[CamaraDas] Artigo: Marcelo Coelho

  • From: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
  • To: CamaraDas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Wed, 3 Sep 2014 02:47:37 -0300

Temporada de caça

Como não podia deixar de ser, está aberta a temporada de críticas a Marina
Silva. É saudável. Todo candidato com chances de ganhar a eleição deve
passar por esse tipo de obstáculos.

Azar, na verdade, do comentarista que se aventura no debate. Algum tempo
atrás, se falava mal do PT, via-se incluído imediatamente na lista do PIG
(Partido da Imprensa Golpista). No caso de criticar Aécio, seria
estigmatizado como petralha.

A ascensão da terceira via complica o jogo. O crítico que tentava escapar
da dicotomia PT-PSDB precisa agora se afastar de Marina também.

Falar mal dos três ao mesmo tempo! Mas que jornalistas incontentáveis! Será
que apoiam Levy Fidelix? Seja como for, o momento é de arregaçar as mangas
contra Marina. A tentativa acaba produzindo críticas que me parecem
forçadas.

Faço muitas ressalvas à candidatura do PSB, mas prefiro deixar isso para
mais tarde. Começo com uma injustiça.

O físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, meu colega de Conselho
Editorial, escreveu domingo passado que não se sentia confortável em ter
como presidente da República alguém que acredita concretamente que o
universo foi criado em sete dias.

O criacionismo de Marina Silva, diz Cerqueira Leite, não decorre da
ignorância, mas de um defeito de percepção. Os especialistas, prossegue
o cientista, chamam essa condição de desordem do desenvolvimento neural.

Fico assustado com um diagnóstico tão irrecorrível. Cerqueira Leite fala
dos chamados idiots-savants. Pelo que sei, são aquelas pessoas com grande
deficiência mental mas que, ao mesmo tempo, conseguem por exemplo decorar
listas de nomes intermináveis, ou fazer contas dificílimas de cabeça.

Será que a capacidade política e verbal de Marina entraria nesse mesmo tipo
de habilidades? E o que seria um defeito de percepção?

Se a candidata insistisse em dizer que, na mesa à sua frente, está sentado
um tamanduá, quando todos podem ver que só existe um copo de água, eu
chamaria isso de desordem neurológica.

Acreditar no relato bíblico do Gênese não me parece um fenômeno
equivalente. Não tem nada a ver com uma percepção errada da realidade. Tem
a ver com fé religiosa.

Sou o primeiro a considerar essa fé totalmente irracional. Não chego a ser
cético, amistoso ou tolerante quanto a isso. Passo a eternidade no inferno,
mas continuarei dizendo que a Bíblia está errada, que a ciência terá sempre
a última palavra, e que acreditar em Adão, Eva, arca de Noé e tudo o mais
não passa de total bobagem.

A questão é outra. O que significa acreditar? Milhões de pessoas
acreditam em bobagens tremendas, mas levam sua vida de modo tão razoável e
sensato quanto o mais austero cientista.

Acreditar, para essas pessoas, é quase uma reverência pessoal à tradição.
Exceto em casos de fanatismo delirante, o religioso está pronto a aceitar
que dois mais dois são quatro, e que se uma porta está aberta, não está
fechada. Só não leva esses princípios ao reino misterioso da religião, onde
Deus pode ser uno e trino, ou pode ter corpo de homem e cabeça de elefante
ao mesmo tempo.

Aliás, o especialista em física quântica também aceita a realidade da porta
e da parede à sua frente, ainda que no mundo subatômico as evidências
pareçam contrariar o mais sólido senso comum.

O religioso, se não for maluco, sabe fazer a separação entre o mundo real e
o plano de sua fé. Pode haver duplicidade mental nisso, mas não se trata de
uma percepção deformada da realidade.

O problema não é cognitivo, mas prático. O religioso se complica quando age
mais em função da fé do que do bom senso. Segue, por exemplo, a teoria da
indissolubilidade do casamento, mesmo que isso seja fonte de infelicidade
para toda a família. Sofrerá culpas inúteis porque sua religião não aceita
a homossexualidade.

É esse plano prático, e não o funcionamento cerebral de Marina Silva, que
cumpre avaliar. Do ponto de vista subjetivo, ela pode acreditar nas maiores
tolices. Mas não é tola como candidata.

Aliás, é uma candidata nada inovadora nesse aspecto. Segue, em suas
declarações, o que lhe der mais votos, e especialmente aquilo que não lhe
tirar os votos que já tem.

Oscila e enrola tanto quanto os outros; um pouco mais, talvez. Incomoda-me,
na verdade, mais sua esperteza do que sua tolice. Mas vejo que, para falar
disso, preciso do espaço de outro artigo.



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*Niquele*

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