Re: [CamaraDas] Artigo: J.P. Coutinho

  • From: Leandro Neves Cariello <leandro.cariello@xxxxxxxxx>
  • To: Analistas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Tue, 21 Aug 2018 17:13:03 -0300

Niquele, o retorno em alto estilo!

Em ter, 21 de ago de 2018 às 15:31, boratto7 <dmarc-noreply@xxxxxxxxxxxxx>
escreveu:

Muito bom texto, Níquele!



Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.

-------- Mensagem original --------
De: Niquele <niquele@xxxxxxxxx>
Data: 21/08/18 15:18 (GMT-03:00)
Para: analistas2002@xxxxxxxxxxxxx
Assunto: [CamaraDas] Artigo: J.P. Coutinho

Amor com amor se pagaSó a reciprocidade transforma uma sociedade de
estranhos em vizinhos

Recusar um aperto de mão pode ser uma manifestação de grosseria,
excetuando casos de ofensa grave ou falta de higiene gritante. Eu próprio,
confesso, não sou adepto do gesto quando o meu interlocutor é masculino:
uma vida a usar banheiros públicos só confirmou as minhas suspeitas de que
os homens mantêm relação problemática com o sabão.

Mas, pergunto, será suficiente para recusar a cidadania a alguém? Na
Suíça, é. Ou, para sermos rigorosos, na cidade de Lausanne.

Eis a história: um casal de muçulmanos iniciou o processo para obter o
desejado estatuto. Mas, na hora sacramental, recusou-se a apertar as mãos
das exatas autoridades que poderiam conceder tal estatuto.

Informa o prefeito de Lausanne que o problema, aparentemente, estava no
sexo dos representantes oficiais. O imigrante muçulmano recusou apertar a
mão a uma mulher e a imigrante muçulmana reagiu da mesma forma quando
confrontada com a manápula masculina. Não houve cidadania para ninguém.

O caso, compreensivelmente, despertou nova polêmica no mundo encantado do
multiculturalismo. Se a religião islâmica não recomenda contato físico com
estranhos do sexo oposto, a Suíça deveria tolerar a religião dos outros.

As autoridades discordam: uma coisa é tolerar a religião alheia; outra é
permitir que essa religião viole a constituição e a lei em matéria de
"igualdade de gênero". Quem tem razão?

Já vou responder à pergunta. Mas, quando lia a notícia, uma dúvida
instalou-se na minha cabeça: se o Ocidente, um antro de promiscuidade onde
toda gente cumprimenta toda gente, é a encarnação mais próxima do inferno,
o que leva certas mentalidades a escolher esse Ocidente como destino?

Imagino o oposto: gosto de escrever o que penso, indiferente às
sensibilidades do auditório. Será que isso me levaria a migrar para uma
sociedade repressiva, com censura oficial, e onde o "delito de opinião" é
premiado com dezenas de chibatadas?

Mas não foi apenas a dúvida que me assaltou; foi uma sensação de
desconforto com a falta de maneiras do casal. Se as autoridades suíças
concediam o direito de cidadania, por que motivo os dois imigrantes não
agiram com reciprocidade?

"Reciprocidade" é o termo —um termo usualmente ausente da reflexão
multiculturalista. Mas há exceções. Uma delas é o historiador Simon
Rabinovitch, que defende precisamente o conceito de "reciprocidade" no
trato entre diferentes grupos.

Em ensaio recente para a incontornável Aeon.com, Ravinovitch critica o
conceito de "tolerância", sobretudo quando aplicado a grupos religiosos.

Para ele, a "tolerância" sempre foi usada pelas maiorias como forma de
controlar as minorias. A relação entre a maioria cristã e a minoria judaica
ilustra o ponto: a primeira só tolerou a segunda quando pretendia algum
ganho com isso.

Não vou tão longe. Admito que a palavra "tolerância", ao contrário de
"respeito", transporte uma certa dose de altivez e condescendência.

Mas, politicamente falando, a tolerância "liberal" nasceu da evidência
empírica de que a "indiferença à diferença" era preferível a uma destruição
mútua.

Nesse quesito, Ravinovitch está errado: John Locke não pretendia proteger
o cristianismo oficial com a sua famosa "Carta sobre a Tolerância".
Pretendia defender uma ordem civil pacífica, depois de um século de sangue.

Acontece que Ravinovitch não está errado quando prefere o conceito de
"reciprocidade" sobre o de "tolerância". Primeiro, porque a passividade da
tolerância pode ser a antecâmera de horrores vários (como Karl Popper
sabia, tendo testemunhado a ascensão do nazifascismo e a inação suicidária
do liberalismo).

Mas, sobretudo, porque só a reciprocidade, que na sua formulação mais
básica pode ser resumida a um "amor com amor se paga" (formulação minha,
não de Ravinovitch), é capaz de transformar uma sociedade de estranhos numa
comunidade de vizinhos.

Ou, como escreve o autor, só a reciprocidade permite a troca social e
cultural que enriquece as sociedades de acolhimento e os imigrantes que a
procuram.

Tradução: se me oferecem algo (segurança, liberdade, direitos sociais
etc.), eu ofereço algo em troca (por exemplo, não ser desrespeitoso perante
os meus anfitriões).

O episódio suíço, antes de tudo mais, é um caso gritante de falta de
reciprocidade: a um gesto de boa vontade, seguiu-se um gesto de má vontade.

Recusar a cidadania foi, ironicamente, a única forma que os suíços tiveram
de honrar a ética da reciprocidade.
João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.




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*Niquele*

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