*A volta do vinil*
Perder a esperança pode ser um mau negócio. Veja-se o caso dos discos de
vinil. A moda parece ter voltado com bastante força -a ponto de meu filho
de 12 anos, que em geral dedica seus finais de semana aos videogames, ter
reservado um tempo para visitar comigo uma feira de colecionadores.
Comemorava-se o Record Store Day. Os fãs das lojas independentes de discos,
em várias partes do mundo, dedicam o terceiro sábado de abril a um comércio
que, não faz muito tempo, considerava-se pronto para a extinção.
Localizado, como não podia deixar de ser, na entrada do Museu da Imagem e
do Som, na zona oeste de São Paulo, o evento ainda tem dimensões modestas.
Um corredor de vendedores se apresenta com seus engradados de plástico,
daqueles de transportar garrafas de Coca-Cola (ou Crush, ou Pepsi, conforme
o gosto), carregados de LPs.
Rock, em sua maioria. Os próprios comerciantes, jovens ou nem tanto, têm
aquela típica brancura ruiva de pele contrastando com o azul de muitas
tatuagens e com o preto, naturalmente, das roupas e dos discos.
Quase como um modelo vivo dessa estética, Kid Vinil -o próprio-autografava
suas memórias.
Não é a minha área em termos de gosto musical, de modo que posso estar
lançando algumas hipóteses sem sentido. Mas acho difícil que o vinil tenha
sobrevivido somente por causa da atividade dos DJs.
Será que só nos discões antigos é possível fazer aquele vaivém com a mão em
cima do prato? E isso não estraga o aparelho não?
Talvez os discos tenham voltado à moda porque remetem aos tempos clássicos
do rock; na feira do MIS, um LP famoso (aquele do triângulo de cristal
decompondo um raio de luz nas cores do arco-íris) saía por mais de R$ 100.
Mas imagino que dê até para baixar de graça as músicas armazenadas ali.
Fetiche de colecionadores, portanto? A explicação é insuficiente. Quem fala
de "fetiche" pode estar simplesmente dizendo que não há nenhuma diferença
real entre o LP e o som obtido no computador.
Só que, a despeito do conteúdo musical idêntico, o som das antigas vitrolas
tinha uma materialidade, uma espessura diferente. Sem ser especialista,
acredito um bocado nisso.
Li um entusiasta do vinil elogiando o som mais "quente" do seu aparelho; os
grandes adeptos da alta fidelidade não dispensam, mesmo hoje em dia, os
amplificadores a válvula (e existem alguns de última<br>
geração).
Quanto a mim, guardei todos os LPs que tinha; tudo o que desde quase a
infância eu havia investido no vinil não podia ser jogado fora. Os CDs,
dizia-se, não riscavam, não tinham chiado nem ficavam sujos; a nitidez do
som era muito maior.
Nítido, o som do CD era mesmo. Mas dá para perceber o quanto cada timbre,
cada nota, parece composta de "pixels", para fazer uma analogia com a
imagem da tela do computador.
O discão produz não sei bem que corpo sonoro mais íntegro, mais orgânico,
mais espesso e condensado. A sala se enche de som.
Seja como for, meus LPs ficaram empoeirando; era cansativo trocar o lado do
disco depois de quinze ou vinte minutos; e é verdade que aquilo riscava e
sujava bastante.
A pedido do meu filho, recuperei agora um toca-discos herdado dos meus
pais. Talvez seja só moda de pré-adolescente. Mas não é só a diferença de
som que o fascina.
Ele se espanta com a aparente riqueza de haver dois lados num disco;
sente-se participando da música ao acionar o braço da vitrola; distingue,
mágica e minúscula, a agulha do aparelho.
Aparelho? Desconfio que a vitrola tem, para um garoto de sua idade, o poder
de um instrumento musical. Uma caixa de madeira com tampa (como um piano,
como um buraco de lareira) abre um abismo negro diante de seus olhos.
O disco, igualmente negro, parece-nos, hoje em dia, grande a ponto de se
poder surfar em cima dele; é tapete voador e coche fúnebre. Tem a poesia
irônica e sombria dos guarda-chuvas, dos óculos escuros, dos manequins
surrealistas.
Aquela capa famosa do Pink Floyd tinha bem sua razão de ser. Já anunciava o
mundo dos leitores a laser, da imaterialidade do som reduzido a bits e
armazenado na nuvem.
Mas trazia, acima de tudo, a imagem de uma vasta e plana superfície negra,
em que sobrevoa, leve, a estrutura de um cristal.
Também a fina agulha da nossa consciência, presa ao braço do presente,
percorre, dando voltas, o vinil repleto, pastoso e negro dos anos que já
foram.
*:::*
*Niquele*