[CamaraDas] Artigo: Antônio Prata

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Mon, 13 Apr 2015 11:06:34 -0300

*As ideias fora do lugar*

Antônio Prata

"Si hay gobierno, soy contra!": eis aí uma máxima tão repetida quanto
cretina. Na democracia, ser contra todo governo, sempre, não é uma postura
crítica, mas infantil. É não perceber que num sistema representativo cabe a
nós não só eleger o governo como influenciá-lo, seja criticando-o ou mesmo
o aplaudindo. A frase, contudo, tem seu charme. Empresta a qualquer
resmungo de oposição o silvo de um morteiro republicano na Guerra Civil
Espanhola. O cara pode ser um empresário corrupto que sonega milhões em
impostos, mas basta dizer "Si hay gobierno, soy contra!" e fica se achando
uma espécie de Hemingway redivivo, recostado numa colina de la Mancha,
lutando contra o fascismo estatal.

Uma das consequências da chegada da esquerda ao poder (ou, pelo menos, da
chegada de um partido com um discurso de esquerda), em 2003, foi dar à
direita este selinho hype, de "Soy contra!". De uma hora pra outra, o
sujeito podia se referir ao Lula como "Aquele retirante analfabeto!" e não
estava sendo demofóbico, estava fazendo uma crítica ao poder. Dizia "O
melhor movimento feminino é o movimento dos quadris" e não estava sendo
machista, mas lutando contra as feministas governistas que queriam castrar
os machos livres da pátria. Piadas racistas e homofóbicas deixaram de ser
vistas como reforços aos estereótipos de que o negro é inferior e de que o
gay é errado ou doente, para se tornarem armas da livre expressão contra a
"ditadura do politicamente correto".

Aguentar a velha hidrofobia reacionária andando por aí de sapatênis e
pomada no cabelo, se achando moderninha, seria um preço aceitável a se
pagar, caso o PT tivesse instituído a pauta pela qual foi eleito. Hoje,
então, negros e brancos teriam as mesmas chances no mercado de trabalho,
estudando em nossas boas escolas públicas. Gays andariam de mãos dadas, à
noite, sem correrem o risco de serem espancados. Mulheres poderiam recorrer
a um aborto, caso todas as providências oferecidas pela excelente frente de
planejamento familiar em nossa invejável rede pública de saúde houvessem
falhado. O quatrocentão ressentido repetiria a toda hora que "Esse
aeroporto tá parecendo uma rodoviária!", mas deixaríamos quieto, afinal,
ele haveria perdido seu camarote no topo da pirâmide social, num país que
deixara de ser um dos mais desiguais do mundo.

O problema é que, com o PT no poder, tais melhoras não vieram. Embora a
concentração de renda tenha diminuído um pouco, os 5% mais ricos detém mais
de 40% da renda total do país. Nas faculdades, apenas 11% dos alunos são
negros. Gays tomam lampadadas na orelha na Paulista. A polícia mata em
média cinco pessoas por dia. As mulheres ganham cerca de 30% menos do que
os homens e mais de 50 mil delas são estupradas, todo ano.

Assim, chegamos a este cenário desolador: no poder, uma esquerda
esquizofrênica, incapaz de mexer em nossas feridas seculares, liberando, na
oposição, as vozes mais raivosas, preconceituosas e reativas às mudanças
que essa esquerda sequer promove.

Se fosse um ato de repúdio à desigualdade e à injustiça que se perpetuam,
eu iria pra rua, hoje, acusar o governo. Mas pra andar atrás de um trio
elétrico que estampa a imagem de uma mão sem o mindinho, ao lado de
famílias que fazem "selfies" com a Tropa de Choque, licença: "Soy contra".


*:::*
*Niquele*

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