Muito bom texto, Níquele!
Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.
-------- Mensagem original --------De: Niquele <niquele@xxxxxxxxx> Data:
21/08/18 15:18 (GMT-03:00) Para: analistas2002@xxxxxxxxxxxxx Assunto:
[CamaraDas] Artigo: J.P. Coutinho
Amor com amor se pagaSó a reciprocidade transforma uma sociedade de estranhos
em vizinhos
Recusar um aperto de mão pode ser uma manifestação de grosseria, excetuando
casos de ofensa grave ou falta de higiene gritante. Eu próprio, confesso, não
sou adepto do gesto quando o meu interlocutor é masculino: uma vida a usar
banheiros públicos só confirmou as minhas suspeitas de que os homens mantêm
relação problemática com o sabão.Mas, pergunto, será suficiente para recusar a
cidadania a alguém? Na Suíça, é. Ou, para sermos rigorosos, na cidade de
Lausanne.Eis a história: um casal de muçulmanos iniciou o processo para obter o
desejado estatuto. Mas, na hora sacramental, recusou-se a apertar as mãos das
exatas autoridades que poderiam conceder tal estatuto.Informa o prefeito de
Lausanne que o problema, aparentemente, estava no sexo dos representantes
oficiais. O imigrante muçulmano recusou apertar a mão a uma mulher e a
imigrante muçulmana reagiu da mesma forma quando confrontada com a manápula
masculina. Não houve cidadania para ninguém.O caso, compreensivelmente,
despertou nova polêmica no mundo encantado do multiculturalismo. Se a religião
islâmica não recomenda contato físico com estranhos do sexo oposto, a Suíça
deveria tolerar a religião dos outros.As autoridades discordam: uma coisa é
tolerar a religião alheia; outra é permitir que essa religião viole a
constituição e a lei em matéria de "igualdade de gênero". Quem tem razão?Já vou
responder à pergunta. Mas, quando lia a notícia, uma dúvida instalou-se na
minha cabeça: se o Ocidente, um antro de promiscuidade onde toda gente
cumprimenta toda gente, é a encarnação mais próxima do inferno, o que leva
certas mentalidades a escolher esse Ocidente como destino?Imagino o oposto:
gosto de escrever o que penso, indiferente às sensibilidades do auditório. Será
que isso me levaria a migrar para uma sociedade repressiva, com censura
oficial, e onde o "delito de opinião" é premiado com dezenas de chibatadas?Mas
não foi apenas a dúvida que me assaltou; foi uma sensação de desconforto com a
falta de maneiras do casal. Se as autoridades suíças concediam o direito de
cidadania, por que motivo os dois imigrantes não agiram com
reciprocidade?"Reciprocidade" é o termo —um termo usualmente ausente da
reflexão multiculturalista. Mas há exceções. Uma delas é o historiador Simon
Rabinovitch, que defende precisamente o conceito de "reciprocidade" no trato
entre diferentes grupos.Em ensaio recente para a incontornável Aeon.com,
Ravinovitch critica o conceito de "tolerância", sobretudo quando aplicado a
grupos religiosos.Para ele, a "tolerância" sempre foi usada pelas maiorias como
forma de controlar as minorias. A relação entre a maioria cristã e a minoria
judaica ilustra o ponto: a primeira só tolerou a segunda quando pretendia algum
ganho com isso.Não vou tão longe. Admito que a palavra "tolerância", ao
contrário de "respeito", transporte uma certa dose de altivez e
condescendência.Mas, politicamente falando, a tolerância "liberal" nasceu da
evidência empírica de que a "indiferença à diferença" era preferível a uma
destruição mútua.Nesse quesito, Ravinovitch está errado: John Locke não
pretendia proteger o cristianismo oficial com a sua famosa "Carta sobre a
Tolerância". Pretendia defender uma ordem civil pacífica, depois de um século
de sangue.Acontece que Ravinovitch não está errado quando prefere o conceito de
"reciprocidade" sobre o de "tolerância". Primeiro, porque a passividade da
tolerância pode ser a antecâmera de horrores vários (como Karl Popper sabia,
tendo testemunhado a ascensão do nazifascismo e a inação suicidária do
liberalismo).Mas, sobretudo, porque só a reciprocidade, que na sua formulação
mais básica pode ser resumida a um "amor com amor se paga" (formulação minha,
não de Ravinovitch), é capaz de transformar uma sociedade de estranhos numa
comunidade de vizinhos.Ou, como escreve o autor, só a reciprocidade permite a
troca social e cultural que enriquece as sociedades de acolhimento e os
imigrantes que a procuram.Tradução: se me oferecem algo (segurança, liberdade,
direitos sociais etc.), eu ofereço algo em troca (por exemplo, não ser
desrespeitoso perante os meus anfitriões).O episódio suíço, antes de tudo mais,
é um caso gritante de falta de reciprocidade: a um gesto de boa vontade,
seguiu-se um gesto de má vontade.Recusar a cidadania foi, ironicamente, a única
forma que os suíços tiveram de honrar a ética da reciprocidade.João Pereira
CoutinhoEscritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica
Portuguesa.
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Niquele