nos benefícios do desenvolvimento;
no século 20, por exemplo, expulsamos do campo milhões de famílias, que,
independentemente de sua cor, vieram (e continuam vindo) para as cidades
também sem nenhuma compensação.

Se as cotas forem só para negros, é inescapável admitir que estamos adotando
um critério racial, embora todos aceitem que, no caso da espécie humana,
raças não existem. Se as cotas forem estendidas a todos os subgrupos
igualmente prejudicados – único desdobramento lógico e coerente da proposta
–, pior a emenda do que o soneto. Pois, assim agindo, o Brasil decretaria
sua própria extinção, passando a reconhecer-se como um ajuntamento de grupos
subnacionais, que podem ser recortados quase até o infinito. Abandonaríamos
o conceito de povo brasileiro. Deixaríamos de ser uma nação. Sem projeto
coletivo, seríamos facilmente expulsos da história. Voltarei a isso adiante.

É claro que a questão da cor, como muitas outras, agrega especificidades que
precisam ser conhecidas, debatidas e trabalhadas em qualquer tentativa de
descrição histórica e sociológica do Brasil. Porém, o considerável esforço
feito nesse sentido nos últimos anos – que tem contado com fontes de
financiamento externas bastante generosas, oriundas especialmente dos
Estados Unidos – tem gerado, o mais das vezes, uma sociologia maniqueísta
apoiada em estatísticas de má qualidade. No lugar do sistema capitalista,
entram os "brancos"; no lugar da exploração do trabalho e das desigualdades
sociais, entra uma "índole racista"; no lugar da dependência externa, fica o
silêncio; no lugar de revolucionar a sociedade e as instituições, pedem-se
cotas. Até a educação pública, universal e gratuita passa a ser considerada
uma utopia inalcançável, sendo como tal, na prática, abandonada. Nenhum dos
três artigos faz qualquer referência, direta ou indireta, às estruturas do
capitalismo periférico e dependente, que são determinantes dos nossos
grandes problemas (são essas estruturas, aliás, que explicam tanto a
implantação como o prolongamento da escravidão em nosso passado).

Como pode esse pensamento apresentar-se como radical? A resposta é simples:
pela construção de uma identidade reativa. Trata-se de um procedimento muito
comum dentro da esquerda. Para nos diferenciar do mito do brasileiro
pacífico e cordial, por exemplo, freqüentemente inventamos o contramito do
brasileiro violento e sanguinário; respondemos ao mito do Brasil grande,
caro ao regime militar, jogando fora o conceito de nação; o mito da ausência
de racismo encontrou sua resposta no contramito de uma sociedade essencial e
visceralmente racista. Constitui-se assim um olhar carregado de negatividade
– pois as identidades reativas são, por definição, negativas. A
negatividade, por sua vez, se apresenta como radicalidade.

Esse círculo de ferro interdita qualquer aproximação amorosa com o Brasil.
Se elogiamos a mistura, somos hipócritas, pois, como diz Marco Frenette,
estamos escondendo "emoções e sentimentos inconfessáveis"; se praticamos a
convivência e nos misturamos de fato, ainda segundo Frenette, "é pela
necessidade imposta pela vida miserável". Embora nenhum dos três autores
tenha dito isso, já ouvi muitas vezes que a separação entre brancos e pretos
nos Estados Unidos, muito mais nítida, mostra que lá as relações são mais
honestas. Chegamos assim onde sempre nos leva o mundo dos pastiches
ideológicos: o que é bom (neste caso, elogio e prática da mistura) é ruim
(hipocrisia e necessidade), e o que é ruim (separação entre as pessoas) é
bom (honestidade).

Dividir o Brasil em negros e brancos é um delírio, pois a grande maioria da
nossa população não é uma coisa nem outra. Tratar brancos como privilegiados
e opressores é um desrespeito a milhões de pessoas pobres e trabalhadoras.
Negar o caráter essencialmente mestiço do nosso povo e da nossa cultura é
uma cegueira. Todos os estudos demonstram que o povo brasileiro é o mais
mestiço do mundo, constituído por uma infinita gradação de cores e tipos,
sendo cada geração mais misturada que a anterior. Essa mestiçagem, além de
constitutiva dos nossos corpos, está presente em nossa comida, nossa língua,
nossas artes, nossas músicas e danças, nossas festas, nossas formas de
religiosidade (inclusive a católica, de matriz ibérica mas cheia de
sincretismo), nossa literatura, nossa identidade nacional, nossas maneiras
de ver o mundo, nosso jeito de praticar esportes, nossas lendas e mitos.
Tudo isso tem de ser esquecido, negado ou desmoralizado, pois as qualidades
são o terreno da mistificação. O racismo foi provado com quantidades,
números, e os números não mentem jamais. Mestiçagem é apenas discurso.
Negritude é fato.

Nenhuma das duas é discurso, nenhuma é fato. Estamos diante de duas
propostas para o Brasil, feitas aliás em um momento decisivo de nossa
história. Forças muito poderosas, internas e externas, atuam ativamente para
desconstruir a idéia de povo brasileiro, tendo em vista consolidar a posição
do Brasil como um espaço de fluxos para o capital internacional. Para
escapar desse destino, ainda temos alguns trunfos: um amplo espaço
geográfico, recursos naturais abundantes, capacidade técnica, as indústrias
que constituímos. Mas o trunfo decisivo, aquele que vai decidir nossa
viabilidade ou inviabilidade histórica, é o grau de consciência que tivermos
sobre a nossa identidade coletiva, a nossa especificidade e o nosso
potencial humano. Pois isso é que nos permitirá afirmar que o Brasil tem
sentido e pode ter um projeto, pelo qual vale a pena lutar.

Nesse contexto, é desastroso o ponto de vista explicitado no artigo de
Samuel Aarão Reis. Aparecemos ali como um ajuntamento de alemães, poloneses,
italianos e outros subgrupos expatriados, todos eles praticando aqui, lado a
lado, suas culturas de origem, colocados na vizinhança de negros que desejam
praticar sua cultura africana e são reprimidos. Não, Samuel, o Brasil não é
isso. Aos trancos e barrancos, nós soubemos fazer um povo novo (e estamos
tentando fazer uma nação) a partir dos grupos humanos que o capitalismo
mercantil encontrou neste território ou transplantou para cá para constituir
uma empresa colonial – na origem, índios destribalizados, brancos
deseuropeizados e negros desafricanizados, depois gente do mundo inteiro. Um
povo filho da modernidade, como tal aberto ao futuro, ao outro e ao novo. Um
povo que ainda está no começo de sua própria história, e cuja identidade –
por sua gênese e sua trajetória – não pode basear-se em raça, religião,
vocação imperial, ódio aos outros ou vontade de isolar-se. Um povo que tem
na cultura – uma cultura de síntese – sua única razão de existir.

O que confere sentido ao Brasil, cada vez mais, e o que torna necessário e
bonito que lutemos por ele é essa experiência humana de constituição de um
povo novo, que aqui está em curso, incompleta e ameaçada. A escravidão é uma
enorme mancha do passado, e ela criou facilidades para que também aqui
aparecessem o que chamei de elementos (ou traços, ou características, ou
idéias) racistas, que não predominaram. Mas, paradoxalmente, o subproduto
mais importante da escravidão do passado – a presença de uma significativa
população negra como um dos nossos elementos constituintes – é uma enorme
dádiva para nosso presente e nosso futuro. Sem essa presença, o Brasil seria
muito menos bonito, menos alegre, menos interessante, menos cheio de
potenciais. Somos livres para decidir entre, de um lado, remoer as mazelas
daquele passado e permanecer presos às categorias ideológicas que ele criou,
sendo as "raças" a principal delas, ou, de outro lado, transformar em uma
grande promessa de futuro o encontro humano que aqui ocorreu. Nosso povo,
tal como existe, nos abre a possibilidade da segunda opção.

Há muito o que fazer. Ninguém deve ficar quietinho, como diz maldosamente a
professora Sueli. O grande êxito de constituir um povo onde havia grupos
desenraizados foi acompanhado, até aqui, do grande fracasso de não conseguir
fazer com que esse povo assuma o comando de sua nação e quebre as estruturas
que perpetuam a desigualdade interna e a dependência externa. Eis o desafio.
Que é de todos. Nenhum tipo de racismo é bem-vindo.

*César Benjamin* é autor de A Opção Brasileira (Rio de Janeiro, Editora
Contraponto, nona edição, 21-2544-0206) e integra a coordenação nacional do
Movimento Consulta Popular.


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