[CamaraDas] Artigo: Marcelo Coelho

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
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  • Date: Wed, 23 Apr 2014 16:01:28 -0300

Selfies

Muita gente se irrita, e tem razão, com o uso indiscriminado dos celulares.
Fossem só para falar, já seria ruim. Mas servem também para tirar
fotografias, e com isso somos invadidos no Facebook com imagens de gatos
subindo na cortina, focinhos de cachorro farejando a câmera, pratos de
torresmo, brownie e feijoada.

Se depender do que vejo com meus filhos --dez e 12 anos--, o tempo dos
"selfies" está de todo modo chegando ao fim. Eles já começam a achar
ridícula a mania de tirar retratos de si mesmo em qualquer ocasião.
Torna-se até um motivo de preconceito para com os colegas.

"Fulaninha? Tira fotos na frente do espelho." Hábito que pode ser
compreensível, contudo. Imagino alguém dedicado a melhorar sua forma
física, registrando seus progressos semanais. Ou apenas entregue, no início
da adolescência, à descoberta de si mesmo.

A bobeira se revela em outras situações: é o caso de quem tira um "selfie"
tendo ao fundo a torre Eiffel, ou (pior) ao lado de, sei lá, Tony Ramos ou
Cauã Reymond.

Seria apenas o registro de algo importante que nos acontece --e tudo bem. O
problema fica mais complicado se pensarmos no caso das fotos de comida. Em
primeiro lugar, vejo em tudo isso uma espécie de degradação da experiência.

Ou seja, é como se aquilo que vivemos de fato --uma estadia em Paris, o
jantar num restaurante-- não pudesse ser vivido e sentido como aquilo que é.

Se me entrego a tirar fotos de mim mesmo na viagem, em vez de simplesmente
viajar, posso estar fugindo das minhas próprias sensações. Desdobro o meu
"self" (cabe bem a palavra) em duas entidades distintas: aquela pessoa que
está em Paris, e aquela que tira a foto de quem está em Paris.

Pode ser narcisismo, é claro. Mas o narcisismo não precisa viajar para
lugar nenhum. A complicação não surge do sujeito, surge do objeto. O que me
incomoda é a torre Eiffel; o que fazer com ela? O que fazer de minha
relação com a torre Eiffel?

Poderia unir-me à paisagem, sentir como respiro diante daquela triunfal
elevação de ferro e nuvem, deixar que meu olhar atravesse o seu duro
rendilhado que fosforesce ao sol, fazer-me diminuir entre as quatro vigas
curvas daquela catedral sem clero e sem paredes.

Perco tempo no centro imóvel desse mecanismo, que é como o ponteiro único
de um relógio que tem seu mostrador na circunferência do horizonte. Grupos
de turistas se fazem e desfazem, há ruídos e crianças.

Pego, entretanto, o meu celular: tiro uma foto de mim mesmo na torre
Eiffel. O mundo se fechou no visor do aparelho. Não por acaso eu brinco,
fazendo uma careta idiota; dou de costas para o monumento, mas estou na
verdade dando as costas para a vida.

Não digo que quem tira a foto da cerveja deixe de tomá-la logo depois. Mas
intervém aí um segundo aspecto desse "empobrecimento da experiência". Tomar
cerveja não é o bastante. Preciso tirar foto da cerveja. Por quê?

Talvez porque nada exista de verdade, no mundo contemporâneo, se não for na
forma de anúncio, de publicidade. Não estou apenas contando aos meus
seguidores do Facebook que às 18h42 de sábado estava num bar tomando umas.
Estou dizendo isso a mim mesmo. Afinal, os meus seguidores do Facebook, sei
disso, não estão assim tão interessados no fato.

Não basta a sede, não basta o prazer, não basta a vontade de beber. Tenho
de constituí-la como objeto publicitário. Preciso criar a mediação, a
barreira, o intervalo entre o copo e a boca.
Vejam, pergunto a meus seguidores inexistentes, "não é sensacional?". Eis
uma cerveja, a da foto, que nunca poderá ser tomada. A foto do celular
imortaliza o banal, morrerá ela mesma em algum arquivo que apagarei logo
depois.

Não importa; fiz meu anúncio ao mundo. Beber a cerveja continua sendo bom.
Mas talvez nem seja tão bom assim, porque de alguma forma a realidade não
me contenta.

A imagem engoliu minha experiência de beber; já não estou sozinho. Mesmo
que ninguém me veja, o celular roubou minha privacidade; é o meu segundo
eu, é a minha consciência, não posso andar sem ele, sabe mais do que nunca
saberei, estará ligado quando eu morrer.

Talvez as coisas não sejam tão desesperadoras. Imagine-se que daqui a cem
anos, depois de uma guerra atômica e de uma catástrofe climática que
destruam o mundo civilizado, um pesquisador recupere os "selfies" e as
fotos de batata frita.

"Como as pessoas eram felizes naquela época!" A alternativa seria dizer:
"Como eram tontas!". Dependerá, por certo, dos humores do pesquisador.

*:::*
*Niquele*

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