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  • Date: Thu, 28 Jul 2005 10:33:12 -0300

        
Quinta-feira, 28 de julho de 2005       Pág. A2         
Opinião 
Artigo - A ética de Lula e a nossa      
DEMÉTRIO MAGNOLI        



"Neste país está para nascer alguém que queira discutir ética comigo. Sou filho 
de pai e mãe analfabetos. O único legado que eles me deixaram é que andar de 
cabeça erguida é a coisa mais importante. Não vai ser a elite que vai fazer eu 
abaixar a minha cabeça."
Apesar da retórica, a ética pessoal de Lula não sai bem na foto da estratégia 
de imolação de seus fiéis companheiros que, segundo indícios veementes e nas 
palavras de José Dirceu, agiram com o "conhecimento e consentimento" do 
presidente. Meus pais, que têm educação superior, ensinaram-me quando criança a 
não deixar os colegas pagarem sozinhos por nossas travessuras coletivas. Os 
pais de Lula, analfabetos, provavelmente ensinaram-lhe a mesma coisa, e não têm 
culpa se o filho não aprendeu ou esqueceu. Mas isso é quase irrelevante na 
crise atual, que gira em torno da ética política, não da ética pessoal.
A distinção não ocorre a Lula, mas é crucial: a ética política, tal como 
entendida nas sociedades contemporâneas, nasce de um longo percurso histórico 
de separação entre as esferas pública e privada. Raymundo Faoro, no clássico 
"Os Donos do Poder", encontrou no Estado patrimonial português as raízes do 
comportamento da elite política brasileira. Sob a lógica patrimonial, a coisa 
pública é uma extensão da propriedade territorial privada e a elite dirigente é 
um "patronato político", que "conquista a confiança popular e lhe infunde, de 
cima, a representação arbitral de interesses comuns". Nesse quadro, que é o 
avesso das noções de contrato político e cidadania, a ética política 
confunde-se com a ética pessoal, valoriza a lealdade e o compadrio, admite o 
uso da máquina estatal para finalidades privadas. Essas são, até hoje, as 
fontes da corrupção sistêmica no Estado brasileiro.
Lula encarna a tradição do patronato político brasileiro. Vezes sem conta, o 
presidente definiu a nação pela metáfora da família, na qual ele desempenha o 
papel de pai provedor, governando com o coração e zelando por todos os filhos, 
sobretudo os mais fracos. Governar é distribuir privilégios seletivamente: eis 
o conceito arcaico que emana do pensamento do presidente. Em setembro de 1999, 
Lula denunciou o Bolsa-Escola de FHC, precursor do seu Bolsa-Família, sob o 
argumento de que "o povo não quer migalha, nem cesta básica, nem esmola". Desde 
a posse, o traço característico de seu governo não está em iniciativas de cunho 
universal, mas nos programas preferenciais, como o Bolsa-Família, as bolsas do 
Prouni, as cotas universitárias, o crédito consignado. Esses "mensalinhos dos 
pobres" têm como contrapartida o "mensalão" dos políticos, também destinado a 
acomodar tensões, comprar consciências e angariar apoios.
O pensamento de Lula não se circunscreve ao arcaísmo, mas incorpora o 
componente mais moderno do salvacionismo. O tema do líder providencial, 
fundador de uma nova história e de uma nova nação, percorre os seus discursos. 
Atrás dele, espreita uma noção de destino nacional, de grandeza e redenção, que 
serviria como justificativa para todos os atos presidenciais. O empuxo 
messiânico fornece consistência àquilo que pareceria apenas paradoxal: o 
presidente que denuncia ao povo a conspiração de "elites" nunca definidas e, ao 
mesmo tempo, nomeia ministros os protegidos dos presidentes da Câmara e do 
Senado para transformar o governo num bunker contra a hipótese do impeachment.


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