[CamaraDas] Re: [CamaraDas] RE: negar a origem é babaquice

  • From: João Marcos <jmcantarino@xxxxxxxxx>
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  • Date: Fri, 12 Nov 2010 17:05:19 -0200

Nelson Rodrigues. Especialmente para o Piauí.

*Nunca houve tamanha solidão na terra*

Outro dia, aqui mesmo, dizia eu que São Paulo ou, mais precisamente, sua
capital - não tem horizonte. É o óbvio que ninguém vê, porque somos cegos
para o óbvio. Mas reparem: - em São Paulo o horizonte é uma parede e,
depois, outra, mais outra, outra mais, enfim, dezenas de paredes, como no
soneto de Raimundo Correia. Eu não tinha percebido isso. Um dia, o meu amigo
Luís Eduardo Borghert veio ao Rio.
Diga-se, entre parênteses, que o Borghert vive em São Paulo , trabalha em
São Paulo , fatura em São Paulo. E são tais suas responsabilidades que não
pode afastar-se uma polegada do seu emprego. Já adquiriu, inclusive, o
sotaque paulista. Até que, um dia, vou passando pelo Leblon quando o vejo.
Mando o táxi voltar. Eis o que, no primeiro lance, imaginei: - "Se o
Borghert está aqui é porque o despediram". A tarde caía, invisível, sobre
tudo, inclusive o Borghert.
Salto do táxi, berrando: - "Como é, Borghert?". Virou-se e nos abraçamos,
patéticos e ululantes, como dois italianos de anedota. E, então,
perguntei-lhe: - "Está fazendo o quê?". Olhando fundo da tarde, disse
apenas: - "Estou olhando o horizonte". Saíra de São Paulo, largara
responsabilidades, horários, fregueses, e tudo para ver um horizonte. A
princípio, não entendi, como, decerto, o leitor também não está entendendo.
Mas ele explicou tudo.
Depois que se transferiu para São Paulo, ele começou a sentir uma falta
desesperadora. E não sabia de quê ou de quem. Era falta de algo
transcendente, vital, insubstituível. Até que descobriu o seguinte: - na
capital paulista, o sujeito está sempre a cinco metros do horizonte.
Exatamente, uma profundidade de cinco metros. Por outras palavras: - o
horizonte é uma parede. Para onde se vire, há sempre uma parede. O Borghert,
dentro ou fora de casa, na rua, ou qualquer lugar, está entre quatro paredes
fatais.
Um dia, não agüentou mais. Estava com um cliente importantíssimo no seu
escritório. Disse: - "Dá licença um instantinho. Volto já". Desceu, apanhou
o automóvel e arrancou para o Rio. Veio numa velocidade fulminante. Dirão
que há horizontes na estrada. Mas era pouco para seu apetite visual. Ele
sempre achou que o horizonte marinho tem outra profundidade, sim, uma
profundidade espantosa. Pode-se perguntar: - "E por que não foi a Santos?".
Porque profundo é o horizonte do Leblon.
Estava, ali, na calçada, havia duas horas, tremendo de beleza. Vira-se para
mim iluminado: - "Agora posso voltar para São Paulo". Bem. Contei o caso do
meu amigo. O que eu queria dizer, em seguida, é que o brasileiro, em geral,
é um povo sem horizonte. Tenho que explicar melhor. Não falo do horizonte
físico, mas do interior. Sim, falta profundidade ao nosso horizonte
interior.
Por exemplo: - o carioca. É o homem de sua rua, do seu bairro, de sua
cidade. Se me perguntassem até onde vai meu horizonte interior, eu diria: -
até Bangu. Pensar que existe algo, além de Bangu, já me dá vertigem. Isso,
eu. Os outros vão mais longe, porém não muito mais longe. O horizonte
interior do brasileiro não chega ao Amazonas.
Em várias "confissões", escrevi que a solidão do Amazonas é um crime de
todos nós. Outro dia, o Paulo Bentes clamava, estrábico de horror: - "O
Amazonas tem menos gente do que Madureira". Não sei se foi o Paulo Bentes
que disse isso ou o Miguel Lins. Não, não. Foi mesmo o Paulo Bentes.
Imaginem: - o Amazonas é um continente e perde em população para Madureira.
E, no entanto, há pior e, repito, há pior.
Vamos aos fatos. Ontem, fui apresentado a um rapaz magro, tímido, o rosto
cravejado de espinhas. Que ele fosse magro, ou tímido, não teria
importância. Mas pergunto: - "Por que as espinhas?". Sou homem de gerações
passadas. E posso afirmar que, antigamente, todo mundo tinha espinhas. Hoje
quem as tem? Só o Oduvaldo Viana Filho. A pele do brasileiro atual é
admirável. E eu me espantei das espinhas que floriam do rosto do tal rapaz.
Súbito, alguém sussurra: - "É do Piauí".
O fato de ser do Piauí soou como uma explicação geográfica da timidez, das
espinhas e das canelas (canelas de Olívia Palito). Olhei o apresentado com
uma curiosidade nova e aguda. Enfim, eu encontrava, na vida real, um
piauiense. Por um momento, deu-me uma vontade pueril e terrível de
perguntar-lhe: - "Quer dizer que o Piauí existe mesmo?". Conversamos alguns
minutos (eu estava magnetizado pelas espinhas). Até o fim, o rapaz teve um
olhar súplice, infeliz, de quem pede desculpas de não sei que faltas
imaginárias. Por fim, despediu-se. Sua humildade era irrespirável.
Mal o piauiense virou as costas, imaginei: - se o Amazonas tem menos gente
do que Madureira, que dizer do Piauí? O Piauí deve ter menos habitantes do
que a praça Saenz Peña. Diz a minha vizinha, gorda e patusca:
- "A gente vive aprendendo". Aprendi, numa simples apresentação, que o Piauí
é infinitamente mais abandonado do que o Amazonas. Este, na pior das
hipóteses, é para nós um sentimento de culpa. Sei que o Amazonas continua,
no seu lugar, como um monstruoso túmulo florestal ou fluvial, sei lá. Mas
temos vergonha, remorso, de tal abandono. O próprio estado ainda esbraveja,
ainda esperneia, ainda reivindica, ainda pede verbas. Também se fala do
Ceará, do Rio Grande do Norte, Sergipe, Maranhão e Pará. A minha terra,
Pernambuco, está viva. Tem Gilberto Freyre.
Mas, e o Piauí? Nem uma palavra sobre o Piauí. Silêncio ensurdecedor. Eu
próprio passo dez anos, quinze anos, sem pensar no Piauí, e sem ouvir-lhe o
nome. Alguém poderia dizer como se falasse da Lua: - "Piauí não tem vida".
Graças às radiofotos fazemos uma idéia de paisagem lunar. Parece que lá em
cima não há uma única e escassa lagartixa. Mas que noção temos nós da
paisagem do Piauí? Quero crer que estejamos rigorosamente convencidos de sua
inexistência. O silêncio que se faz sobre o Piauí é inédito. A única
referência que temos, do seu povo e de sua terra, é o "meu boi morreu". E o
próprio estado, com um fatalismo bovino, não pede verbas, não pede nada, não
exala um protesto.
E o que mata é, justamente, a humildade. Dirão vocês que o Piauí tem a
modéstia do pequeno, sim, a modéstia do pobre. Já contei, aqui, o que
ocorreu no Vaticano. Uma senhora brasileira foi recebida pelo papa. Poucas
palavras. Ao se despedir, Sua Santidade pediu, num sussurro: - "Reze por
mim". Podia ter essa humildade porque era o papa.
Agora mesmo, há o caso patético do Cinema Novo. O Rio é, como se sabe, a
sede do Festival Internacional do Cinema. Concentram-se aqui diretores,
autores, astros de toda parte. Trata-se de uma festa mundial. Que faz o
Cinema Novo? Resolveu tratar o festival "com o mais ultrajante desprezo, o
mais feroz sarcasmo". E, portanto, age e reage como se ele, Cinema Novo, é
que fosse a potência esmagadora, e seus artistas os gênios, as celebridades,
a promoção mundial. Os idiotas da objetividade, que sempre os há, e
sarcásticos, poderão ver, em tal arrogância, um sintoma de paranóia. Não sou
psiquiatra. E acho que devemos deixar a modéstia, a humildade, para os
Estados Unidos, a França, Itália, Japão. Nós precisamos de mania de
grandeza, e repito: - a mania de grandeza é o nosso único luxo de
subdesenvolvido. E, seguindo o estilo do Cinema Novo, o Piauí deve fazer
pose de potência mundial.

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