Correio Braziliense Segunda-feira, 10 de outubro de 2005 Pág. 2 Direito & Justiça Misturar receitas não é bom remédio Jesus Pereira Procurador federal, atua na Previdência Social desde 1994 Previdência Social A Previdência Social encontra-se sob a tutela constitucional e controle governamental desde 1934, com o art. 121 da Constituição Federal que determinou a instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado. Não obstante a já histórica proteção constitucional, a previdência pública tem sido, constantemente, alvo de usurpação de seus haveres, utilizados para os mais diversos propósitos dissociados da finalidade para o qual foram constituídos. Já em 1964, com a Lei 4.392, os créditos que a União reconhecera devidos para a previdência pela Lei 3.807/60 passaram à tutela do Ministério da Fazenda e deles não mais se ouviu falar. Deixou também a União de transferir ao Fundo de Liquidez da Previdência Social os valores arrecadados por meio de contribuições da sociedade, a título de quota da União. Na esteira de medidas desse gênero, multiplicaram-se denúncias de desvios das receitas arrecadadas para a Previdência. O constituinte de 1988 bem tentou vedar essa reiterada prática. Com o fim de garantir a integridade dos recursos destinados à Seguridade Social - dentro dela a Previdência - estabeleceu a separação dos orçamentos, instituiu orçamento próprio para a Seguridade Social, indicou-lhe as fontes de custeio, com a arrecadação da contribuição de trabalhadores e empregadores, e da sociedade em geral mediante as contribuições sociais, e vedou a utilização das receitas previdenciárias diretas para outros fins que não a cobertura de benefícios. O crescente desencanto da sociedade, que não tem conseguido transformar as liberdades democráticas em efetiva participação nos destinos do país, tem produzido uma danosa letargia na consciência nacional. Nesse contexto, em que a vigilância social arrefece, o anseio nacional expresso pelo constituinte originário vem sendo repetidamente sabotado, seja através de inescrupulosas emendas à Constituição para a instituição das desvinculações de receitas da Seguridade Social - que passam a ser dispostas livremente pelo governo federal, independentemente do uso que queira dar -, seja por práticas espúrias de manipulação da contabilidade nacional. Nesse quadro de fraco controle social, a hegemonia dos controladores do poder - de ontem e de hoje - não se contenta com a usurpação legal dos recursos da Seguridade Social. Em só um exercício fiscal, conforme denuncia o jornal Folha de S. Paulo, em sua edição de 11/4/2005, matéria com dados fornecidos pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Previdência Social, "sem amparo legal, o governo subtraiu R$ 17,63 bilhões da arrecadação da seguridade social no ano passado para engordar o superávit primário". . Os recursos amealhados da Seguridade Social pelo Tesouro não são outros senão as contribuições sociais arrecadadas pelo Ministério da Fazenda, através da máquina da Secretaria da Receita Federal, e que escapam do controle direto do Ministério da Previdência Social que, com o Ministério da Saúde, gere o tripé (previdência-assistência-saúde) da Seguridade Social. Daí constata-se que não é no interesse dos trabalhadores e segurados, nem da Previdência, nem da sociedade, que foi editada a Medida Provisória nº 258. Ao retirar da esfera da Previdência seus recursos de arrecadação direta, pretende o governo transferi-los da Previdência para a livre disposição do Ministério da Fazenda, para a formação de superávites primários em prejuízo às políticas de proteção social. A absorção da arrecadação previdenciária pela Receita Federal e a concentração de recursos da Previdência em caixa único do Ministério da Fazenda caracterizam-se, portanto, como verdadeiro esbulho do patrimônio da Previdência Social, dos trabalhadores e da sociedade. As constantes investidas contra os recursos da Seguridade Social impõem que segurados, beneficiários, empresários sensíveis ao destino dos trabalhadores, políticos compromissados com a estabilidade e a paz social, os meios de comunicação - voz da consciência nacional - e a sociedade em geral empunhem a bandeira de um novo paradigma de gestão para a Previdência Social - esse banco central dos trabalhadores e da cidadania: a bandeira da autonomia, para efetivo controle da Previdência pelos atores sociais. Dizer não à unificação dos caixas da Seguridade Social e da União, proposta pela Medida Provisória nº 258, e exigir a definitiva separação da gestão da Previdência Social e seus recursos dos demais interesses do governo, afinal o necessário começo. Porque misturar receitas não é bom remédio