[CamaraDas] RE: [CamaraDas] Re: [CamaraDas] RE: negar a origem é babaquice

  • From: Mauro Sampaio <mauroadrianosampaio@xxxxxxxxxxx>
  • To: <jmcantarino@xxxxxxxxx>, analistas <analistas2002@xxxxxxxxxxxxx>
  • Date: Fri, 12 Nov 2010 21:32:45 +0000

Meu caro, uma coisa que piauiense não tem é mania de grandeza. Minha origem 
está com os pés nos chão até demais. Você não precisava recorrer a Nelson 
Rodrigues para se dirigir a um piauiense. Conversa com suas próprias palavras.
Abraços.

Date: Fri, 12 Nov 2010 17:05:19 -0200
Subject: [CamaraDas] Re: [CamaraDas] RE: negar a origem é babaquice
From: jmcantarino@xxxxxxxxx
To: analistas2002@xxxxxxxxxxxxx

Nelson Rodrigues. Especialmente para o Piauí.

Nunca houve tamanha solidão na terra

Outro dia, aqui mesmo, dizia eu que São Paulo ou, mais precisamente, sua 
capital - não tem horizonte. É o óbvio que ninguém vê, porque somos cegos para 
o óbvio. Mas reparem: - em São Paulo o horizonte é uma parede e, depois, outra, 
mais outra, outra mais, enfim, dezenas de paredes, como no soneto de Raimundo 
Correia. Eu não tinha percebido isso. Um dia, o meu amigo Luís Eduardo Borghert 
veio ao Rio.

Diga-se, entre parênteses, que o Borghert vive em São Paulo , trabalha em São 
Paulo , fatura em São Paulo. E são tais suas responsabilidades que não pode 
afastar-se uma polegada do seu emprego. Já adquiriu, inclusive, o sotaque 
paulista. Até que, um dia, vou passando pelo Leblon quando o vejo. Mando o táxi 
voltar. Eis o que, no primeiro lance, imaginei: - "Se o Borghert está aqui é 
porque o despediram". A tarde caía, invisível, sobre tudo, inclusive o Borghert.

Salto do táxi, berrando: - "Como é, Borghert?". Virou-se e nos abraçamos, 
patéticos e ululantes, como dois italianos de anedota. E, então, perguntei-lhe: 
- "Está fazendo o quê?". Olhando fundo da tarde, disse apenas: - "Estou olhando 
o horizonte". Saíra de São Paulo, largara responsabilidades, horários, 
fregueses, e tudo para ver um horizonte. A princípio, não entendi, como, 
decerto, o leitor também não está entendendo. Mas ele explicou tudo.

Depois que se transferiu para São Paulo, ele começou a sentir uma falta 
desesperadora. E não sabia de quê ou de quem. Era falta de algo transcendente, 
vital, insubstituível. Até que descobriu o seguinte: - na capital paulista, o 
sujeito está sempre a cinco metros do horizonte. Exatamente, uma profundidade 
de cinco metros. Por outras palavras: - o horizonte é uma parede. Para onde se 
vire, há sempre uma parede. O Borghert, dentro ou fora de casa, na rua, ou 
qualquer lugar, está entre quatro paredes fatais.

Um dia, não agüentou mais. Estava com um cliente importantíssimo no seu 
escritório. Disse: - "Dá licença um instantinho. Volto já". Desceu, apanhou o 
automóvel e arrancou para o Rio. Veio numa velocidade fulminante. Dirão que há 
horizontes na estrada. Mas era pouco para seu apetite visual. Ele sempre achou 
que o horizonte marinho tem outra profundidade, sim, uma profundidade 
espantosa. Pode-se perguntar: - "E por que não foi a Santos?". Porque profundo 
é o horizonte do Leblon.

Estava, ali, na calçada, havia duas horas, tremendo de beleza. Vira-se para mim 
iluminado: - "Agora posso voltar para São Paulo". Bem. Contei o caso do meu 
amigo. O que eu queria dizer, em seguida, é que o brasileiro, em geral, é um 
povo sem horizonte. Tenho que explicar melhor. Não falo do horizonte físico, 
mas do interior. Sim, falta profundidade ao nosso horizonte interior.

Por exemplo: - o carioca. É o homem de sua rua, do seu bairro, de sua cidade. 
Se me perguntassem até onde vai meu horizonte interior, eu diria: - até Bangu. 
Pensar que existe algo, além de Bangu, já me dá vertigem. Isso, eu. Os outros 
vão mais longe, porém não muito mais longe. O horizonte interior do brasileiro 
não chega ao Amazonas.

Em várias "confissões", escrevi que a solidão do Amazonas é um crime de todos 
nós. Outro dia, o Paulo Bentes clamava, estrábico de horror: - "O Amazonas tem 
menos gente do que Madureira". Não sei se foi o Paulo Bentes que disse isso ou 
o Miguel Lins. Não, não. Foi mesmo o Paulo Bentes. Imaginem: - o Amazonas é um 
continente e perde em população para Madureira. E, no entanto, há pior e, 
repito, há pior.

Vamos aos fatos. Ontem, fui apresentado a um rapaz magro, tímido, o rosto 
cravejado de espinhas. Que ele fosse magro, ou tímido, não teria importância. 
Mas pergunto: - "Por que as espinhas?". Sou homem de gerações passadas. E posso 
afirmar que, antigamente, todo mundo tinha espinhas. Hoje quem as tem? Só o 
Oduvaldo Viana Filho. A pele do brasileiro atual é admirável. E eu me espantei 
das espinhas que floriam do rosto do tal rapaz. Súbito, alguém sussurra: - "É 
do Piauí".

O fato de ser do Piauí soou como uma explicação geográfica da timidez, das 
espinhas e das canelas (canelas de Olívia Palito). Olhei o apresentado com uma 
curiosidade nova e aguda. Enfim, eu encontrava, na vida real, um piauiense. Por 
um momento, deu-me uma vontade pueril e terrível de perguntar-lhe: - "Quer 
dizer que o Piauí existe mesmo?". Conversamos alguns minutos (eu estava 
magnetizado pelas espinhas). Até o fim, o rapaz teve um olhar súplice, infeliz, 
de quem pede desculpas de não sei que faltas imaginárias. Por fim, despediu-se. 
Sua humildade era irrespirável.

Mal o piauiense virou as costas, imaginei: - se o Amazonas tem menos gente do 
que Madureira, que dizer do Piauí? O Piauí deve ter menos habitantes do que a 
praça Saenz Peña. Diz a minha vizinha, gorda e patusca:
- "A gente vive aprendendo". Aprendi, numa simples apresentação, que o Piauí é 
infinitamente mais abandonado do que o Amazonas. Este, na pior das hipóteses, é 
para nós um sentimento de culpa. Sei que o Amazonas continua, no seu lugar, 
como um monstruoso túmulo florestal ou fluvial, sei lá. Mas temos vergonha, 
remorso, de tal abandono. O próprio estado ainda esbraveja, ainda esperneia, 
ainda reivindica, ainda pede verbas. Também se fala do Ceará, do Rio Grande do 
Norte, Sergipe, Maranhão e Pará. A minha terra, Pernambuco, está viva. Tem 
Gilberto Freyre.

Mas, e o Piauí? Nem uma palavra sobre o Piauí. Silêncio ensurdecedor. Eu 
próprio passo dez anos, quinze anos, sem pensar no Piauí, e sem ouvir-lhe o 
nome. Alguém poderia dizer como se falasse da Lua: - "Piauí não tem vida". 
Graças às radiofotos fazemos uma idéia de paisagem lunar. Parece que lá em cima 
não há uma única e escassa lagartixa. Mas que noção temos nós da paisagem do 
Piauí? Quero crer que estejamos rigorosamente convencidos de sua inexistência. 
O silêncio que se faz sobre o Piauí é inédito. A única referência que temos, do 
seu povo e de sua terra, é o "meu boi morreu". E o próprio estado, com um 
fatalismo bovino, não pede verbas, não pede nada, não exala um protesto.

E o que mata é, justamente, a humildade. Dirão vocês que o Piauí tem a modéstia 
do pequeno, sim, a modéstia do pobre. Já contei, aqui, o que ocorreu no 
Vaticano. Uma senhora brasileira foi recebida pelo papa. Poucas palavras. Ao se 
despedir, Sua Santidade pediu, num sussurro: - "Reze por mim". Podia ter essa 
humildade porque era o papa.

Agora mesmo, há o caso patético do Cinema Novo. O Rio é, como se sabe, a sede 
do Festival Internacional do Cinema. Concentram-se aqui diretores, autores, 
astros de toda parte. Trata-se de uma festa mundial. Que faz o Cinema Novo? 
Resolveu tratar o festival "com o mais ultrajante desprezo, o mais feroz 
sarcasmo". E, portanto, age e reage como se ele, Cinema Novo, é que fosse a 
potência esmagadora, e seus artistas os gênios, as celebridades, a promoção 
mundial. Os idiotas da objetividade, que sempre os há, e sarcásticos, poderão 
ver, em tal arrogância, um sintoma de paranóia. Não sou psiquiatra. E acho que 
devemos deixar a modéstia, a humildade, para os Estados Unidos, a França, 
Itália, Japão. Nós precisamos de mania de grandeza, e repito: - a mania de 
grandeza é o nosso único luxo de subdesenvolvido. E, seguindo o estilo do 
Cinema Novo, o Piauí deve fazer pose de potência mundial.





                                          

Other related posts: