[CamaraDas] Indicações de leitura: A Dança do universo - Marcelo Gleiser

  • From: Patricia Kelly Batista de Andrade <patriciakellyb@xxxxxxxxx>
  • To: Analistas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Tue, 8 Feb 2011 10:13:21 -0200

A quem indiquei leitura de Marcelo Gleiser ("Criação Imperfeita"), segue
loooongo, porém interessante, texto sobra a "A Dança do Universo", do mesmo
autor.
Ah, se tiverem sem tempo, armazenem aí esta mensagem em alguma pasta para
leitura posterior.
Afinal, o texto é enOOOrme e mais interessante para quem já leu (e apreciou)
algo de Gleiser, a fim de se ter um contraponto.
Compadres: este é o texto do Valdemar W. Setzer que acabou me levando a ter
curiosidade sobre a Pedagogia Waldorf de Rudolf Steiner (filosofia
desta escola que está sendo aberta aqui perto de casa), autor daquele
livrinho que mostrei em casa, no sábado. Contudo, como viram, não consegui
ultrapassar as primeiras páginas (risos).
Já  "Criação Imperfeita", e principalmente, "A Dança do Universo", foram
leituras vorazes e bem relâmpago.
Demais amigos: se conhecerem algo relacionado a Rudolf Steiner ou Pedagogia
Waldorf numa bibliografia mais interessante, por favor, indiquem, tenho sim
interesse pelo assunto ainda e uma futura licença gestante de, pelo menos, 6
meses que promete uma ano profícuo em leituras diversas (rssrsrsrsrs).
Beijos,
Pat.
---------- Mensagem encaminhada ----------
 COMENTÁRIOS SOBRE O LIVRO
*A DANÇA DO UNIVERSO*, DE MARCELO GLEISER*

Valdemar W.Setzer
*vwsetzer@xxxxxxxxxx – http://www.ime.usp.br/~vwsetzer
Campos do Jordão, 23/6/00 - versão 2.1 de 30/6/00*

Introdução
*

Acabei de ler o excelente livro de Marcelo Gleiser*, A Dança do Universo –
dos Mitos de Criação ao Big-Bang* (São Paulo: Companhia das Letras, 1997),
que há muito estava em minha lista. Recomendo-o a todas as pessoas, pois
trata-se de texto que aborda com escrita fascinante, simples e didática a
importante história da Física e da Astronomia, que também é em grande parte
a história do pensamento humano. Gleiser soube compor relatos claros sobre
os mais importantes avanços científicos nessas áreas, abrangendo a história,
interessantes aspectos biográficos de pensadores e cientistas que foram
responsáveis por esses avanços, cobrindo desde a Grécia antiga até os tempos
modernos, e uma tentativa de traçar paralelos entre as visões cosmogônicas
atuais e os antigos mitos da criação. Coloco aqui algumas das anotações que
fiz durante a leitura, que servem de comentários e críticas; creio que os
assuntos são suficientemente relevantes para torná-los públicos através de
meu "site". Tenho esperança que o autor venha a ler estas linhas,
interesse-se por comentá-las e tenha tempo para isso. Nesse caso, obviamente
comprometo-me a colocar suas opiniões ao lado destas. Aproveito também para
escrever alguns dos conceitos de minha visão de mundo, certamente não comum
e que não constam de outros artigos em meu "site".

É interessante que de há muito tenho me interessado pela história da Física
e da Astronomia, e pelo pensamento científico a elas ligado, no sentido de
conhecer esse pensamento, compreender melhor o mundo por meio dele,
localizar seus problemas, entender sua influência sobre a visão de mundo da
humanidade e buscar e desenvolver alternativas que o aperfeiçoem e ampliem.
Acho que posso localizar a origem desse interesse quando, aos 21 anos (em
1961), cursando uma disciplina de Física Moderna, vi o mundo que eu esperava
conhecer e compreender através da Física ruir no quadro-negro à minha
frente. Foi a época em que comecei a procurar possibilidades de expandir a
visão insatisfatória dada pela ciência tradicional, que havia buscado na
escola de engenharia brasileira de maior prestígio na época, na tentativa de
compreender - quem sabe, juvenilmente dominar o mundo. Dois anos depois, já
no último ano da faculdade, fui um dos que tomou uma disciplina optativa de
pós graduação sobre Mecânica Quântica, oferecida a alguns alunos de
graduação, dada por Newton Bernardes. Curiosamente, ultimamente tenho me
dedicado muito ao estudo de questões ligadas à biologia, no intuito de
desmistificar as afirmações indevidas que estão sendo feitas em torno do DNA
e do genoma, que abordarei muito sucintamente aqui, justamente devido à
visão de mundo imposta por essas afirmações: a de que os seres vivos, e o
ser humano em particular, são máquinas, com o que nunca pude concordar.
Claramente, a Biologia está nesse caminho por influência da Física, que a
precedeu nessa visão. Nesse sentido, foi muito interessante ler o capítulo
de Gleiser "O Mundo como Máquina". Esta minha volta a antigos interesses na
Física e na Astronomia representa um agradável interlúdio.

Talvez fosse interessante colocar inicialmente minha visão de mundo, a fim
de se compreender a fonte de minhas concordâncias e discordâncias em relação
às idéias de Gleiser. Em primeiro lugar, devo dizer que não tenho religião,
no sentido de confissão. Isto é, não sou adepto de nenhuma religião
estabelecida. Isso se deve ao fato de que procuro não acreditar em nada
(bem, a única coisa em que acredito é que não acredito em nada...). Com
isso, não posso admitir nem dogmas nem posições de fé. Minhas posições têm
todas o caráter de hipóteses de trabalho, sempre sujeitas a revisão. Uma de
minhas hipóteses fundamentais é a de que existem processos no universo que
não são físicos ou químicos, isto é, não sou materialista, contrariamente a
praticamente todos os cientistas modernos. Vou denominar simplesmente de
"mundo não-físico" a sede de processos não-físicos; esse mundo, como o mundo
físico, é obviamente estruturado, e em muitos casos permeia o último. Por
exemplo, plantas, animais e seres humanos têm componentes não-físicos, sendo
o mais "baixo" aquele que possibilita o fenômeno "vida", comum a esses
reinos. Mas, como veremos, parece-me claro pelo estudo da Física Moderna que
qualquer matéria deve ter uma essência não-física por detrás, isto é, o
físico seria uma espécie de "condensação" do não-físico. Assim, posso
caracterizar minha visão de mundo como *realista-monista*: para mim, a
manifestação física é real e essencial, mas por trás dela existe sempre algo
não-físico que, aliás, é sua origem. Por outro lado, por trás (ou na frente,
para nossos sentidos...) de todo o não-físico existe algo físico. Só para
ilustrar a referida necessidade, se nós não tivéssemos corpo físico não
poderíamos ter desenvolvido a auto-consciência e a liberdade, e é devido à
sua existência que podemos exercê-las.

A ciência comumente praticada hoje em dia é puramente materialista, isto é,
parte do princípio que somente existem um universo e processos físicos (e
químicos, redutíveis aos físicos; hoje em dia há até cientistas que
consideram a Biologia como um ramo da Física). Como veremos, isso restringe
enormemente seu campo de pesquisa e suas teorias.

Para mim, as religiões estabelecidas são em geral outras formas de
materialismo, por considerarem o não-físico uma pura abstração (tradição
judaica, que teve na antiguidade uma missão absolutamente essencial no
desenvolvimento da humanidade) ou darem importância indevida à manifestação
física (o que leva seus seguidores a usar roupas especiais no dia-a-dia, ou
preocuparem-se demasiado com a comida, ou necessitarem de um local físico
especial como igreja ou templo para exercerem sua religiosidade, usarem
posturas corporais para conseguirem se interiorizar e observar
supra-sensorialmente o não-físico, usarem drogas para atingir outros estados
de consciência onde possam fazer essa observação, etc.), por fazerem orações
em benefício próprio, e assim por diante. No entanto, posso dizer que tenho
religiosidade, no sentido de procurar ter uma veneração pela Natureza e pelo
ser humano, procurando em sua sabedoria infinita a manifestação de forças e
entidades não-físicas.

Em segundo lugar, minha formação e atividade acadêmicas e científicas
levam-me a querer *compreender* o universo físico e não-físico, e
expressá-los conceitualmente. O misticismo caracteriza-se por expressar o
não-físico, e procurar atingi-lo, por meio de sentimentos e não pelos
pensamentos. Assim, não me considero um místico. Admito todos os
*fatos*científicos, mas não admito muitos dos julgamentos que são
formulados
baseados nesses fatos ou em meras elocubrações teóricas. Por exemplo, dizer
que a Terra tem 5 bilhões de anos é um julgamento que não posso admitir;
esse número é baseado em extrapolações que nenhum engenheiro (minha formação
original) ousaria usar em seus projetos, e não leva em conta que o universo
e a Terra tiveram outrora condições - físicas e não-físicas - diferentes das
de hoje. Parece-me muita pretensão achar que as leis físicas que podemos
constatar hoje foram sempre as mesmas, e o são fora de nossas condições, por
exemplo, nas estrelas - apesar do seu espectro luminoso revelar a existência
dos mesmos elementos aqui existentes. Quem sabe a produção desse espectro
"terreniza" a radiação que vem dessas estrelas? Com isso, não posso admitir
grande parte das teorias cosmogônicas modernas.

Em terceiro lugar, é preciso esclarecer que, ao admitir como hipótese a
existência de processos não-físicos, e admitir todos os fatos científicos,
minha visão de mundo torna-se um superconjunto próprio da visão científica
materialista corrente. Isto é, admito como válido tudo o que um cientista
clássico materialista puder mostrar como fato científico, mas ele, como
materialista, não pode admitir as minhas hipóteses e observações sobre o
mundo não-físico. É curioso que esse tipo de cientista em geral diz: "só
acredito no que vejo", mas ele quer ver ou compreender apenas as
manifestações físicas, colocando-se dentro de um verdadeiro poço mental. Em
particular, ele admite muita coisa que não vê, pois a ciência hoje é baseada
fortemente em instrumentos que influenciam as experiências, não só no nível
quântico, mas também pelo fato do instrumento ser construído sempre dentro
de uma determinada teoria. Portanto, o que procuro é uma expansão do
pensamento e da atividade científicos.

Em quarto lugar, minhas hipóteses da existência de processos e de mundos
não-fisicos derivaram inicialmente de observações interiores que qualquer um
pode fazer, usando uma Lógica aristotélica para concluir pela existência
daqueles processos. Por falar em Aristóteles, ele mesmo observa, em *Sobre a
Alma*, que o ser humano é capaz de entrar em contato com verdades
absolutamente objetivas (isto é, independentes do observador) e eternas,
como os conceitos matemáticos (o de circunferência, por exemplo). Com isso,
ele concluiu, usando sua Lógica terrena, que devemos ter dentro de nós uma
"alma" perecível (onde estão, por exemplo, nossos gostos e instintos
individuais, que sumirão com nossa morte) e uma "alma" eterna, com a qual
entramos em contato com aquelas verdades eternas. Isso é uma elocubração
mental válida, mas há algo muito mais simples para cada um vivenciar dentro
de si próprio. Sugiro ao leitor uma *experiência mental*, como chamou
Gleiser as várias "Gedankenexperimente" que ele propôs; só que a minha não é
de formulação de abstrações. O leitor deve fechar os olhos, procurando criar
uma calma interior, sem ter sua atenção e pensamento atraídos por ruídos ou
preocupações, e pensar em 2 números, por exemplo de 0 a 9. Em seguida, *
escolha* um desses dois e imagine-o por alguns instantes como que projetado
por um mostrador. É preciso fazer um esforço interior para concentrar o
pensamento, nem que seja por alguns momentos, na imagem desse mostrador com
o número escolhido. Pois bem, é uma vivência interior que qualquer um pode
ter de que não há nada, absolutamente nada que imponha a escolha de um ou
outro número. Se o leitor reconhecer que prefere um deles, pois é o número
inicial de seu telefone ou residência, pode decidir escolher o outro. Não
adianta vir uma filósofa, psicóloga, pesquisadora de cognição,
neurofisióloga evolucionista ou outra pessoa qualquer dizer que há algo
dentro de nosso cérebro que impõe a escolha - afinal, não será possível a
essa cientista e nem a qualquer outro nos mostrar o fato científico que
comprove essa sua afirmação. Não é essa a *vivência* interior que temos.
Essa vivência é de absoluta *liberdade* na escolha de um dos dois números e
de *auto-determinação* no sentido de concentrar o pensamento no mostrador.
Ora, *liberdade* não pode advir de leis físicas ou da matéria. Muitos
cientistas diriam que o processo é aleatório, isto é, a escolha foi
aleatória e não desejada, imposta por nós mesmos. Mas não é essa a nossa
vivência interior: quem acha que seu comportamento é aleatório nessa
experiência e na vida comum? Por outro lado, não conseguimos imaginar
nenhuma máquina concreta ou abstrata que seja auto-determinada. Máquinas
podem ser deterministas (como os computadores digitais, fonte essencial de
sua utilidade, senão não poderíamos confiar em seus resultados como
processadores de símbolos) ou aleatórias. No primeiro caso, seguem sempre um
programa previamente determinado; elas não podem auto-determinar sua próxima
instrução, estão condenadas a seguir o programa inexoravelmente. No segundo
caso, o resultado é imprevisível, sendo que em alguns casos ele pertence a
um conjunto finito de resultados ou estado possíveis (quando a máquina é
digital).

Em quinto lugar, qualquer visão de mundo estritamente materialista cava um
fosso intransponível em relação à história da humanidade e aos nossos
antepassados longínquos, o que me desagrada sobremaneira. Como muito bem
retratam os mitos do primeiro capítulo do livro de Gleiser, a cosmogonia e a
visão de mundo antiga eram essencialmente baseadas numa visão
espiritualista, isto é, não-física, do mundo. Com uma visão espiritualista
moderna e transmitida por conceitos para nossa compreensão, podemos entender
nossos antepassados, sua maneira de ser, sua visão de mundo e seu
comportamento. A história do ponto de vista materialista é absolutamente
aleijada e insatisfatória, deixando-nos soltos no ar, sem ligação com ela.

Mas não há só o fosso com relação ao nosso passado histórico, há também o
fosso que separa, da moral, qualquer julgamento estritamente baseado na
ciência moderna. De fato, da matéria ou da animalidade não se pode derivar
impulsos morais, que considero absolutamente essenciais para o
desenvolvimento humano individual e social.

Em sexto lugar, devo deixar bem claro que admiro profundamente a evolução do
pensamento e das conquistas materiais da ciência clássica e da sua filha
predileta, a técnica (ou tecnologia, para usar o anglicismo em voga).
Parece-me que a evolução que ela causou no pensamento e na visão de mundo
foi essencial para o ser humano moderno adquirir a consciência e a liberdade
que ele tem hoje em dia. Por outro lado, só posso estar profundamente
agradecido à tecnologia; por exemplo, foi graças a ela que uma de minhas
artérias coronarianas principais, que em 1993 estava entupida em 90% e me
levou a um enfarto, pôde ser "desentupida", com duas angioplastias,
tornando-me uma pessoa normal pelo menos quanto a esse aspecto. Além disso,
enxergo bem pois os meus dois cristalinos cataratados foram substituídos por
lentes de plástico, uma técnica que tem menos de 20 anos. Mas não é por isso
tudo que deixo de reconhecer que chegamos a um momento em que os paradigmas
da ciência materialista devem ser ampliados, para abranger também a pesquisa
do não-físico e de suas manifestações.

Finalmente, em sétimo lugar, devo confessar que, apesar de enunciar muitas
idéias próprias, encontro minha inspiração na Antroposofia de Rudolf
Steiner, que ele desenvolveu no primeiro quarto do século XX (veja-se, por
exemplo, http://www.sab.org.br). Foi nela que encontrei um edifício
conceitual moderno que abrangesse o não-físico, tirando-me do poço do
materialismo, sem que eu precisasse cair em crenças, fé, dogmas ou
obscurantismo, que não combinariam com minhas tendências científicas.
Senti-me atraído também por uma visão de mundo que não fica só na filosofia,
mas chega à prática, como o demonstram suas educação ("Pedagogia Waldorf"),
educação especial ("Pedagogia Curativa"), medicina, farmacêutica,
agricultura ("Biodinâmica"), arquitetura ("Orgânica"), organização social
("Trimembração do Organismo Social" e "Pedagogia Social"), novas artes (como
a "Euritmia"), ciência qualitativa (com vários resultados práticos, como o
"Método da Gota" de Theodor Schwenk, descrito por exemplo em *Bewegungsformen
des Wassers/Formes de L’eau en Mouvement*, ed. bilíngüe, Stuttgart: Freies
Geistesleben, 1967/Paris: Triades, 1968 e em *Sensitive Chaos - The Creation
of Flowing Forms in Water and Air*, Hudson: Anthroposophic Press), etc.

Mas já escrevi demais sobre algumas de minhas idéias e posições. Vamos
finalmente aos comentários sobre o livro de Gleiser. Obviamente, vou
comentar apenas alguns trechos, dentre aqueles que me motivaram a escrever
anotações durante a leitura. Usarei aqui a seguinte técnica: transcreverei
vários trechos do livro, da edição citada acima, colocando-os entre
colchetes, seguindo cada um com meus comentários. Quando Gleiser refere-se a
algum autor, ele vai entre chaves.
*

Comentários sobre o livro
*

[Pg. 20. Na esperança de que catástrofes naturais tais como vulcões,
tempestades ou furacões não destruíssem suas casas e plantações, ..., várias
culturas atribuíram aspectos divinos à Natureza.]

Essa é uma típica interpretação, muito em voga desde há tempos, de que a
divindade foi inventada devido ao medo. Só que há uma outra interpretação
possível: existem seres que não têm corpos físicos (e portanto poderiam ser
considerados como "divinos"), e a humanidade tinha a percepção direta deles
em tempos muito remotos. Nessa época, a percepção sensorial física era ainda
incipiente - daí a vivência, na remota Índia pré-histórica, de que o mundo
físico era "maia", uma ilusão, isto é, a percepção do mundo não-físico era
mais clara. Os seres humanos foram se materializando cada vez mais, ganhando
maior percepção sensorial, capacidade de raciocinar e perdendo a percepção
dos mundos não-físicos. Quando essa perda já era generalizada na população,
durante ainda muito tempo continuou cultivada nos chamados "Centros de
Mistérios" pelos "iniciados", pessoas que se submetiam a um treinamento e
aperfeiçoamento interiores intensos antes de poderem chegar àquela
percepção. Esse treinamento era necessário pois o primeiro encontro
supra-sensorial dava-se com a própria essência não-física do discípulo, onde
se encontravam todas as suas aberrações anímicas, como egoísmo, soberba,
orgulho, cobiça, etc. Nessa época, havia um consenso de que sem esse
treinamento, aquela percepção podia ser muito prejudicial à pessoa e à
sociedade, de modo que ele e as próprias percepções dos iniciados eram
guardados em segredo, e abertos somente a poucos escolhidos, daí seu nome.
Mistérios famosos foram, por exemplo, os de Eleusis e de Éfeso (este,
queimado e destruído na noite em que nasceu Alexandre Magno), mas havia-os
em muitas regiões do mundo, entre os druídas, os egípcios, na Pérsia, etc.
Entre vários desses iniciados podemos citar com segurança Pitágoras e
Platão, como claramente transparece até pelas citações do livro de Gleiser
(em Platão, especialmente no diálogo "Timaios"). Mas certamente Aristóteles
não foi um deles, como muito bem mostra sua lógica "terrena". Com a perda
gradativa dessa percepção supra-sensorial, muitos povos ficaram apenas nas
tradições, em remotas lembranças daquelas épocas, ou em mitos que foram
transmitidos muitas vezes pelos iniciados nos Mistérios. Tanto essas
lembranças como os mitos sempre consistem de *imagens*, de parábolas, pois
até a época da filosofia e da ciência gregas não havia a possibilidade de se
formular os pensamentos em conceitos. Creio que o primeiro que formulou uma
parábola e a explicou conceitualmente foi o Cristo (ver a Parábola do
Semeador, p.ex. Mat. 13:10), e isso somente para seus discípulos pois, como
ele disse, "a vós é dado conhecer", isto é, podiam compreender conceitos,
devido ao desenvolvimento que ele lhes proporcionara, o que não acontecia
com o resto da população. Hoje em dia toda a humanidade evoluída pode e deve
exprimir parcialmente seu conhecimento em conceitos (outras formas de
expressão são a arte e o relacionamento social). Podemos conceituar os mitos
e as parábolas, entendendo o que significavam, mas para isso temos que
desenvolver ou adotar uma conceituação do não-físico. Mais sobre os mitos no
item referente à pg. 396.

Enfim, pode-se admitir como hipótese que a atribuição de "aspectos divinos à
natureza" não fosse uma invenção devida a superstições, e sim a uma visão
supra-sensorial direta - se bem que em tempos mais recentes, quando essa
visão desapareceu (uma necessidade da evolução da humanidade), obviamente
superstições substituíram tradições remotas. Mas essa hipótese obviamente
requer a hipótese anterior de que existem processos não-físicos. No livro de
Gleiser, transparece um respeito pelas religiões, e também a hipótese de que
a Criação poderia ter sido um ato divino. No entanto, parece-me que a
posição dele, comum entre muitos cientistas, é de que, após a Criação, a
divindade não mais atua (se é que ela continua a existir...). De qualquer
modo, esses nossos antepassados foram certamente muito sábios, pois aqui
estamos nós. A nossa sabedoria atual, baseada na ciência corrente, colocou a
humanidade em perigo, não só o nuclear como apontado por Gleiser (calcula-se
que hoje ainda existe 30% de chance de um holocausto nuclear), mas também
com relação à poluição e novas doenças fisiológicas e psicológicas.

[Pg. 22. Se assumirmos que "algo" criou "tudo", caímos em uma regressão
infinita: quem criou o algo que criou o tudo? Como podemos entender o que
existia antes de "tudo" existir? Se dissermos que "nada" existia antes de
"tudo", estamos assumindo a existência de "nada", o que implicitamente
assume a existência de um "tudo" que lhe é contrário.]

Parece-me que o aparecimento da matéria física não tem sentido do ponto de
vista puramente material (aí incluindo-se a energia física). Aliás, esse
deveria ser talvez o ponto de partida principal para se assumir a hipótese
espiritualista de que devem haver processos não-físicos. Obviamente, a
hipótese mais comum hoje, a do "Big-Bang", requer a criação da massa ou da
energia original. Note-se que o "modelo do estado padrão", exposto
inicialmente na pg. 369, e que evita o "Big-Bang", assume uma criação ínfima
("três átomos de hidrogênio por metro cúbico a cada milhão de anos"), mas
que continua sendo criação, como os autores reconhecem (fim da pg. 370).

Mas o importante aqui é que Gleiser está sempre pensando materialmente. Para
ele, o "tudo" criado é material. Para mim, faz muito mais sentido admitir
que a criação inicial não foi material, e sim de "algo" não físico. A
matéria física seria uma condensação, ocorrida gradualmente, da "substância"
não-física - o que transparece no estudo dos átomos e das "partículas"
atômicas, como discorrerei mais adiante, lançando um pouco de luz sobre como
o não físico pode atuar no físico e transformar-se neste.

[Pg. 56. {Sobre as concepções pitagóricas.} Ao girar em torno da Terra em
suas órbitas, o Sol e os planetas gerariam uma melodia cósmica, o sistema
solar se transformando em um gigantesco instrumento que ressonaria a música
divina, a harmonia das esferas celestes.]

Exato, a "Música das Esferas" era considerada como um "som" divino, isto é,
não físico. A sensação dessa percepção supra-sensorial era análoga à que
temos quando ouvimos tons físicos. Portanto, ela não tem *nada* a ver
diretamente com o sistema planetário físico! A propósito, é interessante
notar que, dado o conhecimento científico que se tem hoje, pode-se fazer
perfeitamente a hipótese de que as sensações que sentimos não são físicas.
Não confundi-las com a percepção sensorial. Afinal, por exemplo, a imagem se
forma invertida na retina, no efeito de "câmera escura". Mas já no nervo
óptico não se encontra mais a imagem, e sim ruído sendo transmitido. Chegam
impulsos elétricos aparentemente aleatórios ao cérebro. Como aí se forma a
representação mental ("Vorstellung") e depois a *sensação* da imagem? Não
adianta apontar para áreas do cérebro que estão mais ativas nesse processo
do que outras áreas, como revelado por tomografias e ressonância magnética:
isso não diz absolutamente nada sobre a origem das sensações (quanto mais
sentimentos, pensamentos e impulsos de vontade…).

[Pg. 192. No universo infinito de Newton, a razão era a única ponte possível
até o Divino.]

Quanto à razão ou, mais amplamente, o pensamento ser a ponte correta para os
conceitos e o mundo platônico (real) das idéias, onde estão as essências das
coisas, estou totalmente de acordo. Ver as considerações sobre a pg. 193.

É muito interessante notar como Newton e Descartes claramente acreditavam
ainda na existência da divindade, e tentavam revelar com sua ciência
verdades sobre a sua atuação. Isso absolutamente não impediu que atuassem
como cientistas. Em algum ponto, abandonou-se totalmente a hipótese de que
existem processos não-físicos no universo (físico e não-físico), deixando a
ciência de tentar revelar uma "verdade divina". Mas vejamos o que vem em
seguida.

[Pg. 193. Será que essa separação entre ciência e religião é realmente
necessária? Sem dúvida. Ela serve como proteção ao subjetivismo na prática
científica, garantindo que a ciência continuará a ser uma linguagem
universal numa comunidade extremamente diversificada. O discurso científico
é, e deve ser, livre de qualquer conotação teológica. Invocar religião para
cobrir falhas do nosso conhecimento é, a meu ver, uma atitude anticientífica
... Em outras palavras, não é o "Deus tapa-buracos", invocando toda vez que
atingimos os limites das explicações científicas, que faz com que a religião
tenha um papel dentro do contexto científico. Se queremos encontrar uma
lugar para a religião na ciência moderna, devemos examinar as motivações
subjetivas de cada cientista, e não o produto final de suas pesquisas.]

Aqui Gleiser revela um desconhecimento de correntes que abordam o não-físico
de uma maneira não-religiosa. Uma busca com algum esforço a partir de meu
"site" poderá levar a um artigo em que mostro como se pode conceituar o não
físico na constituição humana sem apelar para dogmas ou fé religiosos, e sem
subjetivismos. Não se trata absolutamente de tapar buracos, e muito menos
com uma noção perdida do que vem a ser "Deus". Essa palavra não será
encontrada em meus argumentos, pois não há compreensão clara sobre o que ela
significa, e eu teria que discorrer muitíssimo até poder chegar a ela; por
outro lado, como já disse, ela se refere em geral a uma pura abstração, sem
realidade.

Como eu disse em minha introdução, trata-se de *ampliar* a pesquisa
científica para campos absolutamente essenciais para uma *compreensão* de
fenômenos que podemos observar até fisicamente. Conjeturo que, sem essa
ampliação, *jamais* chegar-se-á a compreender a matéria (que, por sinal, não
tem sentido do ponto de vista estritamente material, como muito bem mostra a
ciência moderna - mais sobre isso nos comentários sobre a pg. 252 e
seguintes), a vida, o crescimento e a regeneração nos seres vivos, o nosso
sono, nossos sentimentos, pensamentos, vontade, memória (não há nenhuma
máquina que se "esqueça" e depois espontaneamente se "lembre", sem que isso
tudo esteja previamente programado) e auto-consciência. É absolutamente
fundamental hoje em dia as pessoas conscientizarem-se de que o tipo de
pesquisa que se faz na ciência tradicional é totalmente parcial, unilateral,
por que não - preconceituoso, por ignorar, por que não - abominar, hipóteses
e fenômenos não-físicos. Vou dar dois exemplos. Devido ao poço materialista
em que se meteu a ciência moderna, desde Newton e Descartes (que considerava
como parte de seu Método encarar os seres vivos como máquinas), parte-se
hoje da hipótese que o pensamento é gerado pelos neurônios - e não se chega
a quase nada. Uma outra hipótese, que levaria a pesquisas muito diferentes e
mais amplas, é a de que o pensamento não é físico, e a atividade neuronal é
conseqüência e não a causa do pensar. O cérebro físico talvez seja
necessário para nos conscientizarmos do nosso pensamento, e portanto
controlarmo-lo. Afinal, como mostrei na introdução, qualquer um pode ter a
vivência de poder auto-determinar livremente seu próximo pensamento, o que
não se pode atribuir a nenhuma máquina, abstrata ou concreta. Um outro
exemplo é o papel do DNA nos seres vivos. A visão mecanicista está
considerando, de maneira absolutamente indevida que, por exemplo, ele
determina o comportamento do organismo. No entanto, como afirma Richard
Lewontin em seu livro *The Triple Helix – Gene, Organism and
Environment*(Cambridge: Harvard Univ. Press, 2000), já mesmo a forma
dos organismos
vivos depende não só do DNA, mas do ambiente interior e exterior, e de um
"noisy development", absolutamente imprevisível. Poder-se-ia formular a
hipótese de que a forma dos seres vivos, como por exemplo a das folhas de
uma espécie de planta, a de nossas orelhas com sua simetria, etc., segue um
modelo não-físico. Isso se justifica, pois modelos não existem fisicamente,
sendo puros pensamentos, no mundo platônico das idéias. Esse mundo não está
em nossa mente, mas podemos captá-lo, "observá-lo" por meio de nossos
pensamentos (como na frase acima, da pg. 192). É esse modelo, essa idéia
que, parece-me, atua não-fisicamente na decisão de uma célula ser usada na
diferenciação dos tecidos, ou na mitose (subdivisão, necessária para o
crescimento ou para a regeneração, precedida pela replicação do DNA) ou na
apoptose (morte da célula). Note-se que na tomada de decisão não é
necessário gastar energia, o que pode resolver o problema da atuação do
não-físico no físico na construção e manutenção das formas orgânicas. A
admissão desses fatos abriria um enorme campo de pesquisa científica, sem
subjetivismos como os temidos por Gleiser. Com essa abertura, poder-se-ia
talvez concluir cientificamente que o "noisy development" é na verdade
orientado por aquilo que Goethe denominou de "tipo", um constituinte
não-físico dos organismos vivos, necessário para se compreender os processos
dos mesmos. Note-se que houve tentativas de se introduzir novos processos
que pudessem explicar as formas orgânicas e outros comportamentos dos seres
vivos, como o Campo Morfogenético de Rupert Sheldrake (*A New Science of
Life - the Hypothesis of Formative Causation*, Los Angeles: Jeremy
P.Tarcher, Inc., 1981). Mas ele não pôde ir muito longe pois continuou no
fundo do poço do materialismo: seu campo é puramente físico e uma pura
elocubração mental (daí ter sido tão criticado).

Um exemplo muito interessante da ampliação da pesquisa científica foi dado
pelo matemático inglês Lawrence Edwards. Ele investigou matematicamente as
formas dos brotos de plantas (por exemplo, os botões de rosas), descobrindo
que cada espécie tinha parâmetros próprios, se não me falha a memória usando
Geometria Projetiva. Mas não foi aí que ele saiu do que eu denominei de
"poço do materialismo" na introdução acima, e sim na descoberta que esses
parâmetros variavam em certos períodos do tempo, tendo-os correlacionado com
uma influência surpreendente que não vou citar aqui pois iria talvez irritar
o "preconceito científico" de muitos leitores. Infelizmente eu tinha um de
seus livros em inglês, mas está emprestado, de modo que não posso dar a
referência neste momento; veja-se também *Geometrie des
Lebendigen*("Geometria do Vivente", Stuttgart: Freies Geistesleben,
1986).

Em todo seu livro, Gleiser não fala do reducionismo no método científico
atual, e os problemas que ele causa. Justamente o reducionismo inaugurado
com Newton: em seu *Opticks*, mencionado por Gleiser algumas vezes, ele
confessa (Prop. II, Theor. II, Exper. 3) que a abertura no "Shut of a
Window" que usou em suas experiências era de "about one third Part of an
Inch broad", isto é, um caso totalmente particular. Se a abertura tivesse
sido um pouco maior, ele não teria obtido o verde; se fosse bem pequena,
como todos pensam que foi, ele teria obtido as cores primárias usadas em
todos os vídeos baseados em tubos de raios catódicos ("rgb" - red, green,
blue) em lugar das 7 cores do arco-íris descritas em seu tratado. Isto é,
teria concluído que a luz do Sol é composta de 3 cores! Infelizmente, do
particular nunca se chega ao geral - quem sabe por isso não temos
compreensão do que vem a ser a luz. Aliás, se Newton tivesse sido biólogo e
não astrônomo, teria descoberto o espectro complementar, isto é, no limite,
amarelo, magenta e azul, como nas impressoras coloridas (aí o dual é a tinta
escura sobre o papel branco, ao contrário do feixe de luz sobre fundo escuro
dos tubos de vídeo). Nesse caso, como descobriu Goethe, teria obtido a
dispersão de feixes de escuro... A propósito, no método científico proposto
por Goethe sempre se deve partir do geral para o particular; é interessante
que a redução ao particular nunca leva ao geral, ao todo, pois este é
perdido de vista logo de início. Foi esse o método que o levou, por exemplo,
à descoberta do osso intermaxilar nos seres humanos.

Uma das tônicas do livro de Lewontin é a crítica ao reducionismo dos
físicos, emprestado indevidamente pelos biólogos. Só que os primeiros lidam
com a matéria inanimada, e não nos perturbam muito suas elocubrações
teóricas sobre cosmogonia, nem as acelerações que eles produzem de
"partículas" (em situações totalmente artificiais, não existentes na
matéria) - a menos quando criam armas de nos matar ou radiações que nos
prejudicam, ou tentam passar uma visão de mundo que é mera especulação. Os
segundos estão lidando com seres vivos e conosco, impondo uma visão indevida
do mundo e de nós mesmos, e tratando-nos como se fôssemos máquinas. Isso
influencia, por exemplo, a medicina (um exemplo clássico de desastre desse
método foi a Talidomida; preparem-se para os desastres das plantas
transgênicas). Lewontin chama a atenção para o fato de que só se pode falar
de uma "parte" se ela for parte de um "todo", e que nos seres vivos esse
todo é uma unidade (o que já tinha sido afirmado por Goethe), não se podendo
conhecer totalmente, como nas máquinas, a funcionalidade de cada parte.
Infelizmente, os físicos não estão mostrando suficientemente os limites e
falhas de seus métodos; pelo contrário, propagaram a idéia de que o que não
se sabe hoje saber-se-á amanhã (a menos das conseqüências da incerteza...).
Penso que eles deveriam trombetear: "Gente, com nossos métodos não
conseguimos nem saber o que é um elétron ou a luz, será que vocês
utilizando-o vão saber o que é um ser vivo?"

[Pg. 252. {Citando Einstein} "Bom senso é o conjunto de todos os
preconceitos que adquirimos durante os primeiros 18 anos de vida." ... No
entanto, as coisas não são assim com a física moderna. À primeira vista,
fenômenos relativísticos ou quânticos parecem bizarros porque estão muito
além de nossa realidade imediata, inacessíveis aos nossos sentidos; eles não
fazem parte dos fenômenos abarcados pelo nosso "bom senso".]

Exato, a menos dos "preconceitos". Será que o fato de não fazerem parte dos
fenômenos perceptíveis pelos sentidos não poderia ser uma indicação de que
há algo não-físico atuando? Justamente o nível atômico e sub-atômico talvez
constituam o limite entre o físico e o não físico. Explicações baseadas em
nossa experiência sensória não devem aplicar-se ao não físico, ou ao citado
limite. É interessante que Gleiser não cita o fenômeno do "spin", que foi
introduzido por Schrödinger para que sua equação funcionasse, mas que não
tem limite clássico e portanto não pode ser compreendido "sensorialmente"
(não é uma rotação, a começar pelo fato do elétron não ser uma bolinha, como
bem enfatiza Gleiser). Dentro do método adotado pela Física, foi necessário
usar conceitos "bizarros" sem possibilidade de compreensão sensorial, como
"onda de probabilidade" e "spin", e a dualidade (complementaridade)
onda-partícula, que se tornaram puras abstrações mentais fabricadas. Será
que isso não seria suficiente para mostrar que o método científico usado tem
algo de profundamente errado? Quem sabe está se aplicando indevidamente uma
visão de mundo - a materialista -, e uma técnica - a modelagem matemática -,
onde elas não cabem?

É interessante reconhecer que conceitos matemáticos - equações, por exemplo,
não são descrições físicas. De certo modo, a mecânica quântica desfez a
materialidade da matéria, exprimindo-a sob formas abstratas sem
possibilidade de compreensão. Quem sabe isso é devido ao fato de que a
matéria no nível atômico e sub-atômico está no limite do material, e não
pode ser descrita por expressões ligadas aos meios materiais (com
significado através de compreensão baseada nos nossos sentidos). Isso nos
leva ao próximo ponto.

[Pg. 299. {Citando Heinsenberg} "Gostaríamos de poder falar sobre a
estrutura dos átomos, mas nós não podemos falar sobre átomos usando uma
linguagem ordinária."]

Nossa linguagem atual é baseada na percepção sensorial e ainda nos
sentimentos pessoais (que são sentidos pessoalmente, mas que têm um caráter
universal - amor, ódio, simpatia e antipatia). Será que isso não mostra que
precisamos começar a falar sobre o não-sensório e pesquisá-lo sem perder a
objetividade e exprimindo-nos através de conceitos, para a compreensão
buscada por todas as pessoas que são "evoluídas"?

Em lugar de desenvolver uma linguagem - conceitos - para descrever o não
físico, descambou-se para a linguagem puramente matemática. Mais sobre isso
no comentário sobre a página 328.

[Pg. 300. {Citando Feynman} "Coisas em escalas muito pequenas comportam-se
de modo completamente diferente de tudo aquilo de que você tem experiência
direta no seu dia-a-dia. Elas não se comportam como ondas, elas não se
comportam como partículas, elas não se comportam como nuvens ou bolas de
bilhar, ou pesos ligados a molas, ou a qualquer outra coisa que você tenha
visto em sua vida."]

Todas essas noções provêm de nossos sentidos físicos. Mas nossos sentidos
físicos não são adequados para a observação ou a descrição dos processos
não-físicos, ou os limítrofes entre o físico e o não-físico. Parece-me que
somente com uma conceituação do não-físico poder-se-á chegar à compreensão
do que vem a ser o átomo e portanto a matéria.

[Pg. 306. Bohr elaborou sua posição no princípio de complementaridade, que
afirma que onda e partícula são duas versões igualmente possíveis e
complementares, embora mutuamente incompatíveis, de como objetos quânticos
(como elétrons ou átomos) irão se revelar a um observador. Onda e partícula
são duas formas complementares de existência, que se manifestam apenas após
o objeto quântico ter entrado em contato com o observador. Antes desse
contato, o objeto quântico não é nem partícula nem onda. De fato, antes do
contato, não podemos nem mesmo dizer se o objeto existe ou não. Esses 2
princípios, de incerteza e de complementaridade, formam a chamada
"Interpretação de Copenhage da mecânica quântica", desenvolvida
principalmente por Bohr.]

Será que o contato é com o "observador"? Parece-me que é "com a matéria".
Por exemplo, a luz não é visível; ela só se torna visível quando interage
com algo material, apresentando-se então sob forma de cor (cf. a Teoria das
Cores de Goethe). Dependendo de sua interação com a matéria, o resultado da
interação, e não a luz propriamente dita, comporta-se de uma ou outra forma.
Nesse sentido, a luz não é uma onda eletromagnética; comporta-se como onda
ao passar por 2 orifícios, produzindo o fenômeno de interferência, de onde
se pode calcular o comprimento de onda. Mas se em lugar de 2 orifícios
colocarem-se 2 pequenos obstáculos, ter-se-á interferência do mesmo modo,
mas no espectro complementar. Como conciliar esses conceitos com a deflexão
da luz passando próxima do Sol? O Sol é matéria, de modo que a luz está
sendo influenciada pela mesma. É interessante notar que, hoje em dia,
empregam-se instrumentos em toda a pesquisa científica. Ora, a luz ou as
"partículas" interagem com a matéria do instrumento antes de interagir com o
observador. Aliás, o uso exagerado de instrumentos separa o observador do
objeto, tornando-se uma das causas da desumanização da ciência. É
interessante notar ainda que os instrumentos sempre funcionam dentro de uma
certa teoria, de modo que em geral por meio deles não se pode comprovar que
ela é incoerente ou deveria ser estendida. É o caso dos instrumentos que
usam a teoria das cores de Newton.

Está na hora de eu sintetizar aqui algo de minha posição com relação à
matéria. Como discorri nos comentários às últimas citações, a mecânica
quântica teve que apelar para conceitos que não têm nada a ver com nossas
percepções sensoriais. Certos elementos foram introduzidos artificialmente
nas equações matemáticas para que elas modelassem adequadamente os
resultados experimentais - ou mesmo fizessem a teoria adequar-se a uma visão
de mundo, como foi o caso da Constante Cosmológica de Einstein (pg. 339).
Tudo isso me leva à conclusão lógica de que no nível atômico e sub-atômico
se está na fronteira do não-físico, e portanto os conceitos baseados nos
sentidos simplesmente não podem ser aplicados. Isso por eu considerar o
mundo não-físico como sendo essencialmente distinto do físico. Mas aí caímos
no famoso paradoxo: como o não-físico pode atuar no físico? Somente algo
físico pode atuar no mundo físico, pois qualquer energia ou força que atue
no físico deve ser física. Já mostrei uma de minhas idéias de atuação do
físico no não-físico: a *decisão* que ocorre no nível celular de uma célula
permanecer na diferenciação do tecido vivo, de ela submeter-se à mitose ou à
apoptose (ver comentário sobre a pg. 193). Com isso, por exemplo, o modelo,
a idéia não-física da forma de uma folha própria de uma espécie pode atuar
no físico, levando essa folha a continuamente adaptar-se a essa forma. Uma
decisão não precisa de energia, pois se passa no mundo platônico das idéias.
Atenção, essa interação depende obviamente da base física da planta e do
meio ambiente, daí por exemplo uma alteração no DNA poder levar a uma outra
forma. E quanto ao nosso pensamento, que não envolve esses processos
celulares, e à matéria não-viva?

Parece-me que a questão da "decisão" também pode ser a chave para um
entendimento sobre essas questões. Suponhamos que existam no nível atômico e
sub-atômico vários estados dos átomos e das "partículas" que representem
equilíbrios instáveis (como por exemplo de um lápis colocado milagrosamente
em pé sobre sua ponta de grafite). A passagem de um estado de equilíbrio
instável para um outro estado (no caso, a queda do lápis em uma das
infinitas direções possíveis) requer um infinitésimo de energia ou, no
limite, nenhuma! Esse seria o caso de circuitos como "flip-flops" em
equilíbrio instável; só que não me agrada a visão digital nos seres vivos;
quem sabe trata-se de "flip-flops" analógicos, com um número infinito de
estados... Note-se que a mecânica quântica "digitalizou" o átomo, mas ela é
apenas um possível modelo matemático abstrato. E por falar nisso, além de
não ter falado sobre o "spin", Gleiser não citou o "princípio de exclusão"
de Pauli: duas partículas de um mesmo átomo não podem ter todos os seus
números quânticos iguais. Não existe nenhuma justificativa para esse
princípio, o que me parece muito estranho.

Uma outra possibilidade é a do não-determinismo: suponhamos que uma corrente
elétrica possa passar de um local de um organismo vivo para outro, mas há
vários caminhos (circuitos) possíveis. A decisão de qual caminho vai ser
tomado também não requer energia, e pode ser mais uma fonte da atuação, por
exemplo, de nosso pensamento, sentimento ou vontade não-físicos, na matéria
física. Os físicos e eletrotécnicos estão acostumados a raciocinar
deterministicamente nesse caso, sempre concluindo que a corrente se dividirá
entre os vários circuitos em função das impedâncias (resistências) de cada
um, segundo as leis de Kirchoff. Mas quem sabe essas impedâncias dependem
dos equilíbrios instáveis que já citei, o que resolveria o problema. Vou
citar aqui um exemplo banal, mas ilustrativo. Suponhamos que alguém, em uma
situação vexaminosa, ruborize. O que provocou a ruborização? Em última
instância, uma dilatação nos vasos sangüíneos. Mas o que provocou essa
dilatação? Algum hormônio, que foi solto por alguma glândula. Mas o que, ou
quem ativou essa glândula? Se continuarmos nesse trem de pensamentos,
necessariamente chegaremos a algo não-físico: a pessoa sentiu-se moralmente
envergonhada. De algum modo, esse sentimento, que me parece claramente
não-físico, acabou dando uma reação física. O mesmo se passa, por exemplo,
se tomamos uma decisão consciente de mover um dedo.

[Pgs. 328-329. {Einstein} sabia que sua intuição estava correta; o problema
era achar a formulação matemática adequada para suas idéias. Os físicos que
usam principalmente sua intuição em sua pesquisa podem identificar-se com
essa situação, muitas vezes frustrante, quando suas idéias estão muito à
frente de sua matemática. ... Representar idéias em equações não é nada
fácil, mas nenhuma alternativa é viável. Se você não for capaz de formular
sua teoria matematicamente, é provável que ninguém a leve a sério. Idéias
são muito mais difíceis de serem compreendidas do que a matemática.]

Aqui vejo um dos maiores problemas da ciência desde Galileu, Newton e
Descartes. Tudo deve ser apresentado matematicamente. Acontece que por meio
da Matemática tem-se uma visão exclusivamente *quantitativa *do mundo. Tudo
o que é qualidade, ou que não é expresso quantitativamente, deixa de ser
objeto da ciência (como aliás afirmou Lord Kelvin em citação que perdi).
Aliás, Descartes já afirmara que só o mensurável era claramente
compreensível, todo o resto – "a luz, as cores, os sons, os odores, gosto,
calor, frio..." sendo nebuloso; de modo que ele não podia saber ser eram
"verdadeiros ou falsos", o que levou John Locke a considerar os primeiros
como "qualidades primárias" e os segundos como "secundárias". Galileu fez
uma analogia do subjetivo do gosto, odor, cor, etc. com as cócegas que
sentia no pé ao este ser tocado, e que eram sentidas apenas por ele. Sei que
muitos cientistas responderão aqui que tudo no mundo é quantificado.
Infelizmente, isso é uma fé sem fundamento científico. Certamente nosso
cérebro não funciona quantitativamente - pelo menos, não digitalmente, pois
que máquina digital é essa sem sincronismo de sinais (por um gerador de
pulsos, denominado comumente de "relógio" da máquina) e, como já citei, com
a capacidade de escolher livremente seu próximo pensamento? Nossa vivência
diária não é quantitativa, desde ao vermos, por exemplo, certas cores
diferentes e logo associarmos a nossa representação mental ("Vorstellung")
correspondente com o conceito "árvore". Podemos eventualmente passar ainda
ao conceito "Araucária" (uma belíssima posso ver neste momento na encosta do
morro em frente, a uns 500m, com a típica copa em forma de elipsóide, padrão
comum nessa espécie, contra o céu azul profundo de nossos 1700m de altitude
- como explicar materialmente o crescimento dos galhos de 1 a 5m, com os
tufos da "angustifolia" apenas na sua ponta mantendo essa forma primordial?
Ou o dos pinheiros, mantendo a forma triangular ou de pinha?). Nem o
conceito de "porta", que associo neste momento a certas cores e formas que
vejo ao meu lado, dá-me a sensação de que há algo quantitativo envolvido.
Pelo contrário, a possibilidade de entrar em contato por meio de meu
pensamento com esses conceitos (árvore, Araucária, porta), mostra-me que ele
me permite atingir *objetivamente* o mundo platônico das idéias, que
claramente não está em minha mente, pois se Gleiser estivesse aqui comigo
(que interessantes discussões não teríamos...), alcançaria com seus
pensamentos exatamente os mesmos conceitos qualitativos! Vê-se que nesse
sentido sou francamente contra Kant que, parece-me, continua influenciando o
método científico até hoje, com sua idéia de que nossas percepções são
sempre subjetivas e que o pensamento é incapaz de atingir a essência das
coisas observadas. Justamente com nosso pensamento, somos capazes de captar
a *essência* da Araucária ou da porta (que não observamos com nossos
sentidos), tanto que as reconhecemos!

Gleiser cita os quatro elementos dos antigos gregos: terra, água, ar e fogo
(nessa ordem, não na que ele coloca (pg. 74). Pois para os gregos, esses
termos expressavam qualidades comuns a todos os sólidos, a todos os líquidos
(inclusive metais fundidos), etc. Eles associavam a essas qualidades
essências não-físicas. Aliás, parece-me que não é possível deduzir dos
modelos que se tem para os átomos de hidrogênio e de oxigênio que uma de
suas combinações entre 0 e 100 graus Celcius dará moléculas de um líquido,
mas posso estar enganado.

É interessante notar que durante muito tempo se fez ciência qualitativa, por
exemplo na Sistemática da Botânica. Pior, ela era altamente artística, pois
os botânicos mesmo depois do advento da fotografia reconheciam que um
desenho feito à mão pode salientar aspectos que uma fotografia maquinal não
pode. O darwinismo foi essencialmente qualitativo. Mas infelizmente esses
exemplos da Biologia estão desaparecendo, pois a estrutura do DNA é
essencialmente matemática (na verdade, lógico-simbólica). Aliás, meu combate
atual contra as afirmações indevidas em torno do DNA (dele definir a vida,
determinar o comportamento do organismo, etc.) deve-se em parte à potência
científica que elas têm, pois contrariamente à teoria da evolução, que
sempre foi altamente especulativa, o DNA tem uma "base científica" moderna
muito mais poderosa, pois é determinado por instrumentos (que incluem o
convincente computador) e por um modelo essencialmente matemático. Por outro
lado, preciso combater aquelas afirmações pois o darwinismo tentou passar
uma imagem de que o ser humano é um *animal*: na pg. 247, Gleiser afirma que
devido ao darwinismo, houve uma condenação dos "humanos a serem descendentes
diretos dos macacos", o que é absolutamente indevido frente ao conhecimento
científico de hoje; é impossível imaginar-se mutações dos macacos atuais
chegando a nós. (Assim, podemos supor que houve algum ancestral não-macaco
comum, que poderia muito bem ser o próprio ser humano - basta exagerarmos
nossa constituição física em alguns pontos para obtermos qualquer animal;
aliás, nos primeiros estados embrionários não há distinção entre nós e os
animais, a ponto do grande Haeckel ter uma vez deixado de rotular vidros com
embriões de vários animais e depois não conseguir classificá-los.) No
entanto, por trás da pesquisa do DNA existe uma concepção muito pior, a de
que o ser humano é uma *máquina*. O terrível disso é que se pode ter uma
ética em relação aos animais, pois eles sofrem; daí existirem "sociedades
protetoras dos animais", Brigittes Bardots, etc. Mas não há sentido em se
falar em ética em relação às máquinas. Não estou me referindo à ética no *
uso* das máquinas, e sim, por exemplo, no dó de desligar ou não dar
manutenção a uma delas. Seria interessante Gleiser meditar no fato de que os
nazistas, que ele cita com horror de vez em quando, terem tratado os seres
humanos como animais, transportando-os em vagões de gado, enjaulando-os em
campos de concentração, fazendo sabão de seus cadáveres, etc.
(provavelmente, como eu, ele teve familiares que foram tratados por eles
assim, nas gerações tão próximas quanto as de nossos avôs e bisavôs). Mas a
concepção de que o ser humano é uma máquina vai levar a atitudes desumanas
muitíssimo piores. Quero deixar aqui bem claro que uma educação científica
materialista, como a que se faz hoje em dia no ensino médio (antigo "2o.
grau"), cria essa mentalidade de que o ser humano é uma máquina. Atenção,
sou da opinião de que o darwinismo deve ser ensinado, mas apenas no nível
médio, e como *teoria* que é (e "furada": os elos perdidos), e não como
verdade como é ensinado. Da mesma maneira, a teoria das cores de Newton
deveria ser ensinada como um possível *modelo* para a luz, e não como
verdade, como escreveu Tolger Hotsmark (Newton’s Experimentum Crucis
Reconsidered, *American Journal of Physics*, Vol. 38, No. 10, Oct. 1970, pp.
1229-1235): "Newton pensou que ele explicou a existência do espectro por
meio de um modelo físico da luz, ao passo que ele de fato usou a imagem do
espectro para explicar um *possível* modelo físico da luz" (minha tradução e
grifo). O mesmo para a atomística e cosmogonia modernas, etc. Mas qual
professor de Física do ensino médio ensina a seus alunos que a teoria das
cores de Newton é uma teoria e não uma verdade, que o elétron não gira em
torno do núcleo (pois nesse caso, como bem aponta Gleiser, perderia energia
por irradiação eletromagnética) e não é uma "bolinha", mas que esses são
modelos simplesmente convenientes para algumas aplicações? Ou um professor
de Biologia que ensina a teoria da evolução como teoria e não como verdade?

Por falar nisso, em algum ponto Gleiser lamenta o fato de grupos religiosos
terem conseguido passar leis nos EE.UU. de que o darwinismo não deveria ser
ensinado, e sim o criacionismo bíblico. Eu também lamento, pois o currículo
deveria ser livre, determinado pela comunidade dos professores de cada
escola (como é o caso na Pedagogia Waldorf). Mas o que nem Gleiser e nem
esses criacionistas percebem é que a criação segundo a Gêneses é uma *imagem
* para realidades subjacentes. Como eu já afirmei, na época bíblica, e
anteriormente, as pessoas não tinham seu pensamento desenvolvido como o
temos hoje, e não havia a possibilidade de expressar conceitos como nós o
fazemos. Ora, crianças pequenas vivem (ou deveriam viver) com imagens
fantasiosas interiores (e não as exteriores da TV, por exemplo - vejam-se
meus artigos a respeito). Portanto, as imagens da criação bíblica são
absolutamente adequadas para crianças de 8 ou 9 anos de idade, e a teoria
darwinista é absolutamente inadequada nessa idade. Pelo contrário, a teoria
da evolução (atenção, como mera teoria, o que só pode ser compreendido por
jovens com maturidade intelectual suficiente), é absolutamente adequada no
nível médio, e o criacionismo bíblico absolutamente inadequado, pois o jovem
quer compreender e não se satisfaz com imagens e parábolas. Entre
parênteses, já tive a ocasião de participar de um congresso criacionista, e
fiquei impressionado com o fundamentalismo de muitos participantes. Para
começar, eles não só negam a seleção natural (que para mim existe, mas não é
casual), mas tomam ao pé da letra as imagens da Gêneses, por exemplo
considerando os dias da criação como tendo 24 horas (V. pg. 31)!

Voltando à modelagem matemática, parece-me que um de seus problemas é que
ela tende a adquirir independência em relação aos fatos físicos. É o que
ocorreu com o "spin" e com as várias teorias do universo inflacionário como
as citadas por Alan H. Guth em *The Inflationary Universe - The Quest for a
New Theory of Cosmic Origins* (Reading: Perseus, 1997), provavelmente não
citado por Gleiser por ter sido escrito ao mesmo tempo que o seu livro. Guth
mostra como as tentativas de solucionar o problema da origem da massa ou
energia originais teorizando-se um universo "ex nihilo" foram feitas
manipulando-se equações derivadas da Mecânica Quântica; aliás, é curioso
ver-se a inflação de teorias inflacionárias! Apreciei muito sua dúvida: "Se
a criação do universo pode ser descrita como um processo quântico,
restar-nos-ia um profundo mistério da existência: o que é que determinou as
leis da física?"

[Pg. 348. Você não tem que acreditar nos cientistas. Você tem que
compreender suas idéias. Ciência não é um sistema de crenças, mas um sistema
de conhecimento desenvolvido com o objetivo de organizar a realidade à nossa
volta. ... você deve também duvidar de qualquer sacerdote que tente
convencê-lo, baseado em argumentos religiosos, da futilidade da ciência
moderna.]

Totalmente de acordo. Só que aparentemente Gleiser não sabe que se pode
conceituar e pesquisar o não-físico, sem conotação religiosa e sem crenças
como, por exemplo, o fez magistralmente Rudolf Steiner (que, aliás, teve
formação científica na Escola Politécnica de Viena, e fez um doutorado em
Filosofia). Assim, é possível compreender o não-físico, e ampliar
enormemente a pesquisa científica, passando-se a ter uma ciência humana, e
não desumana como a ciência atual. É possível resgatar cientificamente uma
visão de mundo que devolva ao ser humano a sua dignidade, suprimida por
concepções materialistas de que ele é um mero animal ou uma máquina. Mas
para isso é necessário mudar os paradigmas materialistas da ciência atual,
sem no entanto abdicar de seus princípios fundamentais, de transmissão de
conceitos para a compreensão humana, de experimentação consciente, de
objetividade, etc.

Talvez eu devesse discorrer brevemente sobre essa questão crucial de
objetividade e dos outros paradigmas. É absolutamente essencial que se
pesquise também o subjetivo. Eu vejo uma rosa, e sinto uma sensação
absolutamente pessoal minha, diferente do que a sensação que Gleiser
sentiria ao ver a mesma flor. É preciso fazer uma ciência que aborde também
esse aspecto subjetivo, isto é, de cada um ter uma sensação própria, pois
senão ela será desumana. Mas mesmo no subjetivo existem aspectos objetivos.
Por exemplo, duvido que Gleiser não iria sentir admiração e prazer vendo uma
linda rosa. Do mesmo modo que ele sentirá uma sensação de abertura ao ouvir
uma terça maior (por exemplo, um acorde dó - mi), e de introspecção ouvindo
uma terça menor (dó - mi bemol). Ou ficar irrequieto com a seqüência de
sétima maior (dó - si), que pede a finalização na oitava (dó - dó). Ou ser
chamado à ação por uma seqüência de sexta maior (dó - lá), usada nas antigas
trompas de caça. Em todos os povos do mundo, a alegria é manifestada com
sorrisos, e não com lágrimas. Isto é, existe algo de universal por detrás
dos sentimentos individuais, assim como o existe por detrás dos
temperamentos individuais das pessoas. Esses aspectos devem ser investigados
objetivamente, apesar de sua fonte ser subjetiva.

Um outro aspecto do paradigma atual da ciência é a reprodutibilidade. Ora,
com o ser humano nada é puramente reprodutível. O leitor que teve paciência
de chegar até aqui não é o mesmo que era quando iniciou esta leitura! O ser
humano incorpora todas as suas vivências, conscientes e inconscientes, e
nessa incorporação vai se modificando, isto é, não é reprodutível. Para ser
mais preciso, eu deveria chamá-lo de "devir", e não de "ser" humano, pois
ele está em permanente transformação. Portanto, somente uma ciência desumana
poderá exigir reprodutibilidade em tudo, inclusive na pesquisa do próprio
ser humano. Ela é válida nos minerais.

Já critiquei o paradigma da modelagem matemática, que leva a uma necessária
quantificação e o desprezo pelos aspectos qualitativos. Resta criticar o
paradigma de falseabilidade (cf. Popper). Ora, esse paradigma exige uma
formulação essencialmente lógica. Mas nem tudo, principalmente o
qualitativo, pode ser formulado logicamente, principalmente em Lógica
aristotélica. Entre parênteses, meu ex-colega Newton C.A. da Costa foi o
matemático que mostrou que a Lógica não precisa ser clássica, tendo
desenvolvido a Lógica Paraconsistente, onde por exemplo não vale o princípio
do 3o. exluído (isto é, nem tudo deve ser exclusivamente verdadeiro ou
falso, pode ser um "mais ou menos" fixo - não confundir com Lógica "Fuzzy",
que é baseada em probabilidades). Por exemplo, ele demonstrou que somente
numa Lógica clássica o teorema de Goedel era válido, sendo inválido em uma
Paraconsistente. É o mesmo que se ter geometrias não-euclidianas,
perfeitamente válidas, onde por exemplo a soma dos ângulos de um triângulo
tem mais de 180 graus (V. pg. 333). Como se deve compreender a
falseabilidade, se se usar uma Lógica Paraconsistente? Além disso, nem tudo
pode ser formulado como teoria que pode ser simplesmente negada. Parece-me
que justamente a pesquisa do qualitativo não pode ser sujeita a esse
paradigma.

A modelagem matemática teve, no entanto, uma grande vantagem: abriu caminho
para a concepção e o nascimento do que chamei acima a "filha predileta da
ciência", a tecnologia, a grande motivação hoje em dia para a existência e o
financiamento da primeira. Poucos cientistas de hoje procuram simplesmente o
saber. Só que como se pode facilmente observar hoje, a tecnologia baseada no
materialismo é mais destruidora do que construtora, pois é motivada por
impulsos egoístas e de ambição. Infelizmente Adam Smith, o propositor da
satisfação desses impulsos como forma de trazer felicidade e estabilidade
sociais, estava errado: sua misteriosa "invisible hand" está cada vez mais
invisível e inoperante, e a humanidade sofrendo (em geral) cada vez mais.

[Pg. 353. Vivemos num Universo povoado por um número gigantesco de galáxias,
espalhadas pela vastidão do espaço cósmico. Nossa galáxia, a Via Láctea, é
apenas uma entre bilhões de outras, sendo sua posição perfeitamente
irrelevante. Nosso planeta não ocupa uma posição especial no sistema solar,
nosso Sol não ocupa uma posição especial no Universo. O que temos de
especial é a habilidade de nos maravilharmos com a beleza do cosmo.]

Infelizmente há um erro profundo nesse trecho: se nosso planeta não ocupasse
a posição que ocupa, não estaríamos aqui. Mas não é isso que me incomoda.
Aqui Gleiser adota um dos paradigmas da ciência atual: a profunda crença no
acaso. O Universo é um acaso, o sistema solar é um acaso, a Terra é um
acaso, e a humanidade é fruto do acaso. Pior, cada um de nós é fruto do
acaso - o que retira toda a possibilidade da vida humana ter um sentido e um
objetivo, da Terra ter um sentido, do sistema solar ter um sentido, e do
Universo também. Que pobre visão! Uma visão que deveria levar, se a pessoa
fosse consistente, a um existencialismo sartriano, uma vontade de satisfazer
seus instintos e desejos a qualquer momento, de simplesmente gozar a vida.
Seria o desaparecimento de qualquer atitude proveniente de amor altruísta.
Obviamente não concordo com a posição de Richard Dawkins, em *O Gene Egoísta
* (Lisboa: Gradiva, 1989) - aliás, não tenho muitos problemas em admitir o
caráter egoísta dos genes, apesar de achar que para isso eles deveriam ter
consciência. O que não posso admitir - e a ciência não pode provar - é que
somos determinados exclusivamente pelos nossos genes. Como disse Andrew
Simpson, o coordenador do Projeto Genoma do Estado de São Paulo, em palestra
no Instituto de Física da USP em 25/5/00, respondendo a pergunta minha, "A
diferença entre eu e o Pelé está em nossos genes." Ora, pois! Coloquem-se os
genes de Pelé num americano, há 60 anos atrás, para ver se ia dar um
futebolista do porte de Pelé, e os genes de Simpson em Pelé nessa época em
Santos, em seu ambiente familiar, para ver se ia dar um biólogo de
prestígio! Aliás, sua primeira transparência nessa palestra continha a frase
"Life Defined". Vejam-se os desatinos que se está falando em torno do DNA. É
muito importante reconhecer que esses desatinos são fruto de uma mentalidade
científica que deve mudar, pois destruiu qualquer possibilidade de se ter
uma imagem digna do ser humano. Quero dizer, deve mudar para aqueles como
Gleiser, do que aparentemente transparece em seu livro, que buscam essa
dignidade. Só que não percebem que devem mudar seus paradigmas científicos,
pois os atuais não podem de modo algum levar à liberdade e à dignidade
humanas. Nem liberdade e nem dignidade podem ser deduzidas da matéria e de
processos puramente materiais.

Não, Gleiser, *pode ser* que nós humanos sejamos os únicos seres com
manifestação física auto-conscientes, com individualidade e com liberdade em
todo o universo Aliás, é uma pena que os insucessos da SETI - "search for
extraterrestrial intelligence" - sempre serão acompanhados de desculpas
científicas padrões como "nossos instrumentos ainda não são adequados",
"estamos apontando nossos radiotelescópios para o lugar errado", etc. Depois
de ter acabado de escrever este artigo, recebi a *Scientific American* Vol.
293, No. 1, July 2000, onde há 2 artigos sobre SETI. O primeiro, de Ian
Crawford (pp. 29-33), mostra que já foi concluída uma boa parte da busca, e
não se achou nada. Além disso, ele discorre sobre o fato de que,
considerando a idade da nossa galáxia, alguma civilização já devia ter se
espalhado por toda ela, citando o "Paradoxo de Fermi", que eu desconhecia:
por que seus representantes não estão aqui? Meus alunos vão reconhecer uma
argumentação lógica que uso há muito tempo, baseada nesse fato, para
concluir que, ou estamos sozinhos, ou é impossível algum contato. Pois o
autor faz justamente uma consideração de que talvez estejamos sozinhos da
galáxia! O segundo, de George W.Swenson, Jr. (pp. 34-37) mostra que a
potência requerida para uma transmissão dentro de nossa galáxia, que possa
ser captada por nós, requer uma potência literalmente astronômica para
transmissão omnidirecional (em todas as direções). Então, pergunto eu, por
que se tem feito pesquisas tipo SETI? É que, do ponto de vista materialista,
simplesmente não faz sentido sermos os únicos seres "inteligentes" no
universo; a ânsia de provar que não somos únicos talvez ultrapasse o bom
senso.

*Pode ser* que a Terra, o sistema solar e quiçá o universo não existam por
acaso, e sim por nossa causa, como aliás foi teorizado pelos astrofísicos
que desenvolveram a Teoria Antrópica do Universo (ver, p. ex., J.D.Barrow &
F.J.Tipler, *The Anthropic Cosmological Principle*, Oxford Univ. Press,
1980). Eles simplesmente constataram que a quantidade de coincidências
nesses sistemas é de tal ordem de magnitude que talvez se possa admitir
cientificamente que não há coincidência coisa nenhuma, tudo isso existe por
nossa causa. Que dignidade, que responsabilidade adquirimos com um
pensamento desses! É interessante observar que, dentro desse raciocínio, os
antigos sistemas geocêntricos estavam absolutamente corretos, não do ponto
de vista físico, mas do ponto de vista não-físico. Pode-se também admitir
cientificamente que o desvio para o vermelho não seja devido ao afastamento
mútuo das galáxias, mas a alguma atração gravitacional, e portanto o
universo não está em expansão e não houve "Big-Bang". Infelizmente
esqueci-me do nome do astrônomo que formulou essa hipótese, e que por causa
disso foi relegado ao ostracismo pela comunidade astronômica: conforme li há
muito anos na revista *Sky and Telescope*, que eu assinava, começaram a
negar-lhe tempo para observações nos telescópios, seus artigos eram passados
indefinidamente de um revisor para outro, etc. É como digo em algumas de
minhas palestras: "se quiserem achar preconceitos, vão a um ambiente
acadêmico ou de pesquisa!" O primeiro preconceito é negar qualquer
possibilidade da existência de processos não-físicos em nós e no universo, e
que eles podem ser pesquisados, o que infelizmente transparece na posição de
Marcelo Gleiser - ou será que estou errado? Vejamos.

[Pg. 396. Como vimos, a cosmologia é a única da Física que lida com questões
que podem também ser legitimamente formuladas fora do discurso científico.]

Não, não me enganei. Gleiser continua recusando-se a admitir que há
possibilidade de se estender o discurso científico para abarcar questões que
são excluídas do discurso *atual*. Ele começou seu livro fazendo uma resenha
de alguns mitos da criação. Mas para ele, esses mitos são questões
religiosas, que fogem à possibilidade de compreensão, e tratam de questões
de fé. Ele está correto quanto às religiões antigas, as tradicionais e as
muitas novas "Igrejas" que pululam por aí arregimentando os incautos. Só que
hoje já existe a possibilidade de se lidar com questões não-físicas
conservando os princípios fundamentais que deveriam nortear uma ciência
humana. Obviamente os mitos que ele cita não são compreensíveis com o
discurso atual da ciência. Mas isso não significa que esse discurso não pode
ser ampliado. Basta para isso ter coragem de se sair do poço do
materialismo, sem abdicar da objetividade, da consciência na experimentação
e na transmissão de conhecimentos por meio de conceitos. Isso *É* possível,
e já foi feito.
*

Epílogo
*

Espero não ter dado a impressão de que o livro de Gleiser não tem valor.
Muito pelo contrário, acho-o de valor imenso, por mostrar de maneira
extremamente agradável, simples, didática e bem escrita a história e a
situação da Física e da Astronomia. Li-o com imenso prazer, e aprendi muito
com ele. Admiro-o também pela coragem de abordar os aspectos dos mitos da
criação, e tentar traçar paralelos entre antigas visões de mundo e os atuais
conceitos da ciência, como aliás já tinha sido feito por Fritjof Capra, em *O
Tao da Física*, São Paulo: Cultrix 1986 (curiosamente, não citado por
Gleiser, quem sabe pela afiliação do primeiro com o movimento "New Age" e
seu claro orientalismo - com o qual não estou de acordo, por sinal). A
propósito, transparecem nesse livro as possibilidades de interpretar algo
que não foi formulado conceitualmente, e sim por imagens, como os mitos - no
caso do extremo oriente, são antiquíssimos, pré-históricos, muito anteriores
à sua gravação escrita - associando-os a conceitos modernos. Tem-se a nítida
impressão que essas associações são arbitrárias.

Fico, também, agradecido pelo livro ter me inspirado e impulsionado a
escrever estas reflexões. Minha intenção foi a de mostrar que existem outros
aspectos a considerar, e que não contradizem os fatos científicos conhecidos
hoje - apesar de contradizerem os julgamentos científicos correntes e
principalmente o paradigma central da existência exclusiva de processos
físicos, que denominarei aqui de "Paradigma da Exclusão" (exclusão do
não-físico). Para isso, enfoquei o livro sob o prisma de uma visão realista
(que leva em conta a existência tanto da matéria como do não-físico),
mostrando a necessidade de ampliar a atual visão científica extremamente
parcial, para que a ciência possa abordar questões fundamentais que estão
escapando à sua compreensão, e começar a abarcar questões essencialmente
humanas sem reduzir o ser humano a uma máquina, isto é, preservando e
aumentando sua dignidade dentro do próprio âmbito científico, sem apelar
para religiões e crenças. O pobre cientista que precisa apelar para esses
âmbitos tem necessariamente uma vida e uma personalidade duplas. Há bastante
tempo Clodowaldo Pawan, o conhecido geneticista brasileiro, num debate
comigo no Instituto de Física da USP, afirmou algo como: "Durante a semana
eu coloco meu avental e vou para o laboratório. Nos Domingos eu coloco meu
terno e vou à Igreja. Isso é muito natural." Tenho a impressão que Marcelo
Gleiser também acharia isso perfeitamente natural e aceitável. Eu não. Eu
sou um só, e não posso encarar o mundo de duas maneiras diferentes, mesmo
que o seja em dias diferentes. Não posso ter duas atitudes diferentes,
opostas até, por exemplo uma em que não entram considerações de moral e na
outra em que elas entram (ver a introdução acima). Se a ciência eliminar o
seu restritivo Paradigma da Exclusão, substituindo-o pelo que vou chamar de
*Paradigma da Unificação*, poderá caminhar para uma unificação que leve o
cientista não-materialista a fazer uma ciência que não mais dilacere sua
personalidade em duas conflitantes. Além disso, poderemos ter uma ciência
que, tenho certeza, nos levará a uma compreensão do mundo muito mais
profunda e abrangente, e a uma tecnologia responsável.

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