24/08/2006 Super-Lula Agora que já foi deflagrada a campanha eleitoral, considero oportuno um comentário sobre o pleito de outubro próximo. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disputa a reeleição como franco favorito. A crer nas pesquisas de intenção de voto, venceria ainda no primeiro turno. E, para desespero dos tucanos, esse parece ser um quadro de difícil alteração. Salta aos olhos aqui é que, pouco mais de um ano atrás, Lula enfrentava uma crise seriíssima. O escândalo do mensalão, que ceifara a carreira de vários de seus mais próximos auxiliares, também afetou fortemente seus índices de popularidade. Naquela ocasião, a oposição, capitaneada pelo PSDB, optou por não deflagrar o processo de impeachment. Fê-lo por duas razões principais. A primeira é que os tucanos, por meio da figura de seu então presidente Eduardo Azeredo, também estavam envolvidos nos esquemas de desvio de dinheiro urdidos pelo publicitário Marcos Valério Souza. Mais importante, porém, consideraram que o escândalo deixaria Lula extremamente fragilizado, tornando muito difícil a sua reeleição. Devo aqui dar minha mão à palmatória. Embora eu tenha defendido desde cedo o impeachment, sempre o julguei uma possibilidade para lá de remota, em larga medida por concordar com a avaliação de que a crise enfraqueceria o presidente. Não cheguei, como alguns baluartes tucano-pefelistas, a decretar a vitória antecipada do candidato oposicionista, fosse ele quem fosse, mas devo admitir que a recuperação de Lula surpreendeu-me, não tanto por ter ocorrido, mas por seu vigor. Com efeito, Lula parece ter se convertido numa versão tupiniquim do "Übermensch" (super-homem) nietzschiano _o que não me mata me fortalece. O mensalão não apenas não feriu de morte o presidente da República como ainda lhe serviu de habeas corpus contra todos os questionamentos éticos, pregressos e futuros, envolvendo seu governo. De algum modo, Lula desenvolveu anticorpos contra denúncias de corrupção. Uma administração razoável (quase boa, considerada a mediocridade das duas últimas décadas), forneceu-lhe números positivos para apresentar ao eleitor. Tal combinação o transforma num candidato altamente competitivo. Da mesma sorte não partilhou o PT, o qual, ao que tudo indica, deverá sofrer nas urnas as repercussões negativas do valerioduto. Lula, que sempre foi maior do que o PT, agora já nem hesita em esconder o partido. O desaparecimento da cor vermelha e da estrela de sua campanha é apenas mais um lance da transubstanciação do petista num presidente essencialmente conservador. Não sou eu quem o diz, mas o banqueiro Olavo Egydio Setúbal. O Brasil vem se especializando em perder oportunidades históricas. Acredito que não ter pedido o impeachment de Lula foi mais uma delas. Para a oposição, podemos dizer um sonoro "bem feito". Achou que iria lucrar, mas, ao que tudo indica, terá de passar mais quatro anos longe do butim federal. Esclareço, mais uma vez, que não tenho nada pessoalmente contra Lula e os petistas. Muito pelo contrário, o grupo contou com minhas simpatias durante muitos anos. Acredito também que, na essência, o PT não fez nada que outros partidos não tenham feito antes. Ocorre que, do ponto de vista das instituições, o único que me interessa, dado que não me candidato nem a síndico de massa falida, o Brasil saiu perdendo --e muito. Podemos --e até devemos-- deixar passar certos deslizes de nossos governantes. Ninguém, afinal, é perfeito. Mas o escândalo do mensalão não era apenas um "erro" como hoje tentam fazer parecer Lula e as lideranças petistas. Tratava-se de um esquema de desvio de dinheiro público conjugado com um sistema de compra de votos no Parlamento: um duplo ataque contra a democracia. É um crime grave, contra o qual a opção de não agir nem deveria colocar-se. Ao contrário, aqui a sociedade precisaria ser rigorosa. Deveria não só mobilizar boa parte de seus efetivos policiais e judiciais para prevenir e combater esse tipo de delito como também ser intransigente na aplicação das penas previstas. É um caso em que a execução das sanções adquire o duplo propósito de punir o culpado para que ele não volte a delinqüir e servir de exemplo à coletividade, para que outros não o imitem. Deixar de aplicar os rigores da lei equivale a dizer que a norma não precisa ser obedecida. Os efeitos não demoraram a fazer-se notar. Dos 19 parlamentares acusados de fazer parte do esquema do mensalão _número provavelmente subdimensionado por falta de investigações mais profundas_, apenas três sofreram a punição política da perda do mandato e da cassação dos direitos eleitorais. Outros cinco renunciaram para escapar à punição. Fizeram um mau negócio, pois os 11 restantes que enfrentaram o processo acabaram absolvidos. Não se pode afirmar que a tese é despropositada. Se o general é inimputável, faz sentido acusar o soldado? E as coisas devem ainda piorar. Tome-se o escândalo seguinte, o dos sanguessugas. Aqui, o número de deputados por ora implicados é bem maior: 67 (13% da Câmara). É bem verdade que o esquema de fraude na venda de ambulâncias é até anterior ao mensalão. O que me preocupa, entretanto, é o fato de que, dessa grande leva, apenas dois parlamentares tenham renunciado para escapar à punição. Os demais parecem ter uma confiança relativamente sólida em que serão absolvidos por seus pares. É uma aposta bastante sensata, plenamente abonada pela teoria dos jogos. Trocando em miúdos, o advento do mensalão e suas pífias conseqüências no que diz respeito a punições tiveram o dom de fazer o país regredir em termos de exigências éticas. Em vez de nos tornarmos cada vez mais intolerantes em relação à corrupção, como seria natural e vinha sendo a trilha por nós perseguida, passamos a chancelar o raciocínio cínico segundo o qual todos os políticos são igualmente ladrões, cabendo-nos apenas escolher aqueles que, sem negar sua natureza, "fazem" mais. É nesse desanimador contexto que escolheremos os próximos presidente, 27 governadores, 1/3 do Senado, 513 deputados federais e várias centenas de deputados estaduais. Hélio Schwartsman, 40, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas. E-mail: helio@xxxxxxxxxxxxxx Leia as colunas anteriores