[CamaraDas] Eu estou me lixando para você, leitor

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  • To: Marcia Regina da Silva Azevedo <marcia.azevedo@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Wed, 13 May 2009 13:45:30 -0300

Do Globo Eu estou me lixando para você, leitor

ROBERTO DaMATTA

Se eu digo isso o jornal me despede; se um comerciante tem essa atitude, ele
vai à falência; se um pai de santo, ministro, rabino ou sacerdote repete o
mote, ele faz suas orações sozinho e não salva ninguém; se um professor
adota esse credo, ele não merece dar cursos; do mesmo modo que um médico, um
juiz, um policial, um engenheiro e um advogado deixariam morrer os doentes,
perderiam o senso de justiça, do limite e da eficiência.

Seria o fim deste nosso mundo chamado de moderno, e olha que eu estou apenas
mencionando as profissões mais estabelecidas.

Quando um membro do Parlamento, um servidor público importantíssimo e
privilegiado porque representa uma massa de desejos e esperanças de uma
região do país diz que está “se lixando para a opinião pública”, como fez o
deputado federal Sérgio Moraes, do PTB do Rio Grande do Sul, ele não fala
apenas uma triste verdade; ele revela a nossa ignorância do que é viver numa
sociedade democrática e liberal. O credo do “estou me lixando” não é
privilégio do deputado gaúcho, mas da hierarquia existente entre os que têm
poder e nós, as pessoas comuns. Ela foi dita por Sérgio Moraes, mas está
implantada no imenso vazio existente entre as formalidades - as tais
instituições e leis, que vão resolver tudo e são feitas por ideologias,
governos e decretos - e as crenças e práticas antigas que ainda comandam com
força o nosso sistema. A questão não é a de denunciar a clara arrogância do
parlamentar, o problema é tomá-la como um claro sintoma da total separação
entre o lado de lá e o de cá do balcão. Pois quando parlamentares se lixam
para a opinião pública eles perdem a consciência de que foram por ela
eleitos! Como um médico pode se lixar para um doente, um professor para um
aluno, um vendedor para seu cliente e um deputado para a opinião pública se,
em todos os casos, esses são papéis sociais complementares que existem em
total interdependência, já que ser médico implica enfermos, ensinar supõe um
aprender, e não há venda sem compra; tal como ser um representante do povo
aciona automaticamente a ideia de um representado: o próprio povo. Esse
representado cujo espírito ou índole (ou “vontade geral” como disse
Rousseau) forma o que nós, democratas e modernos, chamamos entre outras
coisas “opinião pública”, esse quarto ou quinto poder em qualquer democracia
liberal; esse sistema nebuloso que tem todos os defeitos mas que, quando
opera com liberdade, se caracteriza pela constante renovação de seus
valores. Esses valores inatingíveis como liberdade, igualdade e
fraternidade. Essas causas perdidas em perpétua busca de encarnação
institucional e política.

Não se precisa ir a Locke, a Rousseau ou a Weber para descobrir que a
legitimidade se faz justamente na relação que o sistema representativo
moderno esconde e revela. Revela-se no processo eleitoral quando os
candidatos se dizem pais, protetores ou representantes do povo, o qual, num
mercado dos candidatos, escolhe os de sua preferência. E esconde-se nas
rotinas parlamentares nas quais esse laço deve ser renovado e honrado na
busca de leis, causas e projetos que façam avançar a vida dos representados.

A menos que se reinterprete, como sempre fazemos no Brasil, o liberalismo
pelo viés aristocrático mal resolvido, vigente na sociedade, e se admita que
a investidura num cargo público conceda ao investido a propriedade deste
cargo como ocorre nas aristocracias. Nelas, a legitimidade está apenas do
lado da nobreza que, por direito divino, é definida como superior à plebe,
mas cuja obrigação seria dela “cuidar”, como tem redescoberto o nosso
populismo. A nobreza, porém, perde legitimidade quando o laço de honra, de
obrigação e de honestidade que deve marcar os seus laços com a plebe não é
levado a sério. Ou seja, quando ela faz como o deputado e se lixa para a
opinião pública. Maria Antonieta e os Luíses não se lixavam, mas davam pão e
circo para o povo. Sabiam que, entre governantes e a opinião pública deveria
haver algo mais do que descaso, insulamento político e arrogância
aristocrática.

Nas democracias, se o laço entre representantes e representados tornase
tênue, instala-se um processo de ilegitimidade. Ora, esse lixar-se para a
opinião pública revela o tamanho da crise de legitimidade que decorre da
aristocratização dos governantes, ao lado de uma sociedade redemocratizada
pela livre iniciativa, por um mercado cheio de energia e por uma moeda
estável: um único dinheiro que vale a mesma coisa para todos.

Num Brasil onde todos pagam uma enormidade de impostos e, com eles, os
salários de todos os governantes, vai ficando cada vez mais intolerável ter
câmara, parlamentos, ministérios e executivos aristocratizados com o meu, o
seu, o nosso dinheiro. Mais: vai ficando impossível verificar que é a
sociedade que trabalha para o Estado e não o justo oposto.

É duro observar uma súcia majoritariamente incompetente (com alguns
criminosos em seu meio) viver como nobres e milionários, tendo, além de
tudo, o desplante de declarar que nós, a opinião pública, nada temos com
eles.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo

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